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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 31 de maio de 2015

A Primeira Professora

Quem visse aquele par jovem descer do comboio do meio-dia na pequena gare da estação de Vale da Porca, diria que eram irmãos, pois mal puseram os pés em terra firme, colocaram uma mala de cartão e uma saca de lona no chão, deram as mãos e olharam para todos os lados, como que assustados ou surpreendidos com o cenário rural que os rodeava.
Entre as pessoas que esperavam o comboio para entrar e os que saiam dele, juntou-se ali um magote de gente que olhava de soslaio para aquele par desconhecido de todos. O caso não era para menos, pois para além de serem ainda muito jovens, com pouco mais de vinte anos, eram bastante magros, os rostos de uma cor pálida e cansada e, pormenor principal, vestiam de maneira completamente diferente dos pasmados aldeões que os rodeavam.
Entretanto, depois de o comboio já ter partido após o apito autoritário do chefe da estação, um sujeito de meia-idade, baixo e gordo, com a sua bandeirola vermelha enrolada debaixo do braço e o competente boné branco na cabeça, o jovem depressa se viu ali sozinho, no meio da gare, pois cada um tinha ido à sua vida. O chefe da estação tinha desaparecido para o interior do edifício e os outros começaram a dirigir-se para as suas aldeias, uns a pé e outros a cavalo que, por aquelas bandas era quase o único meio de transporte.
O dia apresentava-se relativamente quente, apesar de ser o primeiro do mês de outubro e o segundo ano da década de cinquenta, uma década que se apresentava para o mundo como uma nova era de esperança para o desenvolvimento, a paz e a felicidade, quando ainda soavam por todo o lado, como um obstinado eco, os ais horrendos da triste hecatombe nazi.
Os dois jovens ali parados, vinham de Bragança, onde lhes tinham dito que, para chegarem à aldeia da Sobreda, em pleno concelho de Macedo de Cavaleiros, tinham que tirar o bilhete de comboio para a estação de Vale da Porca e depois era só seguir a estrada que subia o monte Morais, passar pela capela de Santo Ambrósio e em chegando ao alto, era só virar por um caminho à direita até à Sobreda. Não tinham nada que se enganar, assim lhes tinham garantido no terminal da estação bragançana.
Mas a realidade era bem diferente. Alberto e Laurinda, por mais que olhassem à sua volta, só viam montes e montes riscados de caminhos, algumas árvores e uma ou outra casita perdida na ondulante e parda serrania.
Não sabendo para que lado ir, resolveram entrar na estação e procurar o único informante que havia por ali. O chefe estava sentado a uma escrivaninha, entretido com uns papéis e só quando ouviu o ruído de uns passos perto de si, é que se voltou para o casal, lançando-lhes um distraído “então que há?”. Foi a mulher que lhe respondeu, enquanto o marido pousava a mala de cartão e a saca de lona no chão:
- Sou a nova professora da Sobreda… O chefe da estação levantou-se de imediato, e aproximando-se, atencioso e solícito.
- Fa… faça o favor de dizer, minha senhora.
- Sou a nova professora da Sobreda mas não sabemos ir para lá. Se nos puder ajudar…
O homem fê-los voltar à gare, rodear o pequeno edifício até às traseiras e erguendo o braço direito, com o indicador espetado para sul, indicou:
- Estão a ver aquela floresta além, no cimo daquela serra mais alta?
- Sim, respondeu o casal ao mesmo tempo.
- Então, vão por este caminho até encontrarem a nova estrada que já é de alcatrão e depois, é só subir pela serra e quando passarem o Santo Ambrósio, sobem mais um bocado até ao alto e depois, ao começarem a descer pelo outro lado da serra, encontram um caminho pelo meio da floresta que os leva à Sobreda. Mas olhem que são mais de duas horas a andar bem!
O jovem casal agradeceu, pegaram na trouxa e antes que fosse mais tarde, que os dias já começavam a ser mais pequenos, puseram pés a caminho e logo desapareceram da vista do chefe, que se enfiou de novo na estação, meneando a cabeça, talvez num misto de incredulidade e de pena.
Quando avistaram o pequeno santuário, a professora quase desfalecida, mais amarela que uma bela de cera e teve que se sentar numa pedra. Ele não estaria melhor, mas sempre ia encorajando a companheira.
- Anda, é só mais um bocadinho até ao Santo Ambrósio e depois comemos alguma coisa.
Quando chegaram ao santuário, deram de caras com uma fonte e logo se precipitaram para ela, bebendo até se sentirem empanzinados de água. Depois aproximaram-se do santo que se erguia, de braços abertos ao mundo, de cima de um pequeno altar coberto com uma tarjeta de linho e rendas, admiraram-lhe a fatiota e a mitra sobre a cabeça e, enquanto o Alberto se desviou para urinar junto ao tronco de uma árvore, Laurinda benzeu-se e murmurou uma oração diante do santo que lhe parecia sorrir, certamente agradecido pela visita inesperada. Logo que o marido chegou, abriram a saca de lona, estenderam um pano em cima de um pequeno muro e comeram pão, um naco de queijo duro e umas azeitonas que tinham trazido de Bragança, saciando assim uma fome de muitas horas. Depois sentaram-se à porta da capelinha, encostaram-se um ao outro e ali se deixaram dormir.
Anoitecia quando entraram no largo da aldeia. Pousaram a mala e a saca no chão, que apesar de pouco trazerem, lhes pesavam após a longa caminhada. Em redor, o pequeno casario era, em geral, envelhecido por um xisto irregular e escuro. Algumas chaminés fumegavam e todo aquele cenário de semiobscuridade e de fumo, assustava o jovem casal citadino que assim se sentia desamparado, infeliz e sobretudo angustiado perante a perspetiva de terem de passar a noite ao relento.
Quando se preparavam para ir bater a uma porta, apareceu-lhes uma rapariguinha de tranças que não teria mais de nove a dez anos e trazia um burrico preso por uma corda. Passou pelo casal, fez um gesto de espanto mas baixou a cabeça e seguiu até desaparecer por uma ruela em frente. Laurinda ainda lhe berrou:
- Como te chamas?
- Maria – respondeu ainda a menina de lá do canelho, antes de se ouvir bater uma porta -.
Dali a nada começou a aparecer gente no largo, homens e mulheres, velhos e novos, para verem de perto o casal que a rapariga dissera ter visto. Alguns já traziam um lampião aceso, apesar de alguma réstia de claridade. Foi Laurinda, mais uma vez, a tomar a iniciativa de falar:
- Boas noites !
- Boas noites ! responderam-lhe em coro.
Sou a nova professora e não temos onde ficar…
Ouviu-se logo um murmúrio de admiração pelo largo. Os homens tiraram os chapéus da cabeça e as mulheres e as crianças aproximaram-se, mais sorridentes. Também estava Maria, a rapariguinha das tranças e que fora logo avisar os pais.
Todos queriam ver de perto a primeira professora da sua terra, pois nunca tiveram o privilégio de ter uma. E todos, à boa maneira transmontana, queria levar o jovem casal para sua casa, para lhes dar de comer e uma cama para dormir.
Tiveram que decidir, depois de um acordo geral, por um casal que se mostrava mais insistente em ajudar a professora e o marido e que, por sinal, eram os pais da Maria que, pela primeira vez na sua vida, iria ter uma professora.
Quando deixaram o largo para entrarem no lar que os acolhia, a noite era já uma realidade que cobria tudo de escuro e de silêncio. Lá dentro, à luz de um candeeiro, e antes de se sentarem à mesa para comerem, fizeram-se as apresentações, com os donos um pouco acanhados a balbuciarem:
- Ou sou o Sérgio !
- Ou sou a Natália !
- E … e ou sou a Maria ! … disse a menina, a rir-se e aos saltinhos e a sacudir graciosamente as suas tranças. Foi o que valeu, para todos se libertarem do acanhamento próprio de situações como esta…

(Conto do livro, Terra Parda), de Hélder Rodrigues

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