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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 13 de novembro de 2021

Estórias à Lareira: Ti Maria Benta

- Rosa, ó Rosa?

- Sim, meu pai.
- Vai ao cabanal e traz uma gavela de vides pra acender o lume, se fazes favor. E há outra coisa, antes que me olvide: depois da janta, vem até cá o Zé Júlio e a mulher. Combina com a tua irmã e arrumem esta casa, que nem um brinquinho!
- Pai, vou fazer um bolo para lhes servir.
- Tens sempre boas ideias, minha Rosinha! E de caminho, traz uma cesta de castanhas para assarmos quando eles chegarem.
- Vou chamar a Judite para me ajudar. Deixe tudo comigo, meu pai, não o vamos deixar ficar mal com as visitas.
- És um anjo, minha querida. Vai lá, e cuidem de tudo. O que seria de mim sem vós?! Um pobre desgraçado, isso é que era!
Viúvo há um bom par de anos, via nas filhas a companhia que lhe faltava desde a morte da sua tão querida esposa, Maria Amélia, a quem amara profundamente, mais do que a si mesmo. Fora um marido exemplar, amantíssimo, prestimoso e um pai que rodeava as pequenas de amor, carinho e atenções. Num ápice, viu fugir-lhe dos braços a sua amada esposa, como água que se esvai entre os dedos. Uma doença tenebrosa, que aparecera silenciosamente, corroeu-a vorazmente em poucos meses. As jovens eram a alegria da casa. Vendiam beleza e vivacidade e os rapazes da aldeia bem que lhes achavam graça, sempre que as viam passar par ir à mercearia ou acompanhavam o pai à missa do senhor Pe. Adelino. Os rapazes… ficavam a olhar de soslaio vendo-as passar com seus belos vestidos rodados, que a madrinha lhes fazia, e laços de seda nas longas tranças, encantando e dependurando qualquer coração feliz. Que raparigas! Perfumavam, de alegria, todos os sítios por onde passavam. Eram as meninas mais apreciadas em toda a aldeia. O pai e a mãe, tinham-se esmerado na educação que lhes deram e elas brilhavam em resplendor sempre que alguém lhes perguntava algo. Sabiam todas as matérias, porque eram muito interessadas em estudar e questionar. Até o senhor Pe. Adelino, com grande vaidade, lhes fazia perguntas na frente de outras pessoas. Sabia que as respostas eram divinamente bem respondidas, deixando-o em estado de levitação de puro prazer.
Jantaram, como de costume, às 19 horas, um delicioso arroz de cabidela, feito com uma galinha da capoeira que, havia uns tempos – isto das galinhas também tem o que se lhe diga -, teimava em fazer greve aos ovos.
Judite, franzia o sobrolho ao jantar; e o pai, atento a todos os pormenores da filha…:
- Se a galinha não põe ovos, para que nos há de servir? Diz-me lá, Judite?
- Paizinho: já sei que vai troçar de mim. Mas afeiçoei-me a ela!
- Ó pequena! Querem lá ver agora que não podemos comer da criação?! Então para que nos servem as galinhas, os coelhos, os patos, os perus, os porcos, o gado…
- Tem razão, paizinho, mas…
- Anda cá, pequena. – Ti Joaquim abraçava a filha e beijava-a na testa, com a mesma delicadeza com que se beija uma rosa branca. – Come lá o arrozinho que está uma maravilha! A nossa Rosa tem cá uma mão prá comida… Bem sabemos a quem saiu. A comida da vossa mãezinha… Meu Santo Cristo! Quantas saudades me moem dentro do peito…. Vamos lá, meninas, toca a comer antes que arrefeça. A comida depois de fria não presta pra nada. – nisto, os olhos começavam a encher-se-lhe de água.
Jantaram sem grandes conversas, nada mais que as circunstanciais. As pequenas, levantaram a mesa e puseram-se a arrumar a cozinha, sabiam que dali a nada iriam chegar as visitas.
Ti Joaquim deixou-se ficar sentado no escano à lareira. Pegou nas tenazes e foi ajeitando as brasas, sem grande rigor. O fole, que servia para atiçar o fogo, ficou-lhe entre as mãos como que a servir de instrumento de ajuda à meditação em que acabara de entrar. Só despertou quando se ouviram vozes:
- Ó da casa, está por aí alguém?
- Entre que é! Vão entrando, se faz favor. – dizia Ti Joaquim com o rosto vestido de um novo semblante. Adorava receber visitas e, sobretudo, gostava da companhia de pessoas arejadas, podia ser que acrescentassem algo ao seu dia.
- Então boas noites, às meninas e ao Ti Joaquim… - dizia Zé Júlio, com um sorriso de orelha a orelha; e a mulher, secundava-o num ar sereno de quem sabe vestir delicadeza.
- Entrem e não façam cerimónias. Faz de conta que estão em vossa casa. Ora sentem-se, se fazem favor.
E foram-se acomodando nos dois escanos que estavam de frente a frente, junto à lareira. Rosa e Judite, pulavam no seio de alegria com a vinda das visitas. Era uma lufada de ar fresco que lhes entrava casa adentro. Muito prestimosas, foram servindo bolo de chocolate e licor de noz verde caseiro. Trouxeram, também, a cesta das castanhas que Ti Joaquim de imediato vazou no assador, dependurado na argola da lareira. Foram assando nas altas labaredas, que alumiava mais do que a própria luz da cozinha. Era dia de Todos os Santos; dia de visitar os nossos no cemitério, trazendo memórias impregnadas em saudades. As pequenas, sentaram-se junto do pai. Sabiam o resultado destas visitas – havia sempre alguma novidade que acabaria por saltar no meio da amena cavaqueira em redor da lareira.
Depois das formalidades iniciais, perguntando por todos e pela saúde de cada um, assim como pelas lides do campo, querendo saber das colheitas e como é que tudo corria, a conversa começou a correr mais solta – talvez o licor, delicioso como nenhum outro naquela aldeia, ajudasse a soltar a alma aos convivas.
- Hoje, tenho uma história… Bem… não é uma estória. Passou-se mesmo de verdade. Podeis fazer fé que, o que vos irei contar, é a mais pura das verdades. A ver se fazeis caso. Há uma data de anos, morava aqui a ti Maria Benta - acho que nenhum de vós chegou a conhecê-la. Não interessa, vamos pra diante. Era uma mulher muito recatada, nunca se via na rua a não ser para ir ao soto aviar-se. Ah! Já me estava a esquecer! Também gostava de ir à missa, ao domingo. Esta mulher tinha dois filhos: um rapaz e uma rapariga. Ambos estudavam em Chaves. Era costureira e, diziam as mulheres que lá iam encomendar as roupas, tinha mãos de fada. O certo é que nunca se lhe conheceu o marido. Uns diziam que tinha abalado pra Lisboa à procura de trabalho e por lá ficara sem retorno; outros diziam que tinha morrido; o que vos posso garantir é que nunca se soube quem era o pai dos filhos, pelo menos eu, nunca dei por tal sujeito! Mas o que é que isto tem de especial, dizei-me vós?
Em uníssono diziam:
- Conte, conte, que a história está a ficar interessante!
- Então cá vai. – rematava, Ti Joaquim, enquanto mexia as castanhas no assador. – Nas noites quentes de verão, eu gostava de me deixar ficar na varanda a apanhar ar fresco. Sentava-me numa cadeira de recosto, e às vezes até adormecia, mas nos dias em que estava mais desperto… - fazia uma pausa propositada para espicaçar o interesse da audiência.
- Vá, continue paizinho! – atalhava a filha mais nova, Judite.
- Quereis saber o sucedido, não é verdade? Escutava um assobio muito bem trinado. E, pouco depois, abria-se a porta da casa da Ti Maria Benta. Mas ela não se arrimava à soleira! Pus-me guicho a dar conta da situação. Apareceu um vulto – era um homem –, que começou a olhar em redor a ver se estava alguém de vigia – melhor fora que não tivesse dado tanto alarido. Entrava e pronto! Ninguém se apercebia do caso. Dali por uma ou duas horas, tocou em retirada; desta feita, o assobio já não piava - devia ir de papo cheio!
- Ó paizinho! – dizia a Judite. – Se calhar foi consertar alguma coisa estragada. O pai não disse que a Ti Maria Benta vivia sozinha, não tinha marido?!
- Foi, sim, minha filha - consertar-lhe a fechadura! – e rindo da ingenuidade da filha, agitava para o alto as castanhas, para que não se queimassem no fogo vivo das labaredas.
Todos desataram a rir, agarrados à barriga, menos Judite que não percebia bem a situação.
- Mas o caso não ficou por aqui. Dali a dias, repetiu-se a cena! E eu tentei mirar melhor o sujeito.
- E descobriu quem era? – atirou de pronto Rosa.
- O malandrão, punha um boné na cabeça, um casaco bem aconchegado até ao pescoço e dava sempre as costas pra cá. Aproveitava a penumbra da noite para fazer estas visitas. Este era um sabidão! Mas eu fiquei à espreita. Quando saiu, mais escuro do que quando entrara, foi muito pior para ver se o reconhecia. Então do que é que me lembrei? Tinha de o seguir de longe, de modos que não me persentisse, para saber onde morava.
- E descobriu, paizinho? – de novo, o interesse aguçado de Judite.
- Não foi fácil, não senhor. Este era mesmo dos sabidos. Tinha a escola toda, olé se tinha! Acho que desconfiou de mim. Meteu-se por várias ruas e canelhas, quando morava tão perto. Mas como sou raposa manhosa, um dia fui dar um passeio mais largo… para ver se o seguia até casa. Fiquei desiludido.
- Então paizinho, que era o homem? – investia de novo Judite.
- Era um homem casado e bem casado, nosso vizinho, vejam bem. Se fosse solteiro ou viúvo, vá que não vá, mas um homem casado não estava certo. Isso não se faz, não senhor. – e meneava a cabeça em sinal de reprovação.
- E a coisa terminou por ali, ou continuaram as visitas a Ti Maria Benta? – perguntou Rosa. – Tome lá a taça, meu pai; deite aí as castanhas assadas. Que cheirinho tão delicioso!
Rosa, colocou uma folha de couve em cima das castanhas, para abafá-las e amaciarem. Ti Joaquim prosseguia com a história:
- As visitas passaram a ser cada vez mais à descarada; e a pobre da mulher dele, uma delicadeza de senhora, sem saber de nada. Isto estava-me cá a remoer os fígados!   
- Ó paizinho, e vossemecê não fez nada? – questionou Rosa.
- Ó minha filha, o que é que eu podia fazer nesta situação? Ele, um desavergonhado; ela, sem marido e com as solas ainda por gastar! Estava ali um caso bicudo, ó se estava! O caso, ou descaso, já nem sei o que dizer, precisava de ser muito bem estudado para ser resolvido de uma vez por todas. Andava eu por aí a matutar, e torna de matutar, até que a vossa mãezinha, que Deus a tenha em bom descanso…
Responderam todos:
- Amém.
Entre cada frase, que Ti Joaquim acrescentava, todos metiam a mão na taça para tirar castanhas, que debulhavam com prazer, atirando as cascas ao lume, absortos na deliciosa história. Além do licor, para acompanhar o bolo, foi também servida jeropiga caseira. Nem se davam conta do que comiam e bebiam, tal a nuvem de puro prazer em que estavam envoltos.
- A vossa mãezinha, vendo-me em tais preparos, chegou-se ao pé de mim e disse: - Ó homem, o que é que tu tens que, de há uns dias para cá, andas estranho? – tive de abrir o jogo com ela, teve de ser, estava quase a rebentar. Bom, lá lhe contei o sucedido e… a vossa mãe disse-me que não me ralasse. Havia de arranjar uma solução para o caso.
- Ó Ti Joaquim, não me diga que a sua senhora tratou do caso?! – perguntou Zé Júlio.
- A minha Maria Amélia, era uma mulher especial. Como poucas nesta terra! Perdoe-me, minha senhora, sei que predicados não lhe faltam e só lhe ficam bem. – dirigia-se à esposa do Zé Júlio, a senhora Joana.
- O que é que a mãezinha fez, pai? – dito isto, Rosa, erguia-se do banco para ir buscar mais bolo, licor e jeropiga; e, com mãos delicadas e de uma alvura impressionante, ia servindo, um por um.
- A vossa mãe, com a desculpa de mandar fazer uma saia nova, foi a casa de Ti Maria Benta. Vendo-se a sós com a mulher, tratou de chamá-la à razão. O que conversaram ao certo… não sei.
- E o que é que aconteceu? – Judite, sempre atenta e curiosa, atirava perguntas, umas atrás das outras.
- A mulher, sentindo-se envergonhada por ter sido descoberta, agarrou nas trouxas e abalou para junto dos filhos, em Chaves.
- Fez bem, está certo. – diziam todos.
Mas Rosa, talvez por andar com um grãozinho na asa por um moço da aldeia, rematou:
- E o amor deles, acabou assim?!
- Filha, se ali havia amor, não o sei, mas era uma pouca-vergonha o que se estava a passar, isso é que era! Ou ele seguia com a Ti Maria Benta, ou ficava com a mulher. Com as duas é que não podia ser. Isto era uma sem-vergonhice!
Foram comendo o delicioso bolo de chocolate, as bilhós assadas e contando uma anedota aqui e outra acolá, até que se fez tarde e os convidados, com toda a cordialidade dos bons vizinhos, despediram-se.
As pequenas ficaram a matutar na história, noite dentro, tentando arranjar um final diferente para este enredo, não lhes fosse pródiga a imagética.
Ti Joaquim, dando o serão por encerrado, espargiu água para apagar as últimas rachas de lenha que estavam a arder no lume, beijou as filhas e foi-se deitar.
 
Texto:
© Teresa do Amparo Ferreira, 13-11-2021

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