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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A Mesa de Santo Estêvão de Samil

ágape
Um legado da proto-história e romano ou medieval/moderno?

A classificação dos Caretos de Podence como Património Imaterial da Humanidade acendeu uma luz potentíssima sobre o Distrito de Bragança e o seu vastíssimo património imaterial. Legado que tem sido estudado todo junto, no mesmo feixe, atado pelo cordel fornecido por astures, zoelas e romanos. Mas terá todo a mesma etiologia, a mesma origem? Este texto pretende lançar o debate em torno desta questão.

1. O Conselho de Samil.
A mesa comunitária de Santo Estêvão é uma forte herança cultural do antigo Conselho de Samil. Foi este órgão, do poder dos lavradores, que governou a freguesia durante mais de sete séculos. Governar a freguesia exigia uma organização de pulso forte. Era preciso estabelecer regras, posturas e leis, onde os deveres e direitos de cada vizinho ficassem bem definidos. Não podia haver dúvidas na sua aplicação. Estes procedimentos eram tanto mais complexos quanto, então, todos os prados, lameiros, malhadas, devesas e soutos eram comunitários. Ninguém tinha pastos próprios nem lenhas. E, numa freguesia em que os vizinhos, totalmente dependentes do lume, e mais boieiros e pastores do que lavradores, já estamos a ver a girândola de dificuldades, içadas pela gestão anual das pastagens e soutos comuns.

Na verdade, estas áreas -- que não eram elásticas -- confrontavam-se com um número de vizinhos em ascensão desde finais da Idade Média, no contexto de numa economia de base essencialmente boieira e pastoril. Ou seja, as pastagens e soutos estavam a tornar-se num recurso escasso, porque muito solicitado por bois, ovelhas, cabras e porcos, animais exigentes de espaços amplos – e específicos para bois e o gado miúdo -- espicaçando a conflitualidade territorial entre os vizinhos da freguesia, sobre o uso dos pastos e lenhas.

2. A Mesa do Conselho de Samil e Alfaião.
Para impedir a explosão das disputas, contaminando o bom governo da paróquia, os chefes de família -- que só eles constituíam o Conselho -- reuniam-se todos os anos depois do Natal. A discussão da ordem de trabalhos, sempre muito longa e espinhosa, prolongava-se depois à volta da mesa, cujas vitualhas eram cozinhadas pelos lavradores, com exclusão total de filhos e mulheres. Sublinhemos esta excepção: num tempo em que só as donas de casa tomavam conta da cozinha, os homens quebravam aqui a regra e assumiam, eles próprios, o comando do lume, dos temperos e do ponto da ebulição dos potes…

Emulando a mimesis ou imitatio do ágape, ou seja, a imitação da refeição comunitária dos primeiros cristãos (S. Paulo, 1ª Coríntios, 11, 20, 33 e Actos dos Apóstolos, 2, 42 e 20,7), a mesa colectiva do Conselho de Samil apresentava-se assim como o instrumento mais eficaz para dirimir os conflitos, desafiadores da indispensável harmonia entre os lavradores, e onde todos podiam participar na gestão dos territórios ganadeiros e pastoris comuns, digerindo, no interior do Conselho, as inevitáveis tensões acumuladas durante o ano. Por outro lado, a Mesa era o sítio de eleição para refazer as relações pessoais entre vizinhos, desavindos pelos embates atiçados no interior de uma comunidade complexa, e cujos interesses eram contraditórios – os mesmos pastos e soutos para uma população em crescimento constante. Quer dizer, à Mesa do Conselho, sorvia-se não só o tinto da Fonte da Telha e da Carriona, cujas virtudes o indicavam como o melhor conciliador para relançar e reforçar as pontes de comunicação entre os participantes, dissolvendo quezílias e ressentimentos, como também se sorvia o sopro da ataraxia -- a serenidade e o autodomínio do espírito – que era a mezinha, sugerida por Epicuro e pela Escola de Atenas, no séc.IV a.C., para arrefecer as convulsões quentes das cabeças dos vizinhos de Samil, no contexto de uma acesa disputa pela gestão dos melhores bocados do termo da freguesia, que não chegavam para todos…

Mas as mesas comunitárias do nordeste transmontano têm sido lidas à luz do legado cultural Idade do Ferro e da Romanização. É dentro destas balizas temporais que o Abade de Baçal escreve: (…) é escusado dizer que estas festas perpetuam o culto báquico e a liturgia das bacanais à sombra do hagiológico cristão (Alves, IX,294). Pelo mesmo caminho tem andado Pinelo Tiza, meu querido amigo, nos seus profundos estudos sobre as festas solsticiais, entre o Natal e os Reis, quando assume que (…) tudo depende do relacionamento que a festa pagã foi mantendo com o cristianismo (…) (Tiza, 2004, 15).

Ora, como se infere deste ponto, a nossa leitura da Mesa de Santo Estêvão de Samil propõe outras baias cronológicas para a sedimentação no tempo deste extraordinário património imaterial da freguesia. Reforçamos assim o que escrevemos atrás: se o Conselho, extinto em 1860, foi o órgão do governo da paróquia, acompanhando-a desde a sua fundação na primeira metade do séc. XII – durante sete séculos -- já quanto à sua refeição, que fechava a ordem de trabalhos anual, é mais difícil circunscrever-lhe os contornos temporais. Mas o facto de ter resistido ao fim do Conselho, no seio do qual tinha nascido e lançado raízes profundas, dá-lhe garantidamente um lastro medieval/moderno, reforçado pelo seu total fechamento às mulheres, mesmo quando viúvas e cabeças de casal. Em Alfaião, a origem da Mesa de Santo Estêvão pulsa na mesma direcção da que propomos para Samil, remetendo-nos para a reunião do conselho vicinal (…) onde se discutiam os assuntos locais (Tiza, ibidem, 165).

3. O Fim do Conselho: a mesa mantém-se.
Em 1860, o Conselho foi substituído pela Junta da Paróquia. O Conselho, esvaziado das suas funções, acabava. Mas o que não acabou foi a sua componente palatal, de raízes bem fundas no tempo: os chefes de família, antigos membros do Conselho, continuaram a sentar-se, sozinhos, à sua mesa comunitária, que, mantendo a estrutura participativa anterior, só incluiu os rapazes, quase um século mais tarde, e as mulheres, já após o 25 de Abril de 1974, depois de porfiada luta, conduzida pela D. Celeste, de Cabeça Boa e pela Irmã Céu, apoiadas pela eficaz parenética do pároco de então, o Cónego Abílio Miguel, movimento em que se integrou mais tarde a minha tia Maria Neto, entre outras mulheres de têmpera rija. Ou seja, apesar de terem perdido o poder de governar a freguesia, a mesa mantinha-se, há menos de 70 anos atrás, exclusiva dos vizinhos, cabeças de casal, masculinos, tal como acontecia um século antes, quando o Conselho foi extinto.

4. A transição das duas mesas.
A transição entre as duas refeições – a do Conselho e a que chegou até nós – beneficiou de quatro factores decisivos. Primeiro, a mesa já se tinha tornado uma tradição, isto é, o tempo já a tinha enraizado na memória colectiva da aldeia. Segundo, a boa mesa dificilmente se perde. O céu bucal nunca deixa cometer crimes destes… Terceiro, era uma criação dos segmentos mais poderosos da freguesia – a nata dos lavradores, cuja influência continuou decisiva. Por último, foi capaz de granjear a aquiescência do então Reitor da paróquia, Padre José Manuel Rodrigues e do Reitor do Santuário do Divino Senhor de Cabeça Boa, Padre Lino António Gomes, nossos conterrâneos, e ambos elementos cimeiros da nova Junta da Paróquia.

5. Santo Estêvão veio depois.
Em 1758, o actual patrono da Mesa ainda não tinha o seu nicho na Paroquial de Samil (Capela et alii, 325). Um século depois, a nova Junta da Paróquia ofereceu “vinho ao povo”, no valor de 600 reis, e não à festa de Santo Estêvão. Ou seja, o novo Patrono da mesa, morto à pedrada em Jerusalém, cerca do ano em 30, chegou muito mais tarde, sucedendo assim ao patrocínio do extinto Conselho. Tratava-se de uma opção natural, porque o aniversário deste primeiro mártir da Igreja – 26 de Dezembro -- coincidia com o calendário da antiga mesa comunitária, criada sob a alçada do Conselho.

6. A Casa de Santo Estêvão, o bacalhau, o azeite de Palhares e os homes boos de Samil…
A mesa, que foi durante muitos anos tão grande como o adro da Igreja, encontrou finalmente pouso definitivo na Casa de Santo Estêvão. É aqui que hoje somos desafiados para um ajuste de contas com o famoso bacalhau, de forte costado lombar. Duelo que só pode terminar com o esqueleto limpo do gadídeo na orla do prato... A nadar sobre o ouro líquido de Palhares, como dizia Homero há 2 800 anos, a posta, de alta estatura, oferece-se, em finas lascas, ao menor esforço da faca!…Obrigado, homes boos do antigo Conselho de Samil e antepassados nossos … À mesa, que vós pusestes há séculos e que continua posta, repetiremos sempre: nunca esqueceremos o vosso feito heróico!... As nossas hossanas vão também para a Junta da Freguesia, que levantou os aposentos de Santo Estêvão, onde hoje suamos, em Dezembro, escorrências de felicidade!...

7. Quatro preceitos para um bom desempenho na mesa de Santo Estêvão de Samil…
Querendo ser um dos convivas, vá fazendo os preparativos para a exigente liturgia, que se está anunciando… Para participar nela, siga, com rigor canónico, os quatro preceitos seguintes:

 Os olhos, que são sempre os primeiros, têm de apresentar-se bem abertos e desembaciados. Num primeiro momento, atónitos, ao contemplar a posta, fumegante, com grandes dificuldades em sujeitar-se às dimensões do prato …, depois, atentos, dirigindo a faca no assalto, sem pressa, ao arcaboiço lombar do gadídeo …
O nariz e a respectiva pituitária devem mostrar-se prestadios e desobstruídos para captar os primeiros e os mais etéreos odores…;
O céu bucal e a língua, sobre os quais recai o peso de maior responsabilidade, comparecerão com todas as papilas afinadas e intactas para registar e identificar toda uma conexão de fluxos nervosos, que nos fazem comungar da essência dos momentos únicos!...
Finalmente, uma cautela especial: a pressa, grosseira e cega, está, obrigatoriamente, banida da mesa…

Samil, Dezembro de 2019
Ernesto Albino Vaz Arqueólogo

Bibliografia
- ALVES, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, 2000, vol. XI.
- CAPELA, José Viriato e outros – As Freguesias do Distrito de Bragança nas Memórias Paroquiais de 1758, Braga, 2007.
- TIZA, António Pinelo – Inverno Mágico, Ritos e Mistérios Transmontanos, Ésquilo, 2004, Lisboa.
- Livro das Sessões da Junta de Paróquia de Samil, 1860-1917.
- Epístolas de S. Paulo e Actos dos Apóstolos.

Ernesto Vaz (Arqueólogo)

1 comentário:

  1. Muito bom!
    Uma genuína descrição da nossa identidade.
    Somos assim, sem tirar, nem por...

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