Num Encontro Nacional de Mestres Alfaiates em Viseu - Maio de 2008 |
O Memórias…e Outras Coisas…(MOC) entrevistou o último dos Alfaiates Bragançanos em plena atividade.
António Francisco Pires (O JALECO)
MOC: “JALECO”. Qual a razão para este teu nome de “Guerra”?
JALECO: Quando me estabeleci por conta própria, queria ter um nome para dar à casa, e comecei a juntar umas letras, a ver umas peças de vestuário, e quando vi um colete, logo me surgiu a ideia do "JALECO" E ficou mesmo esse nome a figurar nas faturas, no papel timbrado e no reclamo luminoso, como Alfaiataria "O JALECO".
Dai em diante tudo me começou a chamar Jaleco, e é como Jaleco que sou muito conhecido.
JALECO: Quando me estabeleci por conta própria, queria ter um nome para dar à casa, e comecei a juntar umas letras, a ver umas peças de vestuário, e quando vi um colete, logo me surgiu a ideia do "JALECO" E ficou mesmo esse nome a figurar nas faturas, no papel timbrado e no reclamo luminoso, como Alfaiataria "O JALECO".
Dai em diante tudo me começou a chamar Jaleco, e é como Jaleco que sou muito conhecido.
MOC: És o único alfaiate que continua em atividade
profissional na cidade de Bragança? Pensas que irás igualmente ser o último?
JALECO: Não, não sou o único, o Sr. Fernando Alves, que
ainda tem a oficina na rua da Misericórdia, ainda esta em atividade, ainda um
dia destes me visitou e estivemos a falar da profissão, e disse-me se lhe
aparecer um fato para fazer ainda o faz, apesar dos seus 86 anos de idade. Uma
das questões da nossa conversa foi a profissão de Alfaiate, deparamos que
apesar de estar na moda a Alfaiataria, não há aprendizagem como havia
antigamente, e lembramos que em Bragança havia muitos alfaiates e todos com
muitos aprendizes, agora só nós e nada mais. Talvez venha a ser o último
Alfaiate.
MOC: Com que idade ingressaste na tua profissão?
A máquina onde aprendeu a coser |
JALECO: Aos 12 anos, “assentei praça” no dia 19 de Dezembro
de 1965, na alfaiataria do Senhor Garrido na rua Alexandre Herculano n. 129.
MOC: Quiseste ser alfaiate ou foram as circunstâncias da
vida que te levaram a abraçar esta profissão?
JALECO: Não sabia se queria ser alfaiate. A minha primeira
opção para uma profissão, depois de ter decidido não ir estudar mais, era de
ser carpinteiro. Havia gente que sabia da minha preferência para essa profissão,
principalmente uma Senhora Ana Rita, para a qual eu já fazia uns serviços, como
de andar a ajudar nas tarefas agrícolas e com a “cria” para os lameiros, e
outras coisas.
Essa Senhora, fez o favor de dizer aos meus Pais para me mudarem
as ideias de eu ir para carpinteiro, dizendo que não seria uma boa profissão
para mim dado o meu porte físico, eu era muito magrinho, e não seria a melhor
escolha, mas aconselhando logo a profissão de alfaiate, essa sim seria uma boa
opção porque era uma profissão limpinha, que estaria sempre ao recolhido, que
não apanharia chuva a andar nos telhados, nem nas ruas etc. Foram mesmo as
circunstâncias da vida que me levaram a abraçar esta profissão. Não estou
arrependido.
MOC: Quem são os teus
clientes? Velhos amigos ou vão surgindo clientes novos e das novas gerações?
JALECO: Os clientes, muitos deles, são de facto velhos
amigos, tenho clientes há mais de trinta e quatro anos, mas também tenho outros
que vão surgindo no dia a dia conforme as necessidades, outros certos e que
gostam de mandar fazer as suas roupas à medida, sabem o que isso significa, e
também outros que vão aparecendo mais para acertos de roupas, estes mais da
nova geração, mas também alguns a mandar fazer.
MOC: Antes de te estabeleceres por conta própria trabalhaste
na alfaiataria do Sr. Garrido, personagem muito conhecida em Bragança. Fala-nos
um pouco sobre esses tempos e em que moldes essa tua experiência profissional te
marcou para o futuro.
Na alfaiataria do Garrido com os empregados da altura. A foto foi tirada por um repórter do jornal Record aquando da visita do Almirante Américo Tomáz a Bragança no ano de 1964 |
JALECO: Trabalhei na Alfaiataria GARRIDO, durante 17 anos.
Entrei aos 12 anos. Entrei para a Alfaiataria e entrei para casa do Senhor Garrido,
porque eu passei a fazer “parte da família”, eu morava em Samil e ia a pé para
Bragança, com um saco com a merenda, (e não seria ela tão boa, alguns dias). o
Patrão, o Sr. “Garrido” (Garrido era uma nomeada) o verdadeiro nome era Alberto
dos Santos da Encarnação Gomes, sabia bem disso, e muitas vezes dizia-me para
ir comer uma sopa lá a casa, e muitas vezes comia mesmo com eles à mesa a
refeição completa.
Eram uns tempos difíceis, principalmente nos invernos que
eram muito chuvosos, e gelados para quem tinha que palmilhar um caminho entre
Samil e Bragança, quer pela estrada 217, quer por Vale Chorido, sempre a pé, e
que parecia tão longe, não havia muitos carros, nem tanta luz elétrica como
agora nem coisa que se pareça.
O senhor Garrido era de facto uma personagem muito conhecida
em Bragança e não só, ele tinha montes de amigos em todo o lado, mas na cidade
de Bragança quem não conhecia o Garrido?
Quantas noitadas, no Almeida, no
floresta, no Zê Machado, mas o que mais marcava essas noitadas eram as
histórias que delas vinham para serem contadas mais tarde e guardadas na
memória de alguns, até aos dias de hoje.
Ter passado pelo Sr. Garrido foi uma experiência fantástica,
fiz-me lá Homem, aprendi a ser Homem, tornei-me um profissional na arte de
trabalhar a fazenda. Foi o que lá aprendi, e foram os conhecimentos que adquiri
ao longo do tempo que me fizeram ver de uma maneira mais eficaz as coisas que
não eram bem idealizadas, tonei-me um melhor profissional da alfaiataria para o
presente, para o futuro vou ter de continuar a aprender.
MOC: Ao longo da tua vida profissional devem ter ocorrido inúmeros
episódios que, certamente recordarás. Conta-nos um ou dois que te tenham marcado.
O Jaleco com uma neta do Garrido no Jardim António José de Almeida |
JALECO: Muitos. Lembro-me de um que não foi nada bom, e que
foi o primeiro.
Estava no Garrido ainda há pouco tempo, três ou quatro
meses, andava a aprender a pedalar na máquina de costura, mas com a máquina
destravada, só trabalhava o pedal, e o patrão disse-me para ir ao Sr. Joaquim
que tinha um comércio em frente ao Garrido, a buscar uma folha de papel de
embrulho para fazer uns riscos com um lápis, para poder passar pelos riscos com
a agulha da máquina de costura ai já travada, mas a agulha sem linha. Quando ia
sair do comércio, com a pressa que eu tinha em pedalar, e como estava uma
camioneta estacionada em frente ao comércio, vinha com pressa a atravessar a
rua e veio um carro ao mesmo tempo, e apanhou-me atirando-me de novo para o
passeio. Foi um susto, mas apenas fiquei com uma perna esfolada.
Não fui ao
hospital, mas demorou algum tempo a passar. O senhor do carro ficou também
assustado mas não foi nada de grave. O senhor do carro era o Sr. Vasconcelos,
que trabalhava na EDP, e morava na flor da ponte. Na área da profissão, não me
aconteceram muitos, lembro-me de uma vez queimar umas calças ao passá-las a
ferro, outra vez um casaco em que o patrão tinha um certo empenho, e me tinha
dito, esmaga-o bem, (era para o passar a ferro bem passado) e eu tão bem o
queria esmagar que acabou por se queimar numa das frentes, quando dei por ela
disse ao patrão, olhe, tanto quis esmagar o casaco que se queimou. Não me
digas? Digo, e acabei por lhe mostrar. Como havia fazenda igual, teve de se
fazer uma frente nova, e ficou resolvida a queimadela.
Há uma outra que se mantém na minha memória, e que marcou a minha vida profissional, tinha eu os
meus 17 anos e já levava um fato à segunda prova, mas decidi fazer um fato para
mim, escolhi ao tecido, pedi ao patrão que me cortasse o fato, meti-o nas
primeiras provas, foi provado pelo Sr. Garrido. Na segunda prova como estava
bem, o patrão disse-me, pronto, depois o Marques, (que era o oficial de
primeira) lá to acaba. Fiquei calado e acabei eu o fato. Um dia perguntei ao
patrão se podia passar o fato a ferro na hora do almoço. (já eu tinha uma chave
da oficina). Ele disse que sim que passasse o fato à vontade.
Passados alguns
dias nas noites de café onde também o Marques era frequentador, “no Almeida” no
jardim, o Garrido disse ao Marques, já vi que acabaste o fato ao garoto.
O
Marques admirado, perguntou, a qual garoto? Ao Toninho, era assim que eu era
tratado. Eu não acabei fato nenhum. O Garrido ficou a pensar, e disse-lhe. Tu
queres ver que o “caralho” do garoto acabou ele o fato! Pouco tempo depois veio
ter comigo cá fora, e contou-me o que tinha percebido.
Deu-me os parabéns, e
como o Marques era pouco assíduo ao trabalho, não demorou muito a ser eu o
responsável pelo acabamento dos fatos, da oficina, e do pessoal na ausência do patrão,
passando também a ser oficial de primeira categoria, inclusive nas folhas de
pagamento para a segurança social.
MOC: O “pronto-a-vestir” deve ter feito desistir da
profissão muitos teus colegas. Foram difíceis esses tempos? Como conseguiste
superar esse impacto?
JALECO: O pronto- a- vestir veio revolucionar a indústria do
vestuário, perderam-se muitos alfaiates quando começou a deixar de haver tanto
que fazer nas alfaiatarias, e outros tantos que começaram a desistir da
profissão nessa altura, e ainda outros que na altura aderiram às fábricas
assumindo cargos elevados.
A partir dai os tempos tornaram-se mais difíceis para os
alfaiates. houve alguns que não conseguiram sobreviver e enveredaram por outras
profissões, mas aqueles que se mantiveram fiéis aos princípios da alfaiataria,
conseguiram sobreviver, como foi o meu caso.
O impacto que se deu com a vinda
de tanta roupa para as lojas, os (comércios) onde na altura havia a fazenda
para mandar fazer no alfaiate, foi um duro golpe, e só ficou quem se dedicou.
“Os alfaiates que hoje existem, não tinham capacidade de vestir toda a gente,
mas os que existem vestem muita gente de bom gosto”.
MOC: Alguma vez pensaste mudar de profissão, ou de
atividade?
JALECO: Quando estava quase a ir para a tropa, pensava em
não continuar, vi muitos dos que eu conhecia como (aprendizes) e que desistiram.
Eu também o pensava, e dizia, quando vier da tropa, vou para a França, ou vou
para polícia. Mas como se tinha dado o 25 de abril nesse ano, tudo mudou e não
pensei em mais nada senão em continuar a trabalhar na profissão. Não mudei e
ainda cá estou.
MOC: Para além da tua profissão, tens uma outra atividade
que pode ser desconhecida para alguns. A escrita. O que te motivou a começar a
escrever? Tiveste a influência de alguém?
JALECO: Quando comecei a escrever alguns poemas ainda era
adolescente, às vezes o que me motivava eram uns versinhos para as raparigas.
Não tive influência de ninguém nem ninguém que me motivasse, o gosto pele escrita
deve ter nascido comigo.
Desde que comecei a escrever (antes de ter entrado
na escola primária) fiquei com esse gosto, mas nunca me passou pela cabeça
escrever um livro, até que um dia alguém soube que tinha ganho um prémio com
uma quadra num concurso literário em que por acaso participei, onde o prémio
era uma bicicleta de montanha, e que veio parar as minhas mãos. Essa pessoa
perguntou-me, porque não escrevia um livro.
A partir daí fiquei com a ideia na
cabeça. Um dia por acaso mostrei uns poemas a uma das minhas filhas, à Susana,
e ela disse, Pai, escreves coisas tão bonitas, porque não escreves um livro?
Algum tempo mais tarde apareço em casa com um livro, (amostra) na mão que
mostrei a toda a família. Ficaram radiantes, apoiaram e publiquei, SUSARA, que
é uma mistura dos nomes, Susana e Sara, que são os nomes das minhas filhas, em
2009.
Curiosamente já desde 2005 estava a escrever uma ficção romântica, no
papel, e sem ideias de publicar, mas um dia comecei a passar para uma pasta,
(leituras do pensamento) e um dia lembrou-me de enviar o texto para um editora
que de imediato se prontificou a publicar se fossem preenchidos alguns
requisitos, e como foram, veio a publicação em 2011. Como ia escrevendo outras
coisas nomeadamente poemas, surgiu um outro em 20013, “Palavras ao vento”.
Também já há muito tempo ia escrevendo umas histórias “reais” minhas, e de
familiares meus, e de pessoas que de algum modo tinham a ver com Samil, e que
me levaram a publicar em 2016, “Histórias por contar”.
MOC: Quais são os temas dos teus livros?
JALECO: Poesia, romance, e história.
MOC: Quanto tempo demoras a escrever um livro?
JALECO: Depende do tempo disponível, mas uns dois anos.
MOC: Para quando um novo livro?
JALECO: Neste momento não tenho em mente publicar nada, no
entanto continuo a escrever o que me vem à ideia, talvez um dia mais tarde.
Muito obrigado velho amigo Jaleco por me teres concedido a
presente entrevista.
Grande abraço.
Novembro de 2017
Henrique Martins
Fossem os dias maiores e seria um prazer aprender com este senhor esta bela arte.
ResponderEliminarBelo exemplo de vida. Grande entrevista.