Igreja Românica de Santa Maria do Azinhoso |
O casal vivia essencialmente da preparação de peles e venda de solas, para o que dispunham de uma dúzia de “pelames” e três “tinarias”, na ribeira do Fresno, junto à ponte. Mas também cultivavam a terra, podendo considerar-se médios agricultores, já que, quando foram presos lhe sequestraram uns 200 alqueires de trigo e 20 de cevada, 22 colmeias e 250 almudes de vinho, guardados em 5 cubas, conforme referido no inventário feito à data da prisão.
A casa de morada era na Rua da Costanilha e foi avaliada em 60 mil réis, confrontando de uma banda com a de Pedro Henriques e da outra com Jerónimo Henriques.(2)
Quando foi presa, Beatriz ia grávida e na cadeia gerou uma menina. Terá sido batizada com o nome de Antónia Lopes, encontrando-se, anos mais tarde, a viver em Medina de Rio Seco, casada com o Dr. Manuel Fernandes, um médico de Miranda do Douro formado pela universidade de Salamanca em 1633, a crer na informação dada pelo irmão Jorge.(3) Dele e dos outros filhos do casal vamos dar breve notícia:
André Lopes, nascido por 1699, mantinha-se solteiro e trabalhava com o pai.
Joana Henriques era casada com António Lopes, mercador, e o casal estava emigrado em Múrcia, reino de Castela.
Henrique Lopes, tendeiro, casado com Jerónima Garcia, vivia em Miranda do Douro.
Francisco Lopes era morador em Carção, onde fora casar com Ana Lopes.
Casado com Maria Lopes, irmã da anterior, estava Jorge Lopes Henriques, nascido por 1610, que foi preso pela inquisição em 1638, em seguida aos acontecimentos de Quintela de Lampaças e depois fugiu para Itália fixando-se em Livorno.(4)
A filha Maria Lopes, a essa altura estava em Lisboa, casada com Francisco Rodrigues, o marquês, de alcunha. E estes tinham dois filhos, de 10 e 4 anos, respetivamente, chamados Diogo e António Rodrigues Marques.(5) Em 1674, depois que a inquisição prendeu seu cunhado e sobrinhos Mogadouro, Maria Lopes fugiu para Inglaterra com o filho Diogo e a nora, Marquesa Rodrigues. Em 1677 ainda vivia em Londres, sendo referida nos testamentos dos ditos filho e nora.
Voltemos atrás, e acompanhemos Beatriz Lopes e o marido no regresso a Miranda do Douro, depois que saíram das celas da inquisição, vestidos com o humilhante saco amarelo decorado com a cruz vermelha. Por isso mesmo, em data incerta, Luís Lopes ter-se-á internado por Castela, a mercadejar, e ali construiu uma nova identidade passando a chamar-se Luís Carmona de Medina. Apesar da vergonha, Beatriz conseguiria refazer sua vida e dar-se ao respeito. A ponto de ganhar a confiança de pessoas como o cónego prebendado da Sé, Rev. Luís Álvares do Vale, que testemunhou a seu favor quando foi presa segunda vez, juntamente com 5 outros moradores da Rua da Costanilha, em 8.8.1643. E estas prisões marcaram o início de uma nova operação de limpeza da cidade.
Nenhuma denúncia específica foi feita contra Beatriz Henriques, antes foram denúncias iguais aos outros moradores da Rua da Costanilha. Foram 3 os denunciantes, cristãos-velhos: um homem e duas mulheres. Estas eram criadas de servir e aquele era o único cristão-velho morador naquela Rua, então a mais nobre e comercial da cidade. Chamava-se Francisco Pires, Trovisco de alcunha. E terá ficado despeitado quando pretendeu comprar uma casa junto à sua, mas foi preterido em favor dos vizinhos cristãos-novos. A ponto que, ele terá dito publicamente:
— Para o ano em qualquer casa ele quisesse morar na rua da Costanilha, ele faria despejar, porque haviam de prender todas as pessoas da nação.
Em substância, os três denunciantes disseram a mesma coisa e as palavras textuais do Trovisco terão sido as seguintes, conforme foi escrito no processo de Beatriz:
— Disse que geralmente na Rua da Costanilha, todas as cristãs-novas varrem as casas de fora para dentro às sextas-feiras, que ele vê; e que aos sábados saem com camisas lavadas.
Um pouco mais colorido foi o testemunho de Catarina Vaz:
— Disse que era verdade que, no tempo que serviu na Rua da Costanilha, pelo ver, que em casa de Francisco Esteves, Alonso de Leão, Gaspar Álvares, Manuel Mendes, Francisco de Castro, Luís Lopes, Diogo Lopes, Belchior Lopes mandam varrer as casas de fora para dentro e que às sextas-feiras mandam varrer as casas, alimpar e compor as candeias e vestiam camisas lavadas e se penteavam (…) e que nas sextas-feiras faziam o comer para os sábados, porque nos tais dias se não acendia o lume senão para quentar o comer (…) E as mulheres dos sobreditos se punham de capelos lavados e se vestiam de festa e não trabalhavam…
Embora as culpas fossem comuns aos outros cristãos-novos da Costanilha, a verdade é que em Beatriz ganhavam particular gravidade porque ela já fora penitenciada. Era relapsa e… para “acabar de atar os molhos” – como em Trás-os-Montes se diz – quando se viu de novo enclausurada em Coimbra, Beatriz meteu-se a fazer jejuns judaicos, certamente pedindo ao Deus dos Céus que a livrasse da prisão. Três dos seus jejuns foram vigiados e descritos no processo. Ganham interesse para o estudo dos comportamentos e gestos e alimentação dos prisioneiros. Veja-se um trecho, descrevendo uma ceia:
— Sendo já de noite e as estrelas no céu, pôs no regaço um pano e ali colocou um pão e trouxe de outra panelinha que tinha umas verduras cozidas as lançou em um prato, lançando-lhe azeite e vinagre e as comeu quase todas sem pão e depois comeu o dito pão e ovo, também com azeite e vinagre e ao cabo de comer bebeu um púcaro de água e depois tomou o pano e embrulhou e lançou sobre uma tábua que tinha posta na parede da casa.
De resto, o seu processo, para além de mostrar um pouco do viver quotidiano de Miranda do Douro, dá-nos algumas informações curiosas. Assim, ficamos sabendo que um casal de cristãos-velhos da aldeia de Cércio ia diariamente a Miranda a vender leite e o vendiam todo na Rua da Costanilha. E também nos fala de umas colchas brancas “que se fazem na dita cidade” de Miranda.
Em sua defesa, Beatriz apresentou contraditas certeiras, logo identificando os denunciantes e provando que eram seus inimigos. De pouco adiantou. Foi condenada à morte. E como a essa altura importava muito à inquisição provar a sua força, perante o rei D. João IV, nada melhor que organizar um grande auto-de-fé. E para o auto ser mais empolgante, foram levados réus de outras inquisições para Lisboa. Foi o caso de Beatriz Henriques, uma das 2 mulheres que, juntamente com 9 homens foram queimadas no auto-da-fé de 25.6.1645.
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
Sem comentários:
Enviar um comentário