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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 4 de junho de 2019

A Penúltima Estadia

Não se trata duma questão de créditos públicos ou de meios privados: nunca será agradável dizer-se, quando entrarmos para ali, voluntariamente ou forçados, num lar de terceira idade onde será o nosso último alojamento enquanto vivos, a nossa penúltima morada. Qualquer que seja o nosso estado físico ou mental, qualquer um compreenderá muito bem a mensagem e quando nos “depositarem” provisoriamente, é bem claro que é para passar entre essas paredes novas o resto dos nossos dias.

Que lhe chamemos Ehpad, lar de terceira idade, residência sénior ou Residência dos sonhos o resultado dum internamento desses é sempre o mesmo aos olhos dos visitantes. Se os houver. Estacionam o carro no parque, com a maior das delicadezas. Através das enormes portas de vidro, entreveem as cabecinhas branquinhas em cadeiras rolantes ou fixas, cabeças inclinadas para o chão ou, quando dormem, para o lado.

Depois de se atravessar a porta é possível saudar a companhia toda. Ninguém liga nem responde aos “bom dia minhas senhoras e senhores”. Na receção não está ninguém. Fugindo pela esquerda, vai-se por corredores onde outros pensionários se encontram estacionados num silêncio pesado. Parecem estar mais ou menos bem. Cruzam-se olhares cansados, esboços de sorriso, gestos com a mão, desajeitados e pouco naturais. Por fim vê-se chegar uma blusa duma ou doutra cor. “Venho visitar a Sr.ª Tal.” “Quarto 22, primeiro andar”. Deve estar a terminar a sua sestazita de certeza.” Com um gesto, indica o elevador. Será, nesta fase, o único contacto com a administração da instituição a quem foi confiado, um dia de extremo cansaço e de péssima consciência, o cuidado de guardar o vosso ente querido, aquela senhora idosa algo desorientada que andava meio perdida na rua ou se enganava à procura do seu próprio quarto.

Aqui, toda a gente sabe, toda a gente adivinha e é perfeitamente claro. Não se está ali para brincadeiras mas sim para esperar a morte, o mais calmamente possível, sem desarranjar a vida dos ativos. Para entreter algumas ilusões, deixam levar um móvel ou outro bem encerado com gavetas onde estão conservados os tesouros dos tempos de glória; fotografias dos netos, folhetos sobre o Lar, imagens da virgem Maria ou de S. António, fotos de Fátima, um bloco de notas onde já não há força para escrever seja o que for. Uma agenda vazia. Rebuçados para a tosse. Um fio de cor sem qualquer significado. Uns postais de boas festas. Um livro talvez.

Com efeito, o que significa “esperar a morte”? Estar mergulhados numa meditação profunda, estruturada, com entrada, desenvolvimento e conclusão? Não, será mais uma lenta cascada de pensamentos sem ordem nem estrutura. Sonhos lânguidos, imagens moles que circulam no que resta de sensações e de cérebro vivo. Espera-se pela hora do almoço anunciada pelo remoinho ruidoso dos carrinhos para o lado do refeitório. Blusas coloridas dançam à volta, uma delas compõe a manta mal posta no colo dum senhor, endireita umas pobres costas meio inclinadas.

Durante a tarde, simpaticamente, são propostas “actividades” ou “animações” que agradam muito a alguns e muito pouco a outros. Porque mesmo aqui há espíritos mais fortes, geralmente os homens, que guardaram a força de desprezar tudo o que está ao seu alcance, homens que, toda a vida, se mostraram esquisitos perante o colectivo sobre o tema do “muito pouco para mim isso”. Envelhecemos tal como fomos. A senhora trémula treme com todos os membros enfraquecidos, a medrosa tem medo até da sua sombra e sobressalta ao mínimo ruído, o amuado melindra-se incessantemente.

Todas estas descrições serão excessivas? Na ótica de muitos, parecerão mesmo desesperantes, caricaturais e demasiado negras. Contudo são imagens que nos vêm espontaneamente ao espírito quando ouvimos, episodicamente, que o debate público versa sobre o tema dos lares de terceira idade insuficientemente dotados em créditos, em lugares, em pessoal, em conforto e em número.

Pode acontecer que algumas recordações de felicidade fugitiva saiam do cérebro quando se pensa num aniversário organizado com os filhos para os 95 anos da tia Maria ou quando a avó perto dos 100 anos que adorava Jesus e o vinho do porto mostrava um pequeno sorriso quando bebia um copinho. Mas estes momentos de alegria cheios de sorrisos e de recordação dos tempos passados seriam de alegria aos olhos dos pensionários eles-mesmos? Ficávamos contentes do efeito aparente das nossas visitas pouco frequentes. Aliviávamos as nossas consciências. Sabíamos que repartiríamos para a “verdadeira vida”, fora, com o ruído dos carros, das motas que atravessam a cidade como foguetões estridentes. À noite, projetávamos os nossos próprios futuros. Como é que serei eu com essa idade? Qual o melhor lugar para se preparar para morrer? Num hotel cheio de sol no Algarve, numa casa na aldeia? No hospital onde nos conduziria talvez a doença que não esperávamos ter? Em casa, claro, sonhávamos com isso: onde a dignidade dos humanos passa por uma autonomia continuada e com referências estáveis. A nação não sabe o que fazer com os seus mais velhinhos, estes além de seniores, aqueles para além da terceira idade, estas pessoas da última idade, impotentes muitas vezes, esgotados e desfeitos quase sempre, perdidos, e que ficam muito caros à comunidade. Os profissionais que os acompanham para as últimas circunstâncias das suas existências são duma entrega sem limites: faríamos nós a metade do que eles (sobretudo elas) fazem por esses campesinos? O seu tratamento é um dos maiores escândalos da nossa República. Antes de nos lamentarmos sobre a nossa sorte de vivos provisórios pensemos nesta parcela de humanidade que amontoamos nestas penúltimas estações antes da auto-estrada da vida eterna e que tenta conjurar o medo ancestral perante a morte e resistir à angústia da nossa finitude.

Na sabedoria da noite, deve haver lugar para a serenidade e o abandono. Temos a vida toda para nos prepararmos. Agradeçamos desde já aos que nos poderão ajudar, perto do fim.



Adriano Valadar
in:jornalnordeste.com

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