Rui Farinha |
Para muitos produtores e enólogos portugueses, há dois grandes momentos no ano: a vindima e as galas de premiados que as principais revistas do sector organizam durante o mês de Fevereiro. Para as revistas, os dois grandes momentos são as galas e as feiras que realizam no final da vindima.
São momentos de sonho, reconhecimento, vaidade e negócio. No fundo, trata-se de dar e de receber. No vinho, como em qualquer outro negócio, não há almoços grátis. Uma simples garrafa que se oferece a quem escreve sobre vinhos leva sempre escondido o desejo de um elogio posterior. E quanto maior é o “mimo”, maior é a expectativa do retorno. O mundo é assim, não é possível mudá-lo. Como diz o povo, “mãos que não dais, porque esperais?”.
O pior que alguém que escreve sobre vinhos pode fazer é escrever criticamente sobre outras pessoas que escrevem sobre vinhos. Até porque não há inocentes. Todos nós temos os nossos pecados. Mas pior do que escrever sobre a classe, arriscando levar com uma girândola de fogo, como naqueles picos dos arraiais, em que parece que vai rebentar tudo, é deixar a classe fora da crítica por cumplicidade corporativa. Porque a crítica e o escrutínio são sempre, ou pelo menos podem ser, virtuosos.
Seria legítimo questionar algumas das escolhas dos melhores do vinho em 2018 feitas já pela Revista de Vinhos e pela Grandes Escolhas (só falta a gala da Paixão do Vinho). Por exemplo, atribuir, como fez a Grandes Escolhas, o prémio de melhor enólogo do ano em vinhos generosos a António Agrellos, que já se reformou há dois anos da Quinta da Noval, é, no mínimo, caricato. António Agrellos mereceu este prémio em muitos anos, pelo extraordinário trabalho que fez na Noval e por estar associado ao mais renomado e exclusivo Porto Vintage, o Noval Nacional. Nesta fase, fazia sentido era receber um prémio de carreira. Mas não é sobre o mérito ou deméritos dos premiados que vale a pena reflectir, até porque nunca haverá consenso sobre as escolhas. Portanto, parabéns aos vencedores.
O que merece ser discutido é o modelo de negócio que as revistas da especialidade criaram para poder sobreviver, baseado em feiras e em galas com cada vez mais premiados. Hoje, e como acontece com inúmeras publicações de outras áreas, a vertente editorial deixou de ser o centro do negócio e tornou-se num apêndice. E esta deriva está cheia de perigos e perversões, porque aumenta a dependência de quem escreve e avalia os vinhos em relação a quem investe em patrocínios.
Uma das consequências/perversões desta nova realidade é o contínuo fechamento do sector em torno de quem “paga”, de quem “investe” e de quem “convive”. Quem vive fora do sistema, quem trabalha nas periferias e longe dos holofotes, das provas e dos convívios sociais, raramente é contemplado. Por algum motivo é que se fica sempre com a sensação de que os premiados são quase sempre os mesmos. Não é verdade, claro, mas essa sensação decorre do facto de os premiados saírem invariavelmente do mainstream. Há alguma razão para gente como António Madeira (Dão), Pedro Marques (Vale da Capucha, Lisboa), Vasco Croft (Aphros, Vinhos Verdes), António Marques da Cruz (Quinta da Serradinha, Leiria) e Fernando Paiva (Quinta da Palmirinha, Vinhos Verdes), só para citar alguns exemplos de produtores que têm vindo a fazer um trabalho extraordinário e inspirador, continuarem fora da lista de premiados? O único “pecado” de todos eles é viverem num circuito alternativo. Mas vivem mais ou menos esquecidos precisamente porque as revistas da especialidade foram diminuindo a sua vocação editorial, em detrimento do negócio dos eventos. Por necessidade, reconheça-se.
Nem tudo é mau nesta deriva. As feiras de vinhos que as revistas organizam têm tido um papel muito importante na divulgação e promoção do vinho em Portugal. Graças a esses eventos, o consumo de vinho tornou-se muito popular em Portugal e o nível de conhecimento dos consumidores nacionais é cada vez mais alto.
O problema é sempre o excesso. Há dias, o jornal Observador fez uma notícia curiosa, com o título “Alerta vínico! Onze feiras e festivais para marcar na agenda”. São 11 eventos só até ao próximo mês de Junho. É o excesso e o modelo, que continua a privilegiar a divulgação de vinho, desvalorizando a venda directa. Pode ser muito interessante para os consumidores e para os organizadores, mas exige demasiado esforço, tempo e dinheiro dos produtores. Não estará na hora de repensar este modelo? A feira do futuro terá que centrar-se na venda directa de vinho, como já acontece em alguns países. É bom para o produtor, que pode pagar ou atenuar o investimento, e é bom para os consumidores, que podem levar logo para casa os vinhos da sua preferência.
A insistência no modelo actual só vai vingando devido à tal “dependência” de que falava no início deste texto. Os produtores aceitam as regras do jogo porque sabem que a alternativa é o esquecimento. Mas que ninguém se iluda: este modelo não é viável. O país e o sector dos vinhos são demasiado pequenos para tantas feiras e tantas revistas. O negócio vai perdurando e até ganhando amplitude porque julgamos estar a viver um período de vacas gordas. Na verdade, a fartura e a opulência que as feiras e as galas de vinhos sugerem existir no sector do vinho não têm aderência à realidade. Vivemos uma espécie de bolha. O que existe é um ambiente de encantamento, porque o vinho, e toda a cultura que o envolve, tem esse efeito encantatório sobre as pessoas. Mas, como acontece com as borboletas atraídas pela luz, o encantamento pode cegar-nos e queimar-nos.
Pedro Garcias
Fugas
Jornal Público
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