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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Viagem pelo rio Sabor - À procura da nascente

Vai-se num jipe de ir às perdizes e às trutas. Primeiro acaba a estrada, depois o caminho, depois Portugal. Então vai-se a pé, por uma paisagem de há mil anos. Aí nasce o Sabor, antes de começar a descer Trás-os-Montes. É uma memória de Portugal em risco. A barragem vai engolir milhões de plantas, animais e a terra dos homens. Viagem da nascente à foz, a partir de hoje.

Era uma vaca inclinada a beber, veio o lobo e comeu-a. A pele está por perto, esfarrapada como o resto de um tapete, e ainda tem o pêlo macio. Foi há não muito tempo.


No oeste selvagem aparece sempre o esqueleto de um bisonte devorado por chacais. A nascente do Sabor é um nordeste selvagem. Serranias de erva tenra, giesta, carqueja e urze, grandes pedras zoomórficas e um esqueleto de vaca à beira da água. 


Devia ser assim em 1008 e é assim em 2008, começo do Outono. A fronteira ficou para trás há mais de uma hora a pé. Primeiro acaba a estrada, depois o trilho, depois Portugal. 


O fim de Portugal é quando aparece um marco no meio do mato, de um lado P, do outro E. 


Do lado espanhol continua-se calcando troncos estaladiços e cascalho, por entre densos arbustos e maciços de granito que é preciso trepar. 


A paisagem é uma só, como um só é o céu, e o marco parece um brinquedo dos homens que ali ficou. A natureza não o leva a sério.


De resto, há muitos quilómetros que Vítor Vaz não avista qualquer homem. Viu quatro, sete, nove perdizes que parecem mini-galinhas alarmadas, antes de voarem. E vai ver corças a galope pelos campos, e mais poias de vaca, frescas e fossilizadas. 


Se aqui anda, de calças de fazenda fina apesar das silvas, à procura da nascente do rio Sabor, dito o último selvagem de Portugal, talvez da Europa, é por cortesia para com os repórteres do P2, que seguem atrás.


A última vez que cá esteve foi há uns 20 anos. "Lembro-me que era num planalto, a terra mexia debaixo dos pés...", diz, a cismar no caminho, com uma palhita na mão.


O rio nasce entranhando-se. É por isso que na nascente a terra parece mexer debaixo dos pés, empapada, deslizante. 


A partir daí, o Sabor desce numa linha sinuosa, cortando Trás-os-Montes de alto a baixo, até encontrar as águas do Douro.


A sua natureza é milenar.


A indigestão da barragem


O Sabor é "um retrato de tempos recuados, provavelmente medievais", diz Carlos Aguiar, montado num daqueles bancos de madeira que rodam, o que é útil para quem como ele não consegue estar parado.


Tenta energicamente resumir 120 quilómetros de rio Sabor em minutos de conversa, enquanto na sala ao lado uma aluna faz exame, uma colega ao telefone acaba de voltar dos matos da África do Sul, centenas de ervas aguardam em pastas a anotação final e daqui a nada é hora de ir buscar as filhas à escola.


Bragança, a próspera, ainda não tem engarrafamentos, e este botânico é um Pepe Rápido a pensar enquanto age, mas o Sabor não acaba. 


E por onde começar - pela indigestão da barragem que vai engolir milhões de plantas e animais?


Em metade do percurso do Sabor, a água subirá, cobrindo montes e vales, até aos 234 metros de altitude. Não quer isto dizer que o rio suba 234 metros, porque não está à cota zero. No ponto mais baixo, junto ao paredão, poderá subir 101 metros normalmente e 111 em níveis de armazenamento, segundo a EDP. É a altura do Cristo-Rei, em Almada. 


Foi um braço-de-ferro entre ambientalistas e decisores políticos. Agora está decidido. 


Carlos Aguiar é contra. "E não sou um radical em matérias de ambiente. Difícil é o caminho do meio, aquele em que é preciso estar informado e quem o segue apanha nas orelhas dos dois lados."


Fala com o computador portátil aberto entre os manuais dos antigos que correram África a baptizar ervinhas. Conta histórias como se estivessem em risco de extinção, a corta-mato e com graça. Quando se anda à procura de quem sabe do Sabor, teoria e prática, o nome dele aparece sempre - Carlos Aguiar, 44 anos, professor de botânica neste campus verdejante, o Instituto Politécnico de Bragança, e líder local da Quercus.


O que é que faz do Sabor um rio único?


"Primeiro, é extenso, só a albufeira tem 50 quilómetros. Depois, sulca Trás-os-Montes e percorre todas as suas regiões naturais. Inicia-se na montanha e desagua num vale profundo. É um espectro muito amplo."


Mas não exactamente selvagem, como se costuma dizer. "Não é o último rio selvagem. O que acontece é que percorre uma região muito pobre e as margens foram abandonadas há mais tempo que no Douro, no Tejo, no Mondego. Antes havia agricultura na montanha, pastorícia, centeio, batata. E nas terras baixas, oliveira, trigo, amendoeira." 


Ainda há, mas muita gente emigrou e a geografia é dura. "É um rio torrencial, o caudal varia muito ao longo do ano. E é profundo, atravessa território inóspito. O facto de a agricultura nunca ter sido tão intensiva como noutras zonas e ter sido abandonada logo nos anos 50/60 permitiu que os bosques de azinheiras e sobreiros se reconstituíssem."


Para além dos bosques, há "matas de buxo, lodão bastardo, cerejeiras de Santa Luzia...", um conjunto tão raro e denso que Carlos Aguiar resume as coisas assim: "O vale do Sabor é para um botânico o que a igreja mais antiga de Portugal, a Capela de São Frutuoso de Montélios, é para um historiador."


Por causa do abandono das terras tão cedo, "hoje o Sabor tem ecossistemas terrestres em melhor estado que há 50 anos". Podia ser "uma espécie de trecho wilderness", pouco tocado pelo homem. "A Europa está toda muito tocada e os europeus têm a obrigação de criar 'áreas wilderness', de onde são retirados todos os elementos de artificialismo."


Nenhuma ilusão quanto às barragens, no entanto, atalha: "Precisamos de algumas grandes barragens porque temos muitas eólicas. Mas têm que sobrar sítios onde não se constrói, pelo menos um. E o Sabor é o sítio certo, porque está pouco modificado pelo homem."


Os eventuais benefícios locais desta barragem não o impressionam. Mão-de-obra, acha, "será pouca" e de fora. "Quem vai trabalhar na construção das barragens são imigrantes." E turismo, será "o da sandes de queijo", com "uma procura temporária" dos serviços de café e restaurante. 


Sustentado por um recente estudo espanhol, Carlos Aguiar não é o primeiro nem será o último a dizer: "O turismo rural é uma ilusão. As pessoas aborrecem-se, e quem não se aborrece vai para as pousadas. O turismo rural em volta da barragem nunca vai alterar a vida das pessoas. Está num período de algum marasmo aqui na região, há falta de procura."


Aos urbanos cansados-da-vida pode parecer estranho, mas isto é Trás-os- Montes. 


Mesmo numa cidade como Bragança, o campo é já ali.


Memória de um país


E se lá déssemos um salto? 


Carlos Aguiar hesita. Depois fecha o portátil de um golpe, trata da recolha do exame da aluna, da recolha das filhas e mete-se no carro a guiar até ao Sabor.


Pára nos arrabaldes de Bragança, junto a um desvio da via rápida onde os carros passam a zunir. 


De um lado da estrada há uma tabuleta a anunciar "Loteamentos do Sabor", projecto urbanístico que teve os seus 15 minutos de fama entre as classes AB locais e agora está um pouco parado.


Do outro lado da estrada é a grande ravina. Carlos Aguiar salta a guia de metal na berma e aponta lá para baixo, para onde há tanta vegetação emaranhada que não se vê rio.


"Isto é o rio Sabor. Tudo se está a silvestrar. O coberto está a reconstruir-se e está a haver espaço para os animais, raposas, corços, javalis, lobos, esquilos, martas, fuinhas..."


Desce uns passos em inclinação perigosa, e fica a apontar arbustos no grande anfiteatro natural à sua frente: "Isto é uma cerejeira brava, indígena de Portugal, está tudo cheio delas... aquela mancha escura são azinheiras, que aqui se chamam carrascos... ali há carvalhos misturados com cerejeiras de Santa Luzia... pilriteiros... sobreiros... roseiras bravas, de várias espécies... plantas invulgares como a Cornus sanguinea... ligustro-vulgar..."


O castelo de Bragança vê-se lá longe, à direita. O sol está a pôr-se. Dois rapazes passam num cross de bicicleta com capacete rente a Carlos Aguiar e à ravina.


"Que temos aqui? Um corredor de mais de 100 quilómetros de onde o homem se retirou. Em muitos trechos só sobram os pescadores, que aqui vêm à truta. Mais para baixo já não há trutas, só bogas, escalos..."


Carlos Aguiar não está a ver em Portugal nada que se compare. "Com esta dimensão e intensidade, não se verifica uma reserva assim. Todo o litoral está cheio de plantas invasoras. O Sabor é uma memória do país."


Um país que "vai ficar um moinho de vento, cheio de barragens" e onde entretanto "o discurso dos ecologistas resvala para o mundo dos impossíveis, quando tem que ser o dos bons mundos possíveis". 


Por exemplo? "As empresas que vão construir barragens, alterando estes espaços em regeneração, deviam investir nas medidas de compensação. Podem comprar este vale todo e geri-lo, que é fácil. Basta não mexer."


Nos anos 30, quando as pessoas começaram a plantar trigo aqui, o Abade Baçal, erudito da região, descreveu a "invasão do rio Sabor", criticando "o povo ignaro". As pessoas faziam agricultura porque eram pobres, e depois deixaram a agricultura porque continuavam pobres.


Talvez agora o Abade Baçal ficasse satisfeito com o que se vê, embora nas costas passem carros. Aos pés teria erva doce. É ao que cheira.


Glória a Vítor Vaz


Muito se caça em Trás-os-Montes. 


Um dos caçadores de Bragança é Vítor Vaz, 43 anos, que de resto tem um café. Como tantos que hoje vivem na cidade, nasceu na aldeia, ainda mais lá para cima, no Parque de Montesinho.


Esta manhã já tirou muitas bicas antes de se sentar no jipe para ir em busca da nascente do Sabor. Não fosse ele e o P2 ia encalhar já ali adiante, quando a estrada acabar e começar o caminho.


O jipe é de ir às perdizes e às trutas, verdadeiro todo-o-terreno. 


Arranca de Bragança para Norte ao lado do Sabor, "um rio muito pescado", que a esta hora mal se vê, é só um brilho entre as árvores. Passa casas e vacas, a aldeia de França, terras abandonadas pela emigração. "Isto antes era tudo semeado, agora já pouco se semeia."


É já o caminho de terra, sempre ao longo do Sabor, entre grandes fragas. O jipe salta nos buracos. "Já ninguém mexe no caminho. Quando eu era pequeno ainda aqui trabalhei, a tapar buracos." Como este, grande, ainda cheio da chuva de ontem. 


Chegando a uma bifurcação, para a direita é a Ribeira das Andorinhas, que vai dar à Aldeia de Montesinho, e para a esquerda o Sabor.


O caminho piora, ladeado por castanheiros. É "zona da boa castanha", quase madura, lá nos ouriços. Vêem-se umas velhas placas carcomidas a anunciar viveiros de trutas de Montesinho. Uma suave paisagem de colinas. O telemóvel apita com bienvenidos a España, antecipando-se muito à fronteira. Aparecem grandes maciços de pedra. 


O jipe pára numa pontezinha a que chamam Porto do Sabor. Aqui o rio tem uns dois metros de largo, e está coberto de folhas. É tão pouco fundo que se contam as pedras submersas e mal corre. Aparece uma coisa castanha a nadar rápida. "Um rato da água", anuncia Vítor, descontraído. E depois, de mãos nos bolsos: "Há quem os coma." 


Já de novo ao volante, entusiasma-se com quatro perdizes a correr à frente do carro, aflitas. Sabe que estão velhas porque são grandes, e bamboleiam o traseiro como as galinhas. "São todas vaidosas", diz ele, que as caça e come. "Se é boa a perdiz? Ahhhhh... É muito boa. Estas, que são bravas."


Vêem-se montanhas fofas de fetos em vários tons, laranja, limão, tangerina, e um horizonte ondulante, com eólicas gigantes muito ao longe, a rodar. "Todas espanholas, aqui não se pode."


Um campo de feno onde antigamente se semeavam batatas vai dar à Casa da Lama Grande, uma das que o Parque Natural de Montesinho aluga a grupos, por exemplo na passagem de ano. É um lugar muito remoto. Parece o fim dos homens. 


Das traseiras da casa partem dois trilhos. Vítor não tem a certeza, telefona a uma montesinha a perguntar, segue o da direita. O jipe soluça a trepar montes até que o trilho acaba.


A partir daqui é a pé. Já adiante está o marco que separa Portugal de Espanha.


O truque é tentar seguir sempre o rio até o leito acabar. Aí será a nascente. Sabe-se que fica uns quilómetros dentro de Espanha, mas quantos? E onde está o rio? Será este curso de água aqui, ou aquele que rumoreja ali? 


Vítor caminha entre giestas gigantes e carquejas. Pára, mira a toda a volta. Não, alguma coisa não está bem. Esta ribeira não é o Sabor. Telefona a outro montesinho. Ele diz que afinal o trilho certo nas traseiras da casa era o da esquerda.


De novo a pé até ao jipe. De novo o jipe até à casa.


Cá está o trilho da esquerda. Vítor acelera como pode. Mas de repente há um desvio à direita, e mais adiante outro à esquerda. E no cimo de uma colina, uma antena gigante. E agora? 


Vítor opta por subir à colina para observar tudo em volta e se orientar.


De repente dá com o Sabor. "Pronto, é ali."


Volta a descer a colina, volta atrás ao desvio da direita.


É finalmente o caminho certo. O jipe vai de novo até onde pode e depois Portugal acaba em cima de uma grande pedra. Há que trepá-la e seguir a pé.


Cá está o rio, sempre do lado esquerdo, por vezes escondido entre arbustos gigantes, por vezes formando poças reluzentes. "Quem diria que isto é o Sabor!", emociona-se Vítor. "Parece uma águinha de regadio."


Nos invernos, o caudal é temível em alguns pontos. Mas agora não é Inverno, e aqui é onde o rio está só a nascer.


Vítor começa a levantar os pés com muito cuidado. A terra já começa a ficar empapada, mas ainda se vê um leito com água. Há que seguir, e seguir mais. E é então que o incansável Vítor dá com o esqueleto da vaca abandonado junto à água. "Os lobos deram cabo dela..."


Que é terra muito frequentada por vacas, nota-se pelo caminho, cheio de poias. "Andam aí à vontade, sem pastores. Já ninguém vem para aqui."


Também se vêem umas bolinhas castanhas, que o caçador experiente identifica como sendo de veado. E mais à frente, a pele da vaca, enrodilhada. "Não foi há muito tempo...", diz Vítor, apalpando o pêlo.


Logo adiante finalmente deixa de se ver água. Sente-se só por baixo dos pés. Eis a nascente. Um fio junta-se a outro e outro. Quando se tornam fortes começam a correr juntos, e é um rio.


No fim desta viagem, um homem da terra vai perguntar: "Mas onde é a nascente do Sabor?" Porque mesmo quem é de cá já não lá vai. 


Glória a Vítor Vaz, que muitas silvas venceu sem calças nem botas para isso. Bem merece ver cinco perdizes, duas corças e uma raposa antes de chegar a Bragança. 


Assim será.


Epílogo no Solar


Há caça do Sabor na lista do Solar.


É mesmo no centro de Bragança, mas se o leitor está em Lisboa ou no Porto, a centenas de quilómetros, também não perde a viagem. O Solar Bragançano é um daqueles lugares onde Camilo podia jantar com Eça e a nossa avó. António Desidério, o anfitrião, lê Clarice Lispector desde que leu Perto do Coração Selvagem, e Ana Maria, a anfitriã, cozinha as mais tenras postas montesinhas com a elegância de uma bailarina. 


A que propósito vem isto?


Pois de comer bem, que estamos em Trás-os-Montes. E terras no Sabor, daquelas abaixo de Bragança que vão ficar inundadas, sim senhor, também as tem Ana Maria, que é da aldeia de Brunhosa. "Íamos para o rio fazer piqueniques", lembra. "Íamos a cavalo. Havia amendoeiras, oliveiras, aquelas fragas... É uma paisagem deslumbrante e agora está completamente abandonada, nem vamos lá." Acrescenta Desidério: "A última vez fomos colher azeitona." E Ana Maria: "Mas foi há muitos anos." Para quem conhece o que foi, remata Desidério, "a água vai transbordar e matar qualquer coisa no coração deles".


Ao longe não se imagina como. É preciso ir lá e ver, amanhã.


ALEXANDRA LUCAS COELHO 

Jornal Público

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