quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Daqui vemos Trás-os-Montes

A casa que o autor de Contos da Montanha construiu em Coimbra, cidade onde estudou e viveu, é um oásis no rebuliço da cidade. No horizonte, a serra liga Torga à terra

Nunca saímos de São Martinho de Anta, Sabrosa, Trás-os-Montes: a força da terra, telúrica, mítica, original como o embrião que gera o homem e o mundo está aqui, em Coimbra, no centro do país, mesmo que no texto de Miguel Torga ela esteja em Trás-os-Montes.


Mas na paisagem interior de Torga há dois rios que se digladiam na obra e na vida ocupando, cada um à sua maneira, o espaço poético do escritor. Escreveu no Diário em 1954: "[O] Doiro e o Mondego. Um a espelhar os planaltos da meninice, e o outro a reflectir os vales da maturidade. O primeiro, terroso, caudaloso, insofrido, todo aos cachões e às golfadas, a correr entre viris penedias, quente de sol e seiva; o segundo, límpido, magro, paciente, a deslizar sem alarde através de areais de erosão. Mas em nenhum deles encontro a imagem do homem que eu gostaria de ser."


É esta a figura, austera, sóbria, profundamente insatisfeita com o mundo, que vai marcar o sujeito poético, diarístico, contista e novelista de Adolfo Correia da Rocha (1907-1995), Miguel Torga de pseudónimo em homenagem aos seus dois grandes ídolos (espanhóis), Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Torga é a urze brava que cresce nos montes do planalto do Alto Douro onde o jovem Adolfo cresceu e de onde, apesar de "sempre dividido em cada sítio onde me encontro", de ter "a alma inteira em parte nenhuma", as suas referências nunca saíram. À porta da sua casa-museu em Coimbra, há uma torga já frondosa, plantada pelo poeta. "Eu sou quem sou", escreveu: "Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras, rígidas."


Nasceu em São Martinho da Anta, estudou no liceu de Lamego, mas passou alguns anos no Brasil, numa plantação de café em Minas Gerais, onde vivia o tio. Em 1954, visitou o lugar, e recorda-o nos Diários, com emoção: "É difícil visitar em pura neutralidade de observador um país, um lugar, um simples estabelecimento que fazem parte da nossa história pregressa. O abraço comovido que acabo de dar a um preto que me reconheceu, a ternura com que afaguei a casca insensível e desmemoriada de árvores gigantes que plantei meninas, e o grande encontro que me espera ainda com pessoas a quem me ligam afectos e desilusões."


Em Coimbra, estudou Medicina entre 1928 e 1933, anos essenciais da ascensão da ditadura em Portugal. Em 1936, separou-se do núcleo da revista Presença, de que eram fundadores José Régio e João Gaspar Simões, e criou, com Albano Nogueira, a Manifesto, Revista de Arte e Crítica: "Procurávamos um caminho de liberdade assumida onde nem o homem fosse traído, nem o artista negado", defendiam, contra o "individualismo" dos presencistas. Na Manifesto colaboraram Álvaro Salema, Branquinho da Fonseca, Joaquim Namorado ou Vitorino Nemésio. Nessa altura já começara a publicar: Ansiedade (1928, ainda como Adolfo Rocha), Rampa (1930), Tributo e Pão Ázimo (contos), ambos em 1931.


Lugares de escrita


No número 3 da Praceta Fernando Pessoa, Miguel Torga e a mulher, a professora belga Andrée Crabbé Rocha (conheceram-se em casa de Vitorino Nemésio em Coimbra e casaram em 1940, ano em que publicou Bichos), construíram o lar à sua medida. Numa zona alta da cidade, hoje mais central do que em 1953, quando para lá se mudaram, é um oásis de silêncio e contemplação no rebuliço de Coimbra. Bem perto, passam os velhos trolleys da cidade, um em homenagem ao poeta, o mesmo que fazia o percurso de sua casa para o consultório onde Adolfo Rocha vestia a bata de otorrinolaringologista mas nunca despia a de escritor.


"Miguel Torga teve muitos lugares de escrita, como a sua obra largamente documenta, mas o n.º 3 da rua Fernando Pessoa foi um dos mais constantes, a par do consultório no Largo da Portagem [em Coimbra] e da casa natal em Trás-os-Montes", escreveu a filha, Clara Crabbé Rocha, na brochura da casa-museu. Na casa podemos visitar o escritório, espaçoso, sobre a varanda do primeiro andar. Na mesa, a máquina de escrever Royal; nos armários, milhares de livros (muitos ainda por inventariar). No recanto, um divã a que chamava "o meu sarcófago", inspirado na torre de leitura de Montaigne. "O lugar de Miguel Torga era a própria escrita, era dentro dela que o poeta vivia em certas horas, ao mesmo tempo alheado e inteiro. Era na escrita que gostava que os leitores o procurassem, o compreendessem e o amassem. Por isso a casa-museu não é mais do que uma peça dum conjunto biográfico, convidando à leitura e à fruição da sua obra", continua a filha.


Era pela escrita que queria ser compreendido, não em entrevistas. Era, aliás, avesso à publicidade, aos autógrafos, aos jornalistas, às sessões solenes, às homenagens, aos prémios. "Quem quiser conhecer-me, leia-me", dizia. "O que sou, quero continuar a sê-lo privadamente; o que escrevo, quero continuar a dá-lo a conhecer sem alardes."


É nestas palavras que se apoia a vereadora da Cultura de Coimbra, Maria José Azevedo Santos, que guiou o PÚBLICO pela casa-museu, adquirida pela câmara em 1994 e aberta ao público em 2007. "Esta casa tem a ver com as suas raízes", explica. "Temos de imaginar este entorno não como é hoje, mas como era há 59 anos, quando Miguel Torga veio viver para aqui: era o silêncio e a paisagem que ele procurava." Repare-se na serra, na distância do horizonte: "Daqui via-se a serra, na parte alta de Coimbra, a serra que ele podia contemplar para regressar a Trás-os-Montes", diz.


A montanha é, de facto, a grande musa da obra de Torga: "A verdadeira paisagem da minha vida é uma grande serra nua." Só está bem quando regressa a São Martinho de Anta, onde o Douro corre no fundo do penedo rasgado em socalcos e onde as pedras da serra são duras e roladas como gigantescos seixos. "Este Trás-os-Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão e entra-se logo no paraíso!" A relação com a paisagem é quase pudica, ele não se mistura nela, não se tornam um. Pelo contrário: o poeta respeita-a, divindade suprema, ama-a "de uma maneira casta, comovida, sem poder macular a sua intimidade em descrições a vintém por palavra". Sabe que está em casa quando chega à terra, chama ao Douro a sua "carótida", é na montanha que bate o coração: "Chego a uma terra e não resisto: tenho de me meter pelos campos fora, pelas serras, pelos montes, saber das culturas, beber o vinho e provar o pão."


"A semente, a seiva, a colheita, a água, a terra, o vento, o pão, o parto, o pastoreio, Adão e Eva, por exemplo, recorrem nos seus livros como se fossem, não ideias, mas imagens irradiantes", escreveram Óscar Lopes e António José Saraiva. Isto na sua obra ficcional, mas também nos Diários: 16 volumes de 1932 a 1993. Começam, Torga é ainda um estudante de Medicina em Coimbra, vive numa república (a mesma onde anos depois descerraram uma placa de homenagem - ele não gostou), atravessam o século XX, as suas viagens, inquietações, a solidão da escrita, mesmo já marido, pai, amigo, e, antes, jovem, preso no Aljube (meses entre 1939 e 1940), crítico observador do mundo. "Nem romance, nem contos, nem poemas. Apenas este monólogo. Se isto pudesse continuar não era de todo desengraçado publicar mais tarde, na íntegra, os frutos insossos de alguns dias de repouso. Um voluminho doméstico, espontâneo, descuidado, para o qual eu fosse, como leitor, sem a relutância com que vou sempre para os outros que escrevi", escreveu no primeiro Diário, ainda em 1940. Publicou-os um a um em edições de autor (a Dom Quixote fez uma primeira reedição conjunta, em quatro volumes, em 1995 após a sua morte).


Publicou inúmeros contos: Montanha (1941), Novos Contos da Montanha (1944); poesia como O Outro Livro de Job (1936), Cântico do Homem (1950), Poemas Ibéricos (1965); e A Criação do Mundo, romance de fundo autobiográfico em três volumes. Mas são sobretudo os Diários que desenham o retrato do homem e do seu tempo, obra fundamental da literatura autobiográfica em Portugal, como aliás, a sua filha Clara Crabbé Rocha sublinhou, ao dissertar sobre a presença da autobiografia na obra do pai (em O Espaço Autobiográfico em Miguel Torga) e ao incluí-los no livro Máscaras de Narciso, estudo sobre o "eu" na literatura portuguesa: das memórias às viagens, de cartas a autobiografias, de auto-retratos ao testemunho, os Diários do seu pai.


Casa de amigos


A visita à casa-museu começa com um poema de Torga, um longo auto-retrato que, de certo modo, define o homem cuja casa, espaço íntimo, percorremos. "É preciso compreender Miguel Torga para compreender a sobriedade desta casa", explica a vereadora. Mas "apesar de sóbria tinha elementos de extremo bom gosto". A filha, Clara, conta que Torga e Andrée "foram fazendo ao longo dos anos o interior de sua casa, percorrendo os antiquários e adquirindo aos poucos os móveis e as peças de arte que durante varias décadas aconchegariam o seu quotidiano". Por isso, a casa é feita de "vivências, memórias, objectos", é a casa dos "pais", "que foi também a minha durante quase três décadas", escreve.


Aqui recebia os amigos. E por aqui passaram, segundo a filha, presidentes da República, primeiros-ministros, políticos, embaixadores, intelectuais, editores estrangeiros. "O vinho do Porto habitualmente servido às visitas era um dos rituais dessa forma de convivialidade, como o eram também os almoços ou jantares de perdizes estufadas ou da famosa vitela assada que Ruben A. gostosamente evoca na sua autobiografia O Mundo à Minha Procura", escreve Clara Rocha.


É o que conta a vereadora: ainda há muitos amigos de Torga, gente que o conheceu, com quem conviveu, que visita a casa e se lembra deste e daquele episódio. Se esperamos evocações profundas porque estamos na casa de um escritor, é em vão: as memórias são íntimas, sim, mas sobre os assados da Dona Andrée ou as patuscadas com os amigos à mesa. O poeta e político Manuel Alegre corrobora, no catálogo da casa: "Andava em campanha eleitoral, ele [Torga] encontrou-me na rua e disse-me: fui caçar para ti, anda jantar lá a casa. (...) Foi, de certo modo, uma iniciação. E eu saí daquela casa com a sensação de ter sido armado cavaleiro duma ordem desconhecida".


Ao contrário das casas-museu de escritores do século XIX, em que a decoração, os ambientes nos são distantes, alheios e que percorremos com uma curiosidade voyeur de um tempo que não conhecemos, visitar a casa de Miguel Torga, por estar tão próxima de nós a sua vida, é como entrar, talvez, na casa de um avô aonde todos os domingos vamos para o almoço de família.


Tudo se mantém idêntico ao tempo em que ele lá viveu: os interruptores redondos, as portas de madeira pintadas de bege, o chão de parquet encerado, as colchas de renda sobre as camas. O mesmo no exterior. A vereadora lembra que o jardim, parte frontal da casa, era o canto de Andrée Crabbé: florido, relvado, acolhedor. O quintal, na parte traseira, é mais árido, ligeiramente inclinado - "o escritor fixou a terra com pequenos socalcos que nos lembram a paisagem do Douro", explica a vereadora - com videiras e árvores de fruto (laranjeira, nespereira, marmeleiro). O quintal era, pois, de Torga. Tinha o recanto do caçador, o espaço do cão, Nero, e o tanque para a compostagem. Ali, no coração de Coimbra, podia estar, na sua solidão, mais perto da terra.


Raquel Ribeiro

Jornal Público

Sem comentários:

Enviar um comentário