terça-feira, 28 de novembro de 2017

Encontro no Farol (IV) - A luz do farol está aí

Os Verões são motivo de esperança para esta gente. Este ano, o padre novo traz consigo ideias também novas. A procissão da festa em honra de Nossa Senhora das Graças que se realiza todos os anos no segundo Domingo do mês de Setembro, percorrerá agora uma grande parte das ruas, ao contrário dos anos anteriores em que se ficava pelo adro da igreja. É o principal tema de conversa. Concorda-se ou contesta-se o trajecto da procissão. Uns sentem-se abençoados, outros olham de soslaio o Padre Zé que se vai esforçando por contentar a todos. A contenda origina grandes discussões, principalmente na taberna do Ernesto. O Manel da Quinta, caneca na mão, desunha-se em berros entre a porta e a rua, gritando, espumado:
— Não ajudo ao andor se o raio do padre não passar a procissão pela minha rua. Nem eu nem os rapazes que tenho lá em casa.
Os rapazes são os enteados, filhos do casamento legítimo da companheira do Manel e do desgraçado que, há uns bons anos, quando desarreava o macho, este o espinoteou violentamente projectando-o contra a esquina da laje que servia de escada para a estrebaria. Morte santa. Nem deu conta, aquele infeliz, pensava a senhora Maria Rosa, mãe do Ernesto, sentada a um canto do balcão, carcomida pelos molhos de lenha que transportou toda a vida.
O Manel e aqueles três, lá vão cambaleados, já noite. A procissão continua a ser o pretexto para os desabafos que o vinho origina. Anestesiados, perdem a noção do tempo que passa. Esquecem-se mesmo do tema que discutiram horas a fio. Esgotam-se no choro inebriado desta noite estrelada de fim de Agosto e lamentam-se dos obstáculos da vida. Apesar destes obstáculos, e dos culturais, um raio de luz orientador surge sempre, independentemente das convicções e conceitos religiosos em que cada indivíduo se situa. Em muitas circunstâncias, aquele raio de luz brilha tão intensamente que trespassa a própria matéria, moldando-a, raspando mesmo as suas arestas mais agrestes. Talvez, infelizmente ou não, o efeito esperado por verdade fundamental sobre a qual se apoia o raciocínio mais básico não seja sobremaneira inspirador de ânimo. No entanto, apesar de completamente ranhosos de bêbados, lá conseguem penetrar as portas acolhedoras do lar e das famílias. A noite é longa e sofredora.
Parece que o mundo tem, inevitavelmente, uma apetência desencorajadora do que é contrário ao sincero e à sua normalidade e que, o aspecto diplomático, fazendo já parte de um processo, como que natural, serve de coluna vertebral e como suporte para a maioria das decisões determinantes dos caminhos universais do ser humano. Assim, tudo o que é de cariz ardiloso, contendo palavras subtilmente enganadoras e agilmente sedutoras, consegue, na maioria dos casos, suplantar a luz verdadeira, do farol que nos orienta. Estamos tão perto da verdade e recusamos o seu toque com subterfúgios de sedução. A luz do farol está aí, presente nas nossas vidas e aos olhos de todos, brilhante.
Mortificada pelas agruras da vida e pelo cansaço dos anos, apoiada na bengala, curvada pelo sofrimento, aquela velhinha consegue manter uma réstia de felicidade luminosa no seu rosto. Sentada num dos bancos da frente da igreja, alta e espaçosa, maior que a igreja da sua aldeia, espera a sua vez para a confissão. Em meditação permanente, continua com uma memória e lucidez extraordinárias, apesar da idade. Enquanto espera, pensa no Céu e reza pelo marido e pelos seus três filhos que para lá viu partir. Com esforço, olhar inclinado para o alto, absorvida por completo em seus pensamentos, sente a suavidade do toque da mão, amiga, naturalmente, na sua face. Antes ainda de satisfazer a curiosidade, o leve sorriso faz-se-lhe instintivamente. Após um instante, como que petrificada na humidade dos seus olhos, envolve extasiada aquele rosto, tão próximo do seu, de igual modo enrugado pela distância do tempo, que beija, finalmente!
— Francisquinha...! Deixa-me ver... 88...? Tens 88 anos de idade! Daqui a dois, se Deus quiser completo eu um século... Como é possível ao fim de tantos anos...?! Desde que foste para a escola pela primeira vez..., lembras-te?

Escrito por A. Fernando Vilela
in:atelier.arteazul.net

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