Foto: Luís Barra |
É a primeira vez que Graça Morais mostra obras suas no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado. Nas salas brancas abrigam-se agora as trevas de 82 desenhos e pinturas em papel da exposição Metamorfoses da Humanidade, que se inaugura na quinta, dia 21. São trabalhos recentes da pintora: violências e vítimas, insetos antropomorfizados e migrantes.
É, afinal, o gesto sempre militante desta artista de 71 anos, transmontana que se fez nome maior da arte portuguesa, cuja obra vai ser estudada no Laboratório de Artes de Montanha Graça Morais (inaugurado em 2018), em Bragança, próximo do Centro de Arte Contemporânea Graça Morais (CACGM), existente há já uma década. Conversadora, atenta, ainda o gravador não está ligado e logo nos fala sobre o “assustador” estado do mundo. Mas a pintora não se rende à “escuridão que paira sobre nós na Europa”. Ouve tocar os sinos da igreja próxima e sorri. “Tão bonito.”
O que sente ao ver uma pintura sua à venda em leilão?
Bem, os leilões são bons para a valorização do artista, mas, quando aparecem como solução para as pessoas resolverem problemas económicos, é algo perigoso: há obras a serem vendidas pelo mesmo preço de há dez anos ou menos. Depois da desgraça que foi a Troika, a classe média que sustentava as galerias – médicos, engenheiros, industriais, uma classe culta que gosta de arte – está, agora, a desfazer-se das obras para ajudar os filhos e os netos.
A arte é um bem de primeira necessidade?
Não faço esse discurso. A arte é um bem de primeira necessidade para o espírito e para a sobrevivência da criatividade. Mas o corpo precisa de comida. Tenho a certeza de que um mundo sem arte, sem museus, sem boa música seria uma tristeza. Cem anos depois, o que fica realmente de uma época é a arte. Ela é o testemunho de um tempo, uma grande herança.
Viveu tempos difíceis no início da carreira. Alguma vez enfrentou esse dilema: comprar uma pintura ou ir ao supermercado?
[Sorri.] Isso é como aquelas perguntas do “você gosta mais do seu pai ou da sua mãe?” Nunca me vi perante o ter de escolher... Em toda a minha vida, comprei poucas obras. Não sou colecionadora, não tenho dinheiro para o ser. Faço trocas de quadros com outros artistas: Pomar, Paula [Rego]… E, de vez em quando, compro obras de jovens artistas, pois sei que isso os ajudará a valorizar. Grande colecionadora, sou só de sapatos! Mas, depois, ando sempre com estas pantufas.
Ver grande arte ainda a emociona?
Sempre. É como se estivesse a ver arte pela primeira vez. Como a Graça com 20 anos que conheceu o Van Gogh em Amesterdão, o Bacon em Londres, o Picasso em Paris. À semelhança dos grandes romances, a obra ganha outro sentido à medida que envelhecemos. Quando posso visitar a ala grega ou egípcia no Museu do Louvre ou observar pinturas do Rembrandt, sinto: “Que sorte tenho de poder herdar todo este património!” Aquilo não é meu, mas é também meu. Por isso, quando faço uma exposição minha, peço sempre que vendam obras a um museu, para que não fiquem fechadas numa casa privada.
Mostrar a muitos, é essa a importância do CACGM?
Pode crer. Quando me ofereceram aquele centro, fiquei contente mas com receio de não estar à altura. Recordei-
-me de quando tinha 15 anos, era estudante, queria ver arte e não havia nada. Ia visitar o Museu do Abade de Baçal, com arqueologia e arte sacra. Hoje, Bragança é um lugar onde se pode ver pintura moderna e contemporânea, e há cada vez mais público a visitar o CACGM. Mas o que me deixa mais feliz é quando olho para crianças pequenas a verem os meus quadros: os desenhos delas são melhores do que os meus! São de uma enorme espontaneidade e beleza.
Fala muito em serviço público. Em Metamorfoses da Humanidade é preciso expor a realidade?
É preciso acordar consciências. Esta série nasceu de uma indignação: eu tive de sair do meu atelier na Costa do Castelo, porque já não aguentava tantas obras de construção civil, tantas contrariedades, tanto barulho. Então, aluguei duas salinhas perto da Gulbenkian e fechei-me ali a trabalhar.
A indignação é com a transformação de Lisboa?
É, sobretudo, com o que vi acontecer à minha volta, nos bairros da Mouraria, do Castelo: pessoas de idade a serem empurradas dali, porque não podem pagar rendas mais caras… Perdeu-se aquela atmosfera em que as pessoas iam aos cafés de bairro, conversar, ainda de robe. Claro que havia edifícios em decadência e a cair, e ainda bem que houve obras. Mas para tal acontecer, houve tanta gente, com menos possibilidades, a ser expulsa das suas casas. A cidade não pode ficar só com turistas e milionários.
Se a aquisição de obras de arte só é acessível a alguns, um artista fala sobretudo para as elites?
Não, eu não falo para as elites. Quando estou a pintar, pinto sobretudo para mim. Tenho necessidade de pintar, tal como preciso de comer e de beber. Mas a elite mais endinheirada, não sei se ela frequenta assim tanto os museus. O mercado português da arte é muito fraco. Há pessoas ricas que preferem comprar um carro caro do que adquirir uma pintura: o carro vê-se, a pintura está guardada... É um novo-riquismo: eles não precisam da arte para obterem estatuto. Mas o curioso é que as minhas exposições são visitadas por pessoas comuns, mais simples, que têm necessidade de arte. Um dia, ao acompanhar uma amiga a um hotel da Avenida 5 de Outubro, vi que o porteiro era um homem que ia sempre às minhas exposições e comprava quadros meus a prestações. Extraordinário.
Um desenho seu mostra um polícia a revistar alguém que olha para nós. É uma alusão direta a Trump e à política contra os migrantes?
Nos últimos dois anos, o que mais me tocou foi ver, todos os dias, cenas terríveis na televisão. O que está nesta exposição, tenho de o agradecer aos fotojornalistas, esses heróis que vão aos locais de guerras e desastres, correndo perigos que nós não corremos. Mas a minha pintura parte sempre da realidade, tanto encontrada nas imagens que me chocaram como no café da minha rua, ou nas notícias das mulheres assassinadas no nosso país. Estas vítimas são figuras sem rosto. Nestes desenhos, algumas caras são manchas: são essas mulheres martirizadas sem rosto.
Ao lado, várias figuras transformam-se em gafanhotos. De onde vêm estes insetos?
Essa metamorfose no gafanhoto é uma viagem extraordinária que faço dentro de mim e no papel. Os gafanhotos são modelos reais, tenho-os na minha mesa. Esses insetos vieram da minha infância vivida, com os meus cinco irmãos, junto das rãs, dos animais que iam nascendo. Na minha imaginação, sempre vi os seres humanos muito misturados com os animais. E os gafanhotos sempre me meteram medo. Mas, um dia, entrou um no meu atelier e o gato da minha filha matou-o. Apercebi-me, então, de como era um bichinho de uma beleza enorme. Isto foi nos anos 2000, e comecei a fazer uma relação do inseto com o ser humano: os insetos são frágeis mas resistentes. Aos milhares, são perigosíssimos e podem transformar-se em predadores – tal como o ser humano.
Ali ao fundo, tem outro desenho de grandes dimensões, Migrantes Mutantes. Assumiu esta causa como sua?
Pode crer. Eu não gostaria nunca de ser migrante: sair do país à força, pobre, sem comida, sem roupa, sem nada. Andar à procura de um lugar e nem sequer o deixarem sair do oceano? Como se tivessem peste! Deve ser o pior que pode acontecer a um ser humano. Ninguém pode ficar insensível perante os campos de refugiados, as crianças na lama... António Guterres [secretário-geral das Nações Unidas] é uma pessoa extraordinária e sensível, mas não tem o poder de um Trump para conseguir mudar a vida daquelas pessoas. Sinto que há uma grande impotência das pessoas boas perante o mal.
Temo-la próxima da esquerda. Como avalia este Governo?
Não pertenço a nenhum partido, tenho ideias próprias e apoio as pessoas que bem entendo. Este Governo tem pessoas que admiro, e o António Costa é muito hábil, mas também é demagógico. O lado falso de festa fácil tem de desaparecer, temos de enfrentar a realidade e ver onde estão os problemas reais. E faz-me impressão que exista um Ministério da Cultura tão pobre! Nem sei como as pessoas aceitam ser ministros: vivem com a frustração de querer fazer e não poder. No entanto, há uma enorme força dos artistas e dos museus: estamos vivos e a criar, e queremos deixar uma herança aos nossos filhos. Mas tem de haver mais exigência, menos corrupção. Faz-me imensa impressão ver idosos a viverem com reformas de 250 euros. Na minha pintura sente-se essa inquietação. Quem nos protege?
Defende “dar uma voz a quem não a tem”. Todos os artistas devem ter um programa ideológico?
Não. Os artistas, tal como as outras pessoas, são muito diferentes entre si. E devem ter o direito a viver, uns de forma mais divertida, outros de forma menos divertida. Eu é que sinto sempre essa responsabilidade. Mas também sou egoísta: quando pinto, não estou a pensar no resultado, na militância. É a pintura pela pintura. A obra tem de ser boa. Na sua base, está a minha sensibilidade, enquanto artista e mulher, que exprimo através da arte. A arte não
é para decorar uma parede: aí, devemos é pôr plantas lindíssimas. A arte é como a grande literatura: é para pensar-se.
Que comentário faz à controvérsia suscitada pelas declarações de Leonor Antunes, representante portuguesa na Bienal de Veneza, de que não teria aceitado ser escolhida por um governo de direita?
Penso que a artista tem o direito de dizer isso. Foi sincera, e é bom que as pessoas não sejam hipócritas. É isso que pensa, é o que deve dizer. Eu não o diria. Se eu fosse escolhida por um governo do CDS ou do PSD para representar o País, aceitava, porque são partidos eleitos pelo povo, têm legitimidade democrática. Agora, se fosse escolhida por um partido de extrema-direita, por uma Marine Le Pen, nunca aceitaria. Sei o que está por detrás daquela ideologia perigosíssima, inaceitável, desumana.
Sempre defendeu as mulheres e o ideário feminista. O movimento #MeToo está a ter um papel determinante na luta pelos direitos de género?
O papel determinante não é pelo #MeToo, é pelo que as mulheres estão a conseguir: estudar nas universidades, reivindicar os seus direitos. Esse movimento é importante, mas não é por ele que as mulheres vão ganhar a sua dignificação. E é preciso ter cuidado com manipulações. A mim, preocupa-me que se diga: “Não volto a ver os filmes do Woody Allen” ou “Não vou ouvir o Michael Jackson”. É muito preocupante começar a fazer uma censura à obra porque o artista, homem ou mulher, teve uma atitude sexual reprovável. Vemos os museus cheios de obras-primas de criadores que tiveram comportamentos execráveis. Mas as obras são o melhor que há no ser humano, é o seu lado redentor. Não o podemos apagar, é a História da Humanidade. Tem de se separar o homem, como bicho com defeitos e qualidades, da obra de arte – se houver obra de arte. E acho que nós, mulheres, temos, cada vez mais, de dizer “não”, de fazer vingar a nossa dignidade.
Referiu-se às vítimas de violência doméstica nestes desenhos. Porque é esta uma realidade tão presente em Portugal?
Mete medo, o nosso país, dito de brandos costumes, ter homens tão selvagens. Recordo-me de que as mulheres eram muito maltratadas nas aldeias. As mulheres aceitavam os maus-tratos, não tinham independência económica. Tenho 70 anos, não foi assim há tanto tempo. Agora, as mulheres têm autonomia económica, independência mental e não aceitam os maus-tratos. E o homem sente-se humilhado. Repare-se que as mulheres assassinadas são aquelas que saíram de casa e tentam recomeçar com esforço: deixam a casa ao opressor, ficam sem nada. Mas eles não aceitam que elas tenham uma vida. Há um machismo muito forte na nossa sociedade.
Também se sentiu marginalizada, vítima, por ser mulher?
Eu nunca me sinto vítima, porque nunca dou importância ao ser excluída. Agora, o ser mulher é mais difícil. Quantas vezes reparo que há homens artistas que expõem em Serralves, na Gulbenkian – têm uma obra menor do que a minha e chegam lá mais depressa. Nunca senti que me empurrassem com força, isso dá nas vistas. Senti, sim, que me omitem – o que é uma forma de censura.
Sílvia Souto Cunha
Entrevista
Visão
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