Na década de cinquenta do século XX os pequenos animais domésticos vagueavam pelas ruas da aldeia e logradouros públicos apanhando o que encontravam. Todos respeitavam a capoeira solta dos vizinhos e os recos granjeavam parte do seu sustento pelos locais por onde desembarravam. Porque lá diz o ditado que «quem tem janelas de vidro não pode atirar pedradas» às dos outros. Só anos mais tarde veio a proibição de os animais domésticos vaguearem pelas ruas. Até ficavam as aldeias mais humanizadas pois a cria bandoleira acabava por ser distracção das pessoas. Modernices que o mundo rural até dispensava, principalmente nas aldeias mais despovoadas!
Se fosse para acautelar os interesses da população também deviam proibir que os ladrões e assassinos vagueassem por lá que incomodam, aterrorizam, espancam e matam.
Mas, vamos aos pacíficos e úteis animais domésticos e muito mais ao reco da nossa lavra. Se vivesse numa aldeia havia de levar as pessoas a criar-se um requinho comunitário para pelo Santo André se sacrificar a uma festança.
No texto anterior, sobre «a criação», ficámos no momento em que os laregos candidatos a cebas se fechavam no curral até à matança.
Os laregos, enquanto as cebas não tinham o seu S. Martinho ou o seu Santo André, comiam o que os de engorda não queriam ou restos das labaduras da pia.
Pelo menos, em Janeiro ou mais tardar Fevereiro, os laregos passavam a ocupar o lugar das cebas que sucumbiram à faca e a terem mais atenções da dona da casa, sendo válido o rifão: Em Janeiro, um porco ao sol outro no fumeiro.
O crescimento é constante e os cuidados também, apresentando-se «pelo S. João um porco meão». A comida passa a ser melhor e mais vezes, quase nunca deixando de haver comida na pia.
A dona da casa sabe que os porcos bem alimentados pesam mais e crescem mais, fazendo com que haja mais fartura na casa do lavrador durante o ano. Os melhores porcos da aldeia, que eram os que pesavam mais, corria logo a fama de boa tratadora e de mulher de trabalho a que os tinha. As que tinham porcos com menos peso tinham que se desculpar que eles eram de má boca, que deixavam a bianda e a ração na pia, que passavam o dia a fossar em vez de comer.
O remédio santo para os fossadores era o arganel. O mais fácil de lhe meter era um cravo de ferrar a cria com as ferraduras e canelos que, depois de furar a orla do focinho superior, com um alicate fazia-se rodar a ponta e enrolava-se para não cair. Com o arganel posto, se os laregos fossassem magoavam-se e lá se ia o vício.
Mesmo assim, as mulheres não se livravam de alguns reparos pouco lisonjeiros, de preguiçosas para cima. Geralmente, os lavradores, fosse sobre cozinha, destreza de mãos ou tratar da criação, punham as mulheres da aldeia em confronto, fazendo comparação. Fulana cria perus como não há. A «minha» lança sempre três galinhas e é uma fartura de ovos e carne. Pois a minha cria os bonitos bacorinhos como o Sol. Se uma mulher era boa nos trabalhos de casa também o era na vida conjugal.
Não era raro ouvir-se: - tiveste pouca sorte! E se o home não gostava de perder, arranjava mil e uma desculpa para defender a mulher. Chegava-se ao cúmulo de a desculpar com causas exotéricas: - antes era fina como uma abelha! Foi mal que lhe deitaram. Tenho que a levar à Bruxa de Toubes!
Por isso, cebar os recos passava por ser uma arte em que tinha de haver um quase perfeito entendimento entre a tratadora e os animais. Havia mesmo diálogos tão sentidos e ternos como se fosse um filho: - come lindo! O reco, pelo tom de voz, sabia quando o esperavam os mimos ou alguma melgueira ou lhe reprovavam o comportamento.
Quando algum porco andava sem apetite havia que lhe fazer rezas e se não se sabiam as fórmulas iam-se pedir a quem as recitava sem enganos ou cortes, como devia ser, para que resultassem. Havia logo um diagnóstico: - desconfio de fulana que ao o meu reco se escapulir do curral lhe deitou uns olhos de inveja!
Mas, quando chegava o Verão e a fruta começava a aparecer os porcos parece que saltavam e inchavam tal era a velocidade com que medravam. No fim do Verão já se avaliava que cebas iam ter. Até se faziam prognósticos se iam ser melhores dos que o do ano passado ou de há três ou quatro anos a trás. Porque criar bons porcos era sinónimo de casa farta.
Haver rijões, chouriças, salpicões, linguiças, nacos de toucinho ou entremeada salgada, espadas ou presuntos das espadas e presuntos era um maná que com uma côdea de pão (centeio) e uma cabaça de vinho faziam bem «andar o caminho».
Nos anos quarenta e cinquenta do século XX uma casa farta era vista como uma distinção social e gente de mais respeito.
Por: Jorge Lage
in:jornal.netbila.net
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