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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

A Páscoa da Ressurreição e as mudanças nos rituais, usos e costumes.

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
A Páscoa era para a gente da minha terra, simultaneamente o fim e o princípio do tempo que já era velho e se fazia moço com o pressentimento que anunciava o Deus, que de novo vivo, se passeou por terras da Philistina em direção a Emaús onde se revelou aos dois discípulos, que só O reconheceram ao partir o pão e pronunciar a bênção. Séculos depois a Igreja da minha cidade acarinhava a forma como o povo celebrava a ideia de um Deus ressuscitado, assistindo durante a semana Santa aos Sermões que frades pregadores, do púlpito da Igreja da Misericórdia, eloquentemente, anunciavam o regresso do filho do Homem que vencera as trevas e regressara como Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem. 

Os sermões eram para mim, algo que não perderia em troca de outra qualquer pequena maravilha, pois eu achava que qualquer que pisasse o granito lavrado que constituía a base do púlpito e pousasse as mãos na madeira da balaustrada preta e dourada, estava plenamente possuído do espírito que lhe dava a eloquência que tomava como referência a arte e retórica do Padre António Vieira.
Teria os meus oito/nove anos quando a partir das aulas de Catequese, comecei a imaginar que só mesmo para celebrar a Ressurreição Deus concedia aos frades tal poder de oratória. Nunca fui suficientemente paciente para de boa mente suportar os ofícios religiosos que nesse tempo tendiam a ser longos e monótonos. Outrossim os sermões da semana Santa passavam como se o tempo não tivesse medida e a palavra fosse a única coisa que merecia a minha inteira atenção.
Chegada a Quinta-feira entrava-se no tempo das trevas e a imagem do Chico Brôa, de opa roxa e preta fazendo rugir as matracas começava a tomar forma na minha cabeça e a causar-me uma certa angústia que só o findar da procissão de Sexta-feira Santa dissipava. Lembro-me de visitarmos as Igrejas que nesse tempo escondiam as imagens atrás de panos de cor violeta.
Na Igreja de São Francisco as velas que acesas iam escurecendo paredes e tetos, causavam-me um certo temor, dado que nunca nesse tempo compreendi porque era aquela Igreja a escolhida para servir de resguardo ao esquife do Senhor que no dia seguinte seria carregado em ombros pelos Sacerdotes tendo dentro o Senhor morto.
A verdade é que quando se me apresentava aos olhos, visto de um plano mais elevado, que eu escolhia criteriosamente nas grades do Largo do Tombeirinho, já o meu sentimento era de tristeza atenuada, pois eu sabia que a uma certa hora da noite de Sábado para Domingo Ele se ergueria pleno de Glória e Graça. Passada a procissão e quando reentravam as figuras na Igreja de Santa Clara a vida voltava à rotina e à azáfama dos folares, que para além das dores e temores de um tempo de trevas se perfilavam como a maneira mais conseguida de festejar tal Vitória que sabíamos de antemão o Senhor nos reservar.
A noite de Sexta aproximava-se e a garotada da Caleja com a ajuda dos adultos ajudava na tarefa, quase sede de vingança, de arranjar jaqueta velha, calças rotas e barrete roto do uso e sebento do tirar e por que condissessem com as botas de gáspeas descoladas das solas que mais pareciam bocas de cão faminto que concluiriam a réplica decrepita do Judas Escariotes que não resistiu ao peso da consciência que uma traição mesquinha, condenou pelo menos até ao tempo em que os da Caleja o queimavam num arremedo de Auto-de-fé, depois de o rechearem de muita palha seca e de bombas de carnaval, não sem previamente o dependurarem num arame preso nas janelas de ambos os lados da rua em frente da oficina do Rei no ponto nobre de convivência da tribo a que chamavam o Pontão. Às dez da manhã de Sábado de Aleluia, ao bater da última badalada no relógio da Sé, um dos mais altos pegava fogo ao traste e quando a primeira bomba de carnaval deflagrava, o Rei punha a música e todos dançavam pulando e gritando de contentamento ao som da marcha - Ó José aperta o laço, da grande Maria Clara.
O sábado que encerrava com os últimos folares saídos do forno da Senhora Alice, que ao entregá-los às donas denunciava no rosto branco e belo um certo cansaço e fadiga, mostrava ainda assim nas comissuras dos lábios finos um sorriso de contentamento pela certeza do dever cumprido e na esperança que o Domingo de Páscoa lhes trouxesse a ela e à família a Graça do Senhor Ressuscitado. E quando o negro das pedras do Pontão começava a não se ver, ou porque a vassoura fosse boa e a mão diligente, ou a chuva houvesse levado os restos de palha ardida, o garotio ia dormir, pois amanhã "é que vai ser".
De manhã, mesa posta e o folar, amarelo e cor de tijolo com laivos brancos no interior, que a mãe escancarava para todos verem, café de cafeteira de lume na qual para finalizar se metia uma brasa incandescente, "q'é pá sentar" e açúcar do amarelo que adoça mais c'ó outro e era um paraíso que se eu durasse mil anos sempre no dia de Páscoa haveria de reviver como o tenho feito invariavelmente, sem curar de tempo ou lugar, até hoje mesmo, que hoje a substância já não existe, restando mesmo assim a memória fiel aos odores e aos sabores.
Comidas as últimas forgalhas do "carolo" de folar e sorvido o último gole de café, qual bando de estorninhos púnhamo-nos ao fresco que a missa começava brevemente e o Senhor Cónego Ruivo tinha que se despachar, pois devia nesse Santo dia presidir ao Compasso tendo como que às suas ordens os fiéis rapazes do Grupo XVIII, Agrupamento Rola, Escuteiros do Cónego Albano, homem pequeno e franzino que eu sempre achei ser irmão do Gandhi. Prontos e fiéis, de sineta na mão, o Fernando Macacão, com a Imagem e a Cruz, o Zé Monteiro, com a saquita das ofertas, o Cantoneiro Lobato, que vinha quase de Grandais e chegava sempre antes dos outros e mais uns quantos, José Luís Pinheiro, o Cobra filho do Senhor Hernâni e da tia Maria Biciclet(e) e uns quantos mais, de quem me lembro mas já não sei que alfaias carregavam. Entrados na Cinco de Outubro, a sineta tilintando, a ansiedade começava a crescer. Até neste dia a Caleja era diferente, não me enganarei se disser que o pecúlio ali recolhido era irrisório se comparado com a Rua escrutinada exatamente antes, mas o Senhor Cónego entrava taciturno e saía a rir, tais as provas de afeto e lealdade de graúdos e miúdos. 
Os do Compasso eram dos nossos, tu cá tu lá e tirando o Zé Monteiro e o Lobato jogavam todos no Hóquei e no Desportivo. 
E assim se passava a manhã do Domingo de Páscoa, que no meu tempo de menino era lindo e não burguês. O rico e o pobre já que mais não fosse, por respeito a Jesus, nosso Senhor eram iguais aos olhos do Pai e deveriam sê-lo aos olhos da Igreja que Ele fundara. A igualdade era uma certeza pois até o folar era alimento obrigatório em todas as mesas, nesse dia redentor.
Olhando para trás no tempo, vejo nitidamente rostos e coisas, usos e costumes, que durante séculos se conservaram e dos quais o povo tirava prazer e saber. Prazer, porque acreditava que se o mundo não era como Cristo o prometera, um dia seria, saber porque os homens daquele tempo, não tendo canudos forjados em Academias, sabiam do seu ofício e trabalhavam para se sustentarem eles e a sua descendência e hoje eu reparo e até já fiz algumas estatísticas que não sendo de grande ciência me dizem: - De todos os meus condiscípulos não houve um só que não tivesse aprendido uma arte ou ofício. Foram trolhas e afins, sapateiros, alfaiates, tipógrafos, mecânicos, eletricistas, um pasteleiro, eu próprio, que quando hoje escrevia esta crónica concluí que fui o primeiro nado e criado cá, a sê-lo de facto e jure. Gente que estudou e se fez funcionária nos vários serviços de Estado, Banca e Seguros, militares e para-militares que serviram com honra e brio a Pátria que outros achincalham e a quem a Pátria hoje, faz petulantes e gananciosos. E aqui vou-me permitir uma afirmação que chocará alguns e aos quais peço desculpa pela ousadia, mas tudo isto por negligência da Cúpula da Igreja e do Estado que não souberam conduzir os fiéis uns e o povo, os outros, corrompidos que foram pelos anúncios de "dolce vita"q ue cantavam as sereias que "piano,piano" chegaram à costa. 
Ó Semana Santa e Páscoa da minha meninice, que nostalgia me causa a tua lembrança à qual me falta acrescentar ainda a memória de um poema lindo, que o é por ser simples e terno e haver sido escrito em hora de inspiração singela. Tocam os sinos / Na torre da Igreja/ Há rosmaninho e alecrim pelo chão/ Na nossa aldeia, que Deus a proteja/VAI PASSANDO A PROCISSÃO/. (António Lopes Ribeiro )

continua...



Bragança , Domingo de Páscoa, 21 de Abril de 2019
A. O. dos Santos
( Bombadas )

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