Pela estrada municipal 542, de Miranda do Douro até Cicouro, Adorinda conduz decidida a sua vida. Paradoxalmente, conduz tecnologia alemã, conduz a sua carrinha Mercedes. A viagem não é longa, não durará mais de meia hora. O caminho leva-a até às mulheres da aldeia, lá no Largo da Junta. Pouco expansivas, aguardam serenamente entre dois afazeres. Eles, desconfiados, rondam por perto, atraídos pelo movimento e quem sabe, se disponham a aparar a barba ou o bigode. Um deles, o Ramiro, orgulhoso Mirandês, vaidoso no seu belo traje, exibe o seu bigode janota, um bigode connaisseur, enrolado nas pontas, fixado com uma cera própria que manda vir lá do estrangeiro. Apareceu a tocar gaita, aquela que nos faz chorar de alegria como disse a Né Ladeiras. O Ramiro disse ao repórter da RTP: “ ver estas coisas que nós estamos mal habituados, vir a televisão na nossa terra, ficamos um pouco envergonhados e depois não nos saem bem as coisas. Arranjando o bigode, depois já nos alegramos um pouco e ficamos melhor”. Que bem se explicou o Ramiro, se estava envergonhado, ninguém deu por ela. Era mesmo aquilo, a Adorinda punha a gente melhor. Se o homem Mirandês se sentiu vaidoso, que dizer das mulheres que interromperam a dura jornada de trabalho do campo para se porem ainda mais bonitas.
A Adorinda é cabeleireira. Um dia, ela e o seu marido, carteiro de profissão, resolveram deitar as mãos à massa, hoje em dia, dir-se-ia que resolveram ser empreendedores. Hipotecaram-se comprando uma carrinha preparada para ser salão de cabeleireira. Tomada a decisão, fez-se ao caminho a Adorinda levando com ela tesouras e secadores e outros engenhos que esticam ou enrolam os cabelos, conforme a vontade da freguesa. Percorre Terras de Miranda, levando pelas aldeias a atenção e o carinho que toda a mulher merece. Nas suas mãos tecem-se os penteados mais ou menos modernos e disfarçam-se aquelas brancas teimosas com uma paleta de tintas, de esperança e de afetos. Enquanto as mãos hábeis trabalham, há sempre tempo para dois dedos de conversa porque às vezes faz melhor uma palavra amiga do que o corte de cabelo. O arranjo do cabelo pouco dura mas a palavra amiga dura muito, dura o suficiente para criar uma vontade que o mês passe depressa para que a Adorinda volte de novo.
“ Tiraram tudo das aldeias “ diz o marido carteiro da Adorinda cabeleireira. Tiraram a escola, a junta, o transporte e até o sinal da televisão. Só não levaram o orgulho transmontano que continua intacto nos poucos que ficaram. E ficou também aquele gostinho especial de estar bonita. Onde houver uma mulher, haverá sempre um espelho e para além do espelho, haverá um olhar do “meu homem” ou doutro alguém que queira bem à bela mulher transmontana. Bela e decidida, como aquela que apareceu montada no Bill, o seu garboso cavalo e do alto da montada, firme e corajosa parece querer desafiar os que ousem questionar a sua beleza refinada que o passar dos anos só apurou.
Há também testemunhos na língua de Cervantes pois há quem atravesse a fronteira para ir atrás dos milagres estéticos da Adorinda: vêm peinar, cortar y arreglar el cabello.
Beleza naquelas outras, de outra aldeia, a Especiosa. Mulheres sofridas, com os vínculos da idade marcados na face. Apesar de tudo, cantam louvores à Especiosa que só pode ser boa terra, especial certamente e porventura maravilhosa:
“ Se fordes a Trás-os-Montes, ai ai
Não falteis à Especiosa, não não
É terra hospitaleira
Perdeu-se a luz da nação
Quem me dera quem me dera
ser humilde lavrador…”
Talvez se tenha perdido um pouco da Luz, talvez, mas Adorinda, decidida, empreendedora leva na mão a candeia que realça o caminho. Mantém acesa essa vaidade que não fará mal a ninguém mas que será um tónico para enfrentar os dias que se avizinham difíceis. Mulheres guerreiras do campo, sozinhas, trilhando vidas delicadas, longe dos filhos que há muito partiram e distantes dos médicos que lhes explicam e tratam as maleitas. Esquecidas, alimentam o argumento estapafúrdio de que sendo poucas, são um mero número cuja grandeza não se evidencia nas prioridades dos que decidem.
No silêncio do Planalto Mirandês, Adorinda, a cabeleireira itinerante é um grito de resiliência que nos alimenta a esperança de que este Reino, além de Maravilhoso, é possível.
Rui Machado
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