Conversámos até que a noite se impôs.
Falámos das nossas vidas, tristezas e alegrias, sonhos realizados e por realizar.
Soube que se tinha casado e que tinha dois filhos. Vivia em Lisboa e, sempre que podia, vinha retemperar forças à nossa pequeníssima aldeia.
Falei-lhe de mim e dos meus. Da vida no Brasil e do que me motivara a regressar a Portugal. Tudo muito telegráfico que o tempo não dava para mais.
Sem que me apercebesse o tempo voara. Gostava do meu primo. Tínhamos brincado muito e a nossa amizade havia nascido connosco. Éramos da mesma idade e enquanto crianças, nada na aldeia, nos escapara. Conhecíamo-la como se conhecem as próprias mãos.
As nossas aventuras deram muitas dores de cabeça aos nossos pais. Muitas delas foram extremamente perigosas e irresponsáveis. O que nos unia era essa cumplicidade dos riscos corridos. Amigos inseparáveis até que a vida nos separou, não necessitávamos de falar para nos entendermos. Bastava um olhar, um gesto...
"Manuel, não vens jantar?" Chamou a esposa, já enciumada da nossa longa conversa.
"Já vou Ana. Vem conhecer a minha prima."
Cumprimentámo-nos cerimoniosamente. Olhou-me com desconfiança. Agarrou-se ao braço do marido como se fosse a última tábua no imenso oceano onde, naufragada, se pudesse suster.
Ela não entenderia a nossa amizade. Pensei.
Despedi-me "Até qualquer dia. Gostei muito de te ver meu querido primo, muito mesmo!"
Dei-lhe um abraço e um leve beijo no rosto por barbear. Acenei à Ana e fui para casa onde me aguardavam os meus pais, prontos para regressar a Bragança.
Subi as escadas lentamente, como quem não tem vontade nenhuma de o fazer. Virei-me no último degrau e lancei um último olhar aos campos primaveris salpicados de pequenas flores brancas e amarelas.
O chiado das rodas de um carro de bois surpreendeu-me. Senti-me transportada para outros tempos. Sorri e vi-me menina encavalitada no carro carregado de sacas de erva fresca para os animais.
Cheirava a erva recém cortada, cheirava a primavera...
Esperei que o carro entrasse na aldeia e reconheci um dos carros feitos pelo meu avô puxado por uma valente junta de vacas. À frente do carro, Paulo assobiava e conduzia os animais de vara na mão. No fim do cortejo, amarrada a uma das estacas, uma bela mula, jovem e brincalhona, aos pinotes.
"Onde desencantaste, tu, o carro, Paulo?"
"Foi o teu avô que o fez e já não faz outro, infelizmente, que Deus o tenha!"
Era verdade. O meu querido avô já não estava entre nós. Fez-se inverno...
Mara
in:nordestecomcarinho.blogspot.pt
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Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço.
A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)
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Excelente esta narrativa.
ResponderEliminarDá-nos momentos únicos numa descrição em que a juventude e a meninice nos marcou a todos.
O reviver de situações, a rememorização olfactiva de odores gravados, o sentir o chiar dos carros de bois, dão a este texto os ingredientes próprios de figurar em colectânea de memórias.
Belíssimo, a não perder.
Obrigada Daniel.
ResponderEliminarSão tempos onde se misturam recordações minhas e dos meus pais e avós.
É uma maneira de não deixar morrer certas memórias que, feliz ou infelizmente, não voltarão.
Obrigada
Mara