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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Gente que Conta

"Enquanto as mãos hábeis trabalham, há sempre tempo para dois dedos de conversa porque às vezes faz melhor uma palavra amiga do que o corte de cabelo. O arranjo do cabelo pouco dura mas a palavra amiga dura muito, dura o suficiente para criar uma vontade que o mês passe depressa para que a Adorinda volte de novo."

Pelas mãos de Adorinda, a cabeleireira

Pela estrada municipal 542, de Miranda do Douro até Cicouro, Adorinda conduz decidida a sua vida. Paradoxalmente, conduz tecnologia alemã, conduz a sua carrinha Mercedes. A viagem não é longa, não durará mais de meia hora. O caminho leva-a até às mulheres da aldeia, lá no Largo da Junta. Pouco expansivas, aguardam serenamente entre dois afazeres. Eles, desconfiados, rondam por perto, atraídos pelo movimento e quem sabe, se disponham a aparar a barba ou o bigode. Um deles, o Ramiro, orgulhoso Mirandês, vaidoso no seu belo traje, exibe o seu bigode janota, um bigode connaisseur, enrolado nas pontas, fixado com uma cera própria que manda vir lá do estrangeiro. Apareceu a tocar gaita, aquela que nos faz chorar de alegria como disse a Né Ladeiras. O Ramiro disse ao repórter da RTP: “ ver estas coisas que nós estamos mal habituados, vir a televisão na nossa terra, ficamos um pouco envergonhados e depois não nos saem bem as coisas. Arranjando o bigode, depois já nos alegramos um pouco e ficamos melhor”. Que bem se explicou o Ramiro, se estava envergonhado, ninguém deu por ela. Era mesmo aquilo, a Adorinda punha a gente melhor. Se o homem Mirandês se sentiu vaidoso, que dizer das mulheres que interromperam a dura jornada de trabalho do campo para se porem ainda mais bonitas.
A Adorinda é cabeleireira. Um dia, ela e o seu marido, carteiro de profissão, resolveram deitar as mãos à massa, hoje em dia, dir-se-ia que resolveram ser empreendedores. Hipotecaram-se comprando uma carrinha preparada para ser salão de cabeleireira. Tomada a decisão, fez-se ao caminho a Adorinda levando com ela tesouras e secadores e outros engenhos que esticam ou enrolam os cabelos, conforme a vontade da freguesa. Percorre Terras de Miranda, levando pelas aldeias a atenção e o carinho que toda a mulher merece. Nas suas mãos tecem-se os penteados mais ou menos modernos e disfarçam-se aquelas brancas teimosas com uma paleta de tintas, de esperança e de afetos. Enquanto as mãos hábeis trabalham, há sempre tempo para dois dedos de conversa porque às vezes faz melhor uma palavra amiga do que o corte de cabelo. O arranjo do cabelo pouco dura mas a palavra amiga dura muito, dura o suficiente para criar uma vontade que o mês passe depressa para que a Adorinda volte de novo.
“ Tiraram tudo das aldeias “ diz o marido carteiro da Adorinda cabeleireira. Tiraram a escola, a junta, o transporte e até o sinal da televisão. Só não levaram o orgulho transmontano que continua intacto nos poucos que ficaram. E ficou também aquele gostinho especial de estar bonita. Onde houver uma mulher, haverá sempre um espelho e para além do espelho, haverá um olhar do “meu homem” ou doutro alguém que queira bem à bela mulher transmontana. Bela e decidida, como aquela que apareceu montada no Bill, o seu garboso cavalo e do alto da montada, firme e corajosa parece querer desafiar os que ousem questionar a sua beleza refinada que o passar dos anos só apurou. 
Há também testemunhos na língua de Cervantes pois há quem atravesse a fronteira para ir atrás dos milagres estéticos da Adorinda: vêm peinar, cortar y arreglar el cabello.
Beleza naquelas outras, de outra aldeia, a Especiosa. Mulheres sofridas, com os vínculos da idade marcados na face. Apesar de tudo, cantam louvores à Especiosa que só pode ser boa terra, especial certamente e porventura maravilhosa:
“ Se fordes a Trás-os-Montes, ai ai
Não falteis à Especiosa, não não
É terra hospitaleira
Perdeu-se a luz da nação
Quem me dera quem me dera 
ser humilde lavrador…”
Talvez se tenha perdido um pouco da Luz, talvez, mas Adorinda, decidida, empreendedora leva na mão a candeia que realça o caminho. Mantém acesa essa vaidade que não fará mal a ninguém mas que será um tónico para enfrentar os dias que se avizinham difíceis. Mulheres guerreiras do campo, sozinhas, trilhando vidas delicadas, longe dos filhos que há muito partiram e distantes dos médicos que lhes explicam e tratam as maleitas. Esquecidas, alimentam o argumento estapafúrdio de que sendo poucas, são um mero número cuja grandeza não se evidencia nas prioridades dos que decidem.
No silêncio do Planalto Mirandês, Adorinda, a cabeleireira itinerante é um grito de resiliência que nos alimenta a esperança de que este Reino, além de Maravilhoso, é possível.



Rui Machado

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