Bragança. As bermas da estrada, os galhos das árvores e as ervas daninhas estão cobertas pelo branco e gélido sincelo. A entrada na cidade faz-se sob nevoeiro cerrado. O frio obriga a várias camadas de roupa para se poder caminhar pela cidade que testemunhou o episódio brutal de violência na madrugada do dia 21 de dezembro. São onze e meia da manhã quando o pai de Luís Giovani Rodrigues chega ao Instituto Politécnico de Bragança (IPB). “É a minha primeira viagem a Portugal e já é a terceira vez que venho a Bragança, 250 quilómetros do Porto aqui, imagina?”. Rodrigues faz contas a todas as voltas que já deu desde que encontrou o filho internado, no Hospital de Santo António, no Porto.
Na passada segunda-feira, estava em Lisboa convencido de que viajaria para Cabo Verde esta semana. A intenção seria a de poder levar o filho para a realização do funeral, mas os planos mudaram drasticamente. Ao contrário do que era suposto para esse dia, Reinaldo, primo de Giovani que informou o Contacto sobre o acontecido, não havia sido autorizado a reconhecer o corpo do jovem cabo-verdiano que morreu no dia 31 de dezembro de 2019, depois de dez dias de internamento, consequência de um espancamento em grupo, nas ruas de Bragança.
“Disseram que a autópsia não foi conclusiva, que tem de ter nova peritagem. A Judiciária não me informa de nada, eu que sou o pai. Não entendo nada disto”, indignava-se Rodrigues perante as dez pessoas sentadas em círculo nos sofás vermelhos da sala-de-estar decorada com quadros de diferentes equipas e títulos do Benfica, numa colina da Serra da Luz. “Ele só caiu no chão porque levou com uma pancada na cabeça. Giovani morreu porque levou uma grande pancada, os médicos sempre me disseram. Só quero que seja feita justiça, Giovani não merecia isto. É muita dor um pai ver um filho no estado em que Giovani estava no hospital, só se ele tivesse caído de um terceiro andar é que ficava assim com a cabeça”.
“Foi a primeira vez que Giovani saiu à noite”, contava o pai.
A lógica não parece estar do lado desta história, nem a sorte. “Foi a primeira vez que Giovani saiu à noite”, contava enquanto mostrava no telemóvel fotografias do filho de quem ainda se conseguiu despedir. “Ele estava sempre a sorrir. Estou feliz que confirmaram que ele não esteve envolvido na confusão do bar, aquele menino nunca se meteu em confusão. Em Monsteiros, Giovani era um menino adorado por todos”, conta num dos momentos de silêncio depois de uma das senhoras presentes que chorava alto, lentamente, quase como numa oração cantada ter acalmado. Os olhos de Rodrigues estão em lágrimas, porém não tira o olhar da televisão.
O anfitrião da casa, sempre que entrava na sala trazia consigo mais bolachas, sumos ou mais uma chamada de um ente querido para atender. Rodrigues, que fala sempre com muita calma, sente-se obrigado a comentar: “tenho mesmo muitos amigos, a cultura Africana é muito diferente da dos países mais desenvolvidos, é como se fossemos todos família”. Foi numa das sessenta e oito chamadas registadas nesse dia que se confirmou: na manhã seguinte teria de viajar novamente para o Porto e quarta-feira para Bragança, “vou encontrar-me com um advogado que o Instituto terá facilitado com a Embaixada de Cabo Verde, segundo percebi”.
Orlando Rodrigues, presidente do Instituto Politécnico de Bragança. Foto: Rui Oliveira/Contacto |
Instituto Politécnico de Bragança.Foto: Rui Oliveira |
Ao meio dia, ao átrio do pavilhão, cabisbaixos e de passo lento, chegam os jovens que acompanhavam Luís Giovani Rodrigues na noite de 20 para 21 de dezembro de 2019 e que também foram vítimas de agressões. Disponibilizaram-se a responder a algumas perguntas sobre o que se terá passado nessa madrugada, porém por motivos de preservação da identidade das vítimas, o Contacto não irá revelar os nomes e os rostos dos mesmos.
Tratam-se de três rapazes magros de estatura média, o mais novo tem 19 anos, o do meio 20 e o mais velho tem 23 anos. O mais alto dos três não ultrapassará os 175 cm de altura. Com aparência física de três adolescentes, apenas um deles apresenta vestígios de pêlos faciais, mas nenhum dá indício de músculos trabalhados. O ar frágil e pesaroso está estampado nos rostos e serão os olhos a falam mais alto do que as vozes, que levaram o seu tempo a chegar.
O jovem conta que “um indivíduo português” o terá empurrado no peito ao que ele terá também respondido com um empurrão. Terá sido depois do jovem cabo-verdiano levar “um murro no pescoço” que chegaram pessoas do bar para os separarem.
O pai de Giovani Rodrigues já havia avisado “quando os virem ainda vai ser mais difícil de acreditar”. E à medida que se vai contando em frases curtas o que se lembram daquela noite, a imagem recriada torna-se ainda mais absurda quando temos os jovens agredidos à nossa frente.
O mais velho dos três rapazes, confirma o que Reinaldo Rodrigues, primo de Giovani, havia narrado ao Contacto. Dentro do estabelecimento Lagoa Azul tudo “começou comigo, mas lá fora bateram em nós os quatro”, conta pausadamente e em tom muito baixo. O jovem conta que “um indivíduo português” o terá empurrado no peito ao que ele terá também respondido com um empurrão. Terá sido depois do jovem cabo-verdiano levar “um murro no pescoço” que chegaram pessoas do bar para os separar. O Contacto confirmou com uma das testemunhas presentes no bar, que não pretende ser identificada, que Giovani não fez parte deste confronto no interior do bar.
O bar Lagoa Azul, onde tudo começou. Foto: Rui Oliveira |
Um dos agressores terá olhado para o jovem de 23 anos e terá dito, em português, “aí está o caralho”, servindo de mote ao início das agressões. Terá sido nesse espaço de tempo que os restantes elementos se terão juntado aos primeiros quatro. “Vieram mais para cima de mim”, conta enquanto descreve que os restantes membros escondidos formavam agora um grupo de 10 a 15 elementos que terão cercado os quatro jovens cabo-verdianos enquanto lhes batiam.
Foi nesse momento em que tentaram socorrer-me que o Giovani foi brutalmente espancado na cabeça.
Os amigos ter-se-ão tentado socorrer mas terão sido “todos espancados”, os agressores não terão falado durante a agressão “estavam só a descarregar". Enquanto o jovem mais velho fala, de mãos entrelaçadas, veem-se ferimentos nos dedos, ainda marcas do sucedido. Os agressores, que as vítimas confirmaram serem todos homens, tinham com eles “paus, cintos e ferros”. “Foi nesse momento em que tentaram socorrer-me que o Giovani foi brutalmente espancado na cabeça”. Um dos recém-chegados a Portugal, o mais novo, descreve que foi criado um círculo à volta do Giovani, e que ele terá sido agredido com uma paulada, mas que também levou em mais sítios.
Tudo terá acontecido ao mesmo tempo, “nós também estávamos a ser violentados, mas conseguimos entrar no círculo do Giovani para o tirar. Ele estava no chão. Dois conseguiram distrair o resto e tirar o Giovani. Lutámos a tentar defender e conseguimos correr os quatro juntos. Só havia uma saída porque o outro lado estava fechado com indivíduos do grupo”. Os jovens terão corrido pela rua e sido perseguidos pelo grupo “eles correram atrás de nós".
Terá sido apenas quando um carro patrulha da polícia “veio por esse lado que eles fugiram. Nós descemos umas escadas que vão para a avenida principal e conseguimos salvar-nos nesse momento. A polícia circula nessa área e eles fugiram”. Os jovens dizem que a polícia deverá ter sido avisada e o Contacto confirmou através do documento de auto de queixa completo que “nas imediações do local onde a testemunha informou terem ocorrido as agressões foi comunicada a esta polícia uma situação de alteração da ordem pública, a qual ficou participada".
Os Três amigos que estavam com Giovani no local e que também foram agredidos Rui Oliveira/Contacto |
Os três rapazes terão apresentado queixa juntos. Já em modo de encerrar o assunto, à saída da sala em que falaram ao Contacto, afirmam que nunca tinham visto os agressores antes da noite das agressões. “Estou com de saudades de casa”, diz o mais jovem dos três rapazes que com “apoio das pessoas” têm vivido este pesadelo desde o dia 21 de dezembro de 2019. A olhar para o céu agora descoberto, o mais alto dos três rapazes encerra a conversa com um suspiro. “A diferença é que os pesadelos passam”.
O corpo de Giovani foi esta quinta-feira reconhecido pelo pai e levado à funerária para ser transportado para Cabo Verde, em data ainda desconhecida.
Ana B. de Carvalho
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