As «Orações» adiante publicadas, usadas em Carção, concelho de Vimioso, foram-nos ditadas por uma pessoa deste povo, convicta praticante da «Lei mosaica» e até director religioso, espécie de sacerdote.
Pelo que ela nos disse, conclui-se que a liturgia mosaica já está ali muito adulterada, mas seguem-na no que sabem e há muitos adeptos. Assim, segundo ela, em Carção o jejum é muito rigoroso – vinte e quatro horas sem comer. Desconhece-se a distinção entre animais limpos e imundos, ou seja carnes proibidas e permitidas, e por isso não se varia de pratos à mesa nem se escrupuliza em misturar na mesma refeição carne e leite. Desconhecem também quaisquer preceitos relativos aos vestidos. Têm rezas, orações e bênçãos para todos os actos da vida. Há homens instruídos na «Lei» que dirigem os actos espirituais das pessoas masculinas; assim como as mulheres são dirigidas por outra mulher; ignoram os preceitos da agricultura; dizem orações antes e depois de comer; guardam rigorosamente o sábado, com excepção de um ou outro trabalho de pequeno vulto, e acendem, pelo menos, uma lâmpada. Festejam a lua nova; celebram a Páscoa sempre no dia 14 da lua nova de Março; dizem que esta festa devia ser no dia 13, mas, para evitar um fácil engano, fica para o dia seguinte. Só comem pão ázimo durante esse dia 14, e a mais não se estende a festa nem têm qualquer outra. Além da abstenção de pão fermentado na festa da Páscoa, nenhum outro alimento lhes é proibido senão os ovos, pois só a rainha Ester os comeu nesse dia.
O Kipur, ou dia do Perdão, é celebrado no dia 9 da lua nova de Setembro; mas para evitar enganos fáceis de dar-se, por se não ver bem a lua, é transferido para o dia seguinte, como a Páscoa, isto é, para o dia 10. Era celebrado no vinhago, sob pretexto de guardar as uvas, a fim de evitar suspeitas, partindo em dois grupos – homens num e mulheres noutro – e, lá no campo, bem distantes um do outro esses grupos, passavam o dia jejuando e recitando preces, guiados os homens por um mestre (espécie de rabino ou sacerdote), que dirigia e recitava as orações, e as mulheres por uma mestra (espécie de sacerdotisa), que procedia da mesma forma com o grupo feminino.
No casamento faziam sete dias: cinco a mulher e dois o homem (adiante diremos o que significa a fórmula – fazer um, dois, três... sete dias, lembrando apenas agora que esses dias se faziam antes do casamento, isto é, precediam imediatamente esta cerimónia). O casamento era celebrado, segundo a litúrgica da sua «Lei», em casa e depois, a fim de evitar suspeitas, iam à igreja católica, mas o acto aqui celebrado nada valia a seus olhos.
No baptizado procediam da mesma forma, fazendo primeiro a cerimónia ritualista em casa e depois, pro formula, iam à igreja cristã para meros efeitos civis.
Mortos – A cama onde alguém morreu é feita com lençóis novos e toda a mais roupa correspondente nova também ou, pelo menos, em bom uso, e assim se conserva durante sete dias, indo junto dela três vezes por dia durante esse tempo um certo número de mulheres recitar preces e orações, terminando no sétimo por fazer um dia. Também junto à cama se coloca uma mesa com duas toalhas de linho, novas, dois pratos com mantimento, uma malga, pão, etc. É de preceito que cama e roupas, mesa, adereços e mantimentos se dêem a um ou mais pobres; mas como, em geral, as tais rezadeiras são pobres, recebem elas tudo, além de, em cada um desses sete dias, uma ração de pão, bacalhau, batatas, feijões e azeite suficiente para sua sustentação nesse dia e 120 réis em dinheiro (isto era antes da actual desvalorização da moeda; hoje equivalerão a vinte vezes mais). Também se pagava a seco este serviço à razão de 240 réis por dia cada rezadeira.
Durante as rezas – segundo a pessoa informadora nos afirmou convictamente – via-se ou, pelo menos, julgavam ver, um vultozinho deitado na cama, correspondente à silhueta do falecido.
A expressão fazer um dia quer dizer: jejuar um dia, ou seja estar vinte e quatro horas sem comer nem beber, a começar na véspera antes de aparecerem as estrelas até ao surgir destas no dia seguinte. O jejum tem de ser acompanhado de esmolas. Os dias de jejum de preceito são: três antes da Páscoa, três antes da solenidade do Kipur, um em Dezembro, sete antes do casamento e um antes do baptizado.
Seguem as orações e preces:
AO LAVAR – «Lavo minhas mãos e cara com aguas limpas e claras para que á hora da minha morte o Senhor me lave a minha alma. – Amen».
AO DEITAR DA CAMA – «Louvado seja o Senhor e agradecido que nos livrou dos perigos do dia, nos guarde dos da noite para seu Santo serviço. – Amen».
AO TODO PODEROSO
«Poderoso alto Senhor
Do mundo governador
Volvete meu pastor
Suas ovejas á la Serra
Aquelas que andam apartadas do rabanho
Volvemolas Senhor
Volvemas com tua mão
Eu como cordeira mansa
Eu me sujeito a ti
Perdoa-me alto Senhor
Como Abrão a seu filho muito amado
Tinha um cochilo na mão
O braço levantado
Mandou Deus do Céo
Um anjo mui cortesano
Tate, tate, Abrão
Não faças mal ao muchacho
Já Deus está contente
Satisfeito e pago
Vai tras d’aquela starse
Lá está um cordeiro atado
Mandou Deus do Céo um aviso
Que fosse sacrificado».
ORAÇÃO DO SÁBADO
«Eove, Adonai,Moisés
Produzir só Dios Senhor del Cielo
Num mates, num hurtes,
Num haças mal a tu companéro
Num hajas obra de teu desejo.
Num saias a teu companéro
Cum stilo de falsidade
É atrofia que em seis dias
Echó Adonai o seu dia».
AO DEITAR DA CAMA – «Com Deus me deito com Deus me alevanto, Deus me cubra com o seu divino manto, se eu bem coberto fôr, não terei medo nem temor. Se me dormir acordai-me. Se morrer acompanhai-me.
Graças a Deus que já me deitei, com sete anjos me encontrei: três aos pés, quatro à cabeceira e Nosso Senhor na dianteira. Louvado seja o Senhor engrandecido que nos livrou dos perigos do dia nos livre e nos guarde dos da noite para seu santo serviço. Amen».
AO LEVANTAR
«Levantei-me de manhana
De manhana ao alvor
Ouvi cantar missa salve
Missa salve ao Senhor
Que tantas graças nos deu
Mais tem para nos dar
Como estrelas ha no Céo
E areias no mar
E peixes a nadar
Do nascente até ao poente
Louvado seja o nome Santo glorioso do Senhor
Poderoso para todo o sempre sem fim. – Amen».
CONFISSÃO – «Todo poderoso Deus de Israel, eu me confesso, eu vos louvo, eu glorifico o vosso Santo Nome. Aqui prostado diante da vossa presença, peço-vos humilde Senhor que inclineis vossos Santos ouvidos de piedade para ouvir a oração e confissão deste triste e miserável pecador.
Vós, Senhor, sois mui suave, manso, sois de muita misericórdia para todos os que vos chamam à divina piedade.
Até aqui me sofrestes não me confundais, antes Senhor perdoai-me nesta hora a furia com que eu desenfriei meus danados apetites a toda a vaidade, a toda a mentira, tão esquecido de vós, ó meu Deus, tão cego às vossas doutrinas, tão cego aos chamamentos, tão infiel à obediência da vossa Santa Lei, tão contente de mim e do mundo.
Amei o que aborreceis; despresei o que estimais. Males que são perversidades, o que não podia alcançar com a vontade, alcancei-o com o desejo, contentei-me com a fé tão fria e morta nesta alma cheia de pecados.
Não ha em mim senão desventuras e males. A mim me pesa, Senhor, com todo o afecto da alma de vos haver ofendido; o meu coração parte-se de dôr; os meus olhos são duas fontes de lágrimas. Quebrantei a vossa Lei; ofendi um Deus meu, tão soberana magestade, tão poderoso, a um pai tão suave, a um esposo tão amoroso.
Meu Deus, vós sois tesouro da misericórdia, dai-me, Senhor, se quereis que tarde vos comece a amar e a obedecer, dai-me sentimentos da minha má vida e mudança de toda ela. – Amen».
As orações terminam sempre por «Amen» e ainda por: «Glória sem fim ao Senhor de Israel. – Amen»; ou desta forma:
«Agora diga cada qual
Com grande zêlo e amor:
Bendito e glorificado seja
O nome Santo do Senhor
Para sempre sem fim. – Amen».
Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança
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