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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 14 de novembro de 2021

Ausências (Ficção)

Por: Fernando Calado
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

A noite estava quente, mas os dois velhos gostavam de ter o lume acesso naquela moleza de quem faz horas para se ir deitar.
- Tivemos uma vida boa!
Dizia o velho para a sua mulher, sentada ao canto do lume, com aquele ar meigo de quem amou até ao infinito e gastou os olhos de tanto olhar para o seu homem.
E a conversa arrastava-se num dizer por dizer, como se as palavras tivessem a magia de adoçar a vida cheia de recordações, de alegrias e de tristezas.
- Tu deves ouvir sempre o que eu te digo, mulher, porque eu tenho duas escolas, a escola primária e a escola da vida...Tu só tens a escola da vida!
Então a velha queixava-se de não saber ler as cartas e os postais que se perdem caídos pelos quatro cantos da casa.
- Tens que ter resignação mulher, como eu que já quase não vejo nada!
- Pois é, coitadinho, já quase não vês!
- Chega de conversa, por hoje...só eu é que devo falar das minhas desgraças!
- Pronto, ficas logo áspero...
Diz a velha sem rancor, na maior serenidade.
- Então quem telefonou hoje?!
Pergunta o velho...sabendo ele que os filhos telefonam sempre ao anoitecer, mas pergunta, naquele alegria íntima de ouvir a mulher dizer o nome dos filhos.
- O nosso João continua na política?!
Perguntou o velho...escondendo a vaidade, pois ele era um amante da democracia, censurando os invejosos que hão-de falar sempre mal de quem trabalha pela educação, pela saúde e pelos velhos.
- Aquele rapaz...com o cursinho dele não precisava nada destas coisas da política...que só trazem desgostos e inimizades...Eu bem o avisei!
Pois é, a mãe bem o tinha avisado que não se metesse na política, mas quê o rapaz trazia no sangue aquele fulgor do seu avô, velho republicano, um homem honrado e são como um pêro, que combateu o Franco e ajudou, a vida toda, os espanhóis que se refugiavam no sossego do Nordeste Transmontano fugindo ao negrume da Guerra Civil.
E a mãe morria de tristeza por causa daquele filho...tinha tantos inimigos o seu menino...Antes de se meter nestas coisas da política, toda a gente lhe queria bem, regressava a casa cedo vindo do seu emprego, saía com a sua namorada e tinha uma vida tão boa...Agora, é este desassossego, esta corrida constante para o Partido, para as reuniões, é este medo desenhado no seu rosto e que a mãe conhece desde pequenino.
- Mas também quem fala mal do nosso rapaz?
Dizia o velho que sem a resposta da sua velha, respondia ele:
- Um, é um vigarista refinado que pára ali pela tasca da viela...fala mal de meio mundo...ri-se muito...tem muita laracha, mas se um homem não acautela a carteira está bem arranjado...Gente de respeito...não conheço nenhum!
Mas a mãe não se resignava e achava que o seu homem também estava muito triste e havia de morrer com aquele desgosto de ver o filho a ser enxovalhado por gente que não vale duas coroas.
- O nosso rapaz anda meio doente!
Teimava a mãe, como quem sabe que a política traz consigo a inveja, o ódio e o prenúncio de todos os males.
- O nosso rapaz é um bom homem...
Dizia o velho reconfortado.
- Pois é...Só é mau para ele...
Dizia a mãe enquanto afagava um sorriso longínquo, lembrando-se de tanta gente a quem o filho ajudou a conseguir emprego, da alegria de meio mundo que encontram no seu filho a disponibilidade de quem está ao serviço dos outros e faz política discretamente...sem se ver...sem traições...nem arranjos calculados na penumbra da vilania.
- Vamos à cama!
Diz o velho como quem cumpriu um dever de esclarecer a sua velha das coisas da vida, pois ele tinha obrigação de o fazer porque num tempo antiquíssimo tinha frequentado a escola primária...e ao longo da vida, fez a magnífica escola de conhecer, primorosamente, as fragilidade da natureza humana.

Fernando Calado
nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

1 comentário:

  1. Ausências ficção!!!!
    Uma história muito bem contada. Comovente pelo envolvimento afeactivo de um casal e que nos traz recordações de longos serões que em tempos idos tinhamos com os nossos avós.
    Ua história com uma grande lição!!! A política, que com as suas práticas, o lamaçal em que se meteu, não deixa margem para darmos o beneficio da dúvida a quem a possa fazer com o sentido de Estado.

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