(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Li dia 18 de janeiro de 2019, às 07:30 a.m. um pequeno apontamento assinado por António Rodrigues em Memórias e outras coisas sobre o Chico Judeu e alheiras.
Como se constata do título desta breve crónica era o Chico conhecido para além do seu nome, Francisco de Barros, por mais esses três "chamiços". Há aqui nestes três nomes uma mescla de ternura, pouca, hipocrisia muita e apenas uma verdade! A saber: Chamava-se Francisco e entre nós todos os deste nome são Chicos". Tinha dele próprio, um farto bigode, que era a sua imagem de marca.
Festa e Baile na Associaçao dos Artistas e Socorros Mutuos para angariaçao de fundos para GDB |
Previno os leitores, de haver fortes ligações de amizade a este lídimo bragançano, pois para além da empatia entre a minha pessoa e a dele, ser ele também tio da minha mulher.
Conheci o Chico Bigodes quando eu criança pelas mais variadas razões entre as quais ir ao Baile da Associação me deparava com ele ao cimo das escadas controlando as entradas no Salão. Acompanhado do meu pai ou do meu irmão Armando, fascinavam-me o seu porte elegante e muito mais o seu modo inigualável de falar, penso que ocasionado por qualquer obstrução diminuta no interior do nariz que era pronunciado, "à Judeu" mas proporcional ao rosto que era comprido e bem-parecido. Algo moreno tinha cabelo preto com entradas pronunciadas o que lhe conferia uma dignidade que irradiava subtilmente e era captada pelos outros ao primeiro relance.
Quer fosse o meu pai ou o meu irmão, era certo haver um diálogo começado e acabado em tom irónico, que da sua parte era tendencialmente respeitoso para o meu pai e mais ligeiro e risonho para o meu irmão. Tentando imitar o seu tom de voz, o meu irmão dizia: -Afastai-vos peixes de todos os rios, vem aí o Chico Naireco que está destinado a acabar convosco. O Chico respondia: -Já vim tarde, já os paparam todos, os lambões como tu!
Ora eu entrava nestes relacionamentos naturalmente como se fosse, e era, parte integrante, dada a pertença à tribo.
Não é minha intenção recontar as histórias facetas do Chico Naireco, antes e sem peias que me retardem a pena dizer, que o Chico Bigodes foi dos homens mais honrados e orgulhosos que Deus permitiu que eu conhecesse. Foi Também dos mais trabalhadores e dos poucos que cabem no grupo d'O meu tipo inesquecível.
Homem de princípios inabaláveis soube sempre ocupar o seu lugar na sociedade. Fazedor de trabalhos humildes, mas duros, nunca virou a cara aos mais difíceis de executar. Foi assim homem dos Sete Ofícios, tendo como profissão de base a arte de sapateiro, na senda de seu pai que era mestre de tão antiga arte. Fez também trabalhos diversos para a Câmara e independentemente para quem o requisitava. Foi também varredor, coveiro, desentupidor, jardineiro e arrumador de cinema bem assim como tratador do edifício da Associação dos Artistas e Cinema Camões. Tudo fez com honestidade, sem vergonhas causadoras de complexos absurdos, que ele não tinha. Sempre com um objetivo em mente que conseguiu com o uso de uma mente pragmática e o seu braço forte, dar aos seus filhos educação sólida a partir da família e formação esclarecida a partir da Escola Pública que lhes fornecesse os meios para que postas (o)à prova a sua inteligência e vontade pudesse provar aos cretinos que o queriam apoucar, julgando-se superiores só porque não lhes chamavam judeus, que eles(as) eram feitos da mesma massa e tinham a vantagem de serem geneticamente do povo eleito, cujo líder incontestado disse um dia: -Cidade onde as crianças não vão à Escola está destinada a perecer.
Recordo ter sido o antigo tesoureiro da Câmara, Senhor Alves Velho quem tudo fez para que ele fosse admitido nos Serviços de limpeza da Edilidade. Era uma pequena ajuda que daria azo a um pouco mais de segurança no amealhar de um suplemento financeiro para poder pagar atempadamente as despesas que implicava ter uns quantos filhos a estudar, no tempo em que era ato heroico tal facto. Com as, ou das melhores notas da Escola as duas filhas mais velhas concluíram o Curso e recordo que ele satisfeito com este desidério alcançado me convidou a mim, ao Nuno da Rosa d'Ouro, ao Armando Rebelo e ao Cândido do Flórida para um dia no Rio Angueira, onde comemoraríamos e aproveitariam eles, que eu não pescava, para fazerem uma pescaria já que qualquer deles era craque em tal arte.
O dia foi passado em ambiente de alegria e solidariedade terminando com um jantar de peixe gordo assado nas brasas, pescado na tarde daquele domingo pelos pescadores que foram à Barragem de Picote onde fizeram boa pescaria.
Recordo que uns dias após haver começado a trabalhar na Câmara como varredor alguém que se apercebeu do facto lhe perguntou se estava contente, pois a partir daí passava ele próprio a ser funcionário público. Resposta pronta do Chico que com os olhos em protuberância moderada e frenético de contente, atirou: -Quem os quer "bôs" arranja-os! Reflete esta resposta a humildade de quem por pouco possuir aceita como grandes as coisas que lhe cabem, mesmo que a sociedade as considere mesquinhas.
Recordo-o hoje, como o via no tempo em que por razões insondáveis ele resolvia fazer uma pausa nos seus trabalhos e tirando-se das suas obrigações entrava numa de jantar fora ou fazer uma viagem com alguns amigos, tinha muitos e de todas as condições sociais, para depois de fazer a ressaca dos excessos, regressar ao trabalho e à família.
Um dia, há muitos anos, andava o Chico Naireco com ideias de comprar uma cana-de-pesca nova. Num fim-de-semana em que o GDB iria a Monção jogar para o campeonato, resolveu o meu irmão ir com o seu grupo verem o jogo e no dia que antecedia tal, em vez de dormirem em Monção, irem jantar a Vigo e comerem uma bela mariscada que era coisa da qual todos gostavam e que foi sempre um destino agradável e recorrente. Quis o Chico ir também para concretizar a compra da cana-de-pesca que em Espanha seria mais barata e de melhor qualidade. Comeu-se o marisco e o Chico repetiu não sem que antes o "camarero" lhe tivesse perguntado se queria "postre", respondeu que em troca trouxesse outra dose de marisco que estava "mui bueno"!
Terminada a refeição resolveu sair para procurar a cana-de-pesca. Na rua notou que havia música num bar e que o ambiente era de riso e boa disposição. Entrado, apercebeu-se que era casa de meninas. Uma loiraça veio abordá-lo e pouco tempo depois estava com ela "en Su habitacion". Passado à fase seguinte e dado o empenho posto no ato a espanhola dava gritinhos de contentamento e revirava os olhos de prazer.
Eis senão que o Chico Bigodes se lembra da cana -de -pesca! Subitamente pára e pergunta à fulana: -Olha lá, tu sabes onde posso comprar uma cana-de-pesca? A espanhola zangada ripostou: maldito português, logo agora que estava quase a chegar à lua é que este gajo me vem com a cana-de-pesca! O Bigodes não entendeu a frase que dita com a raiva de quem tem fome e lhe tiram a comida, lhe pareceu coisa desajustada. Repetiu ainda, sabes ou não sabes? A loira saltou da cama zangada e disse-lhe: -Eu não fui à lua mas tu nem passas a estratosfera. Que miséria, por causa de uma cana-de-pesca estragaste-me um dos momentos mais belos da minha vida! O Chico não teve outro remédio senão meter a viola ao saco e ir procurar a cana que não comprou por tê-la achado cara e de inferior qualidade!
O meu irmão e o Garrido riram tanto que eu pensei "que lhes daria uma coisa". Sendo irmão do meu sogro e visto por alguns como um tipo saído de um conto, era homem de um sensibilidade extraordinária e de um coração de oiro. Transportou consigo o estigma do Judeu que sempre ocupou a mente dos convencidos cristãos velhos, que os julgavam nesciamente como eternos condenados por culpas que não lhes cabiam. Mais sabedor do que a maioria imaginava era homem de palavra moderada quando falava dos ausentes. Eternamente agradecido a quem lhe fizesse bem, jamais se esqueceu daqueles que ao longo da vida lhe dispensaram alguma amizade e simpatia.
Recusou mostrar ser quem não era, mesmo quando com os filhos criados e arrumados, uma filha lhe fez a proposta para ir viver para uma casa que havia construído na Estrada de Turismo, com vista privilegiada para o Castelo e que diz-se nos mentideiros ser a que em Bragança tem um interior mais luxuoso e bem concebido de todas as que os atuais novos-ricos concretizaram! Para ele era muito sapato para tão pouco pé! Quem tinha vivido uma vida de trabalho e contenção, sem jamais ter querido ser ou parecer mais do que realmente era segundo os conceitos do tempo que lhe calhou viver.
O desafio maior, lançado por ele mesmo, como repto a concretizar, que foi educar e formar a prole, conseguiu-o inteiramente, não sem que no dia-a-dia do viver não se lhe tivessem deparado situações em que o seu modo quase inquebrável de ver as coisas não chocasse frontalmente com a maneira mais liberal das filhas que eram de outro tempo e às quais a acidez da hipocrisia cristã não causou já o sentimento de exclusão que ele sentiu, mas sempre teve a capacidade de rejeitar!
Enquanto vivi em Inglaterra e sempre que vinha de férias, eu e a minha mulher, íamos visitá-lo a sua casa na Rua dos Gatos. Depois de ter demonstrado a alegria de nos rever, fazia questão de se levantar da cadeira onde passava longas horas inativo, para nos fazer acreditar que ainda possuía pernas para andar, assim ele decidisse e com um misto de resignação nos fizesse a confidência derradeira: -Para os peixes já não servem, o rio corre lá em baixo e o caminho é muito íngreme.
O Chico nem sempre usou bigode |
Nota: O Judeu errante também chamado Ashverus é um personagem mítico e faz parte da tradição oral cristã. Sexta-feira da Paixão passando o Senhor carregado com a Cruz em direção ao Monte Calvário, foi abusado verbalmente pelas ironias e insultos do sapateiro Ashver. Jesus sentido, amaldiçoou-o, condenando-o a vagar sem nunca morrer pelas sete partidas até à Sua volta que será no fim dos tempos! (popular).
E atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir. (Fausto Bordalo Dias - do álbum Madrugada dos Trapeiros-).
Bragança,18/02/2019
A. O. dos Santos
Bombadas
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