- Rosa, ó Rosa?
- Sim, meu pai.
- Vai ao cabanal e traz uma gavela de vides pra acender o lume, se fazes favor. E há outra coisa, antes que me olvide: depois da janta, vem até cá o Zé Júlio e a mulher. Combina com a tua irmã e arrumem esta casa, que nem um brinquinho!
- Pai, vou fazer um bolo para lhes servir.
- Tens sempre boas ideias, minha Rosinha! E de caminho, traz uma cesta de castanhas para assarmos quando eles chegarem.
- Vou chamar a Judite para me ajudar. Deixe tudo comigo, meu pai, não o vamos deixar ficar mal com as visitas.
- És um anjo, minha querida. Vai lá, e cuidem de tudo. O que seria de mim sem vós?! Um pobre desgraçado, isso é que era!
Viúvo há um bom par de anos, via nas filhas a companhia que lhe faltava desde a morte da sua tão querida esposa, Maria Amélia, a quem amara profundamente, mais do que a si mesmo. Fora um marido exemplar, amantíssimo, prestimoso e um pai que rodeava as pequenas de amor, carinho e atenções. Num ápice, viu fugir-lhe dos braços a sua amada esposa, como água que se esvai entre os dedos. Uma doença tenebrosa, que aparecera silenciosamente, corroeu-a vorazmente em poucos meses. As jovens eram a alegria da casa. Vendiam beleza e vivacidade e os rapazes da aldeia bem que lhes achavam graça, sempre que as viam passar par ir à mercearia ou acompanhavam o pai à missa do senhor Pe. Adelino. Os rapazes… ficavam a olhar de soslaio vendo-as passar com seus belos vestidos rodados, que a madrinha lhes fazia, e laços de seda nas longas tranças, encantando e dependurando qualquer coração feliz. Que raparigas! Perfumavam, de alegria, todos os sítios por onde passavam. Eram as meninas mais apreciadas em toda a aldeia. O pai e a mãe, tinham-se esmerado na educação que lhes deram e elas brilhavam em resplendor sempre que alguém lhes perguntava algo. Sabiam todas as matérias, porque eram muito interessadas em estudar e questionar. Até o senhor Pe. Adelino, com grande vaidade, lhes fazia perguntas na frente de outras pessoas. Sabia que as respostas eram divinamente bem respondidas, deixando-o em estado de levitação de puro prazer.
Jantaram, como de costume, às 19 horas, um delicioso arroz de cabidela, feito com uma galinha da capoeira que, havia uns tempos – isto das galinhas também tem o que se lhe diga -, teimava em fazer greve aos ovos.
Judite, franzia o sobrolho ao jantar; e o pai, atento a todos os pormenores da filha…:
- Se a galinha não põe ovos, para que nos há de servir? Diz-me lá, Judite?
- Paizinho: já sei que vai troçar de mim. Mas afeiçoei-me a ela!
- Ó pequena! Querem lá ver agora que não podemos comer da criação?! Então para que nos servem as galinhas, os coelhos, os patos, os perus, os porcos, o gado…
- Tem razão, paizinho, mas…
- Anda cá, pequena. – Ti Joaquim abraçava a filha e beijava-a na testa, com a mesma delicadeza com que se beija uma rosa branca. – Come lá o arrozinho que está uma maravilha! A nossa Rosa tem cá uma mão prá comida… Bem sabemos a quem saiu. A comida da vossa mãezinha… Meu Santo Cristo! Quantas saudades me moem dentro do peito…. Vamos lá, meninas, toca a comer antes que arrefeça. A comida depois de fria não presta pra nada. – nisto, os olhos começavam a encher-se-lhe de água.
Jantaram sem grandes conversas, nada mais que as circunstanciais. As pequenas, levantaram a mesa e puseram-se a arrumar a cozinha, sabiam que dali a nada iriam chegar as visitas.
Ti Joaquim deixou-se ficar sentado no escano à lareira. Pegou nas tenazes e foi ajeitando as brasas, sem grande rigor. O fole, que servia para atiçar o fogo, ficou-lhe entre as mãos como que a servir de instrumento de ajuda à meditação em que acabara de entrar. Só despertou quando se ouviram vozes:
- Ó da casa, está por aí alguém?
- Entre que é! Vão entrando, se faz favor. – dizia Ti Joaquim com o rosto vestido de um novo semblante. Adorava receber visitas e, sobretudo, gostava da companhia de pessoas arejadas, podia ser que acrescentassem algo ao seu dia.
- Então boas noites, às meninas e ao Ti Joaquim… - dizia Zé Júlio, com um sorriso de orelha a orelha; e a mulher, secundava-o num ar sereno de quem sabe vestir delicadeza.
- Entrem e não façam cerimónias. Faz de conta que estão em vossa casa. Ora sentem-se, se fazem favor.
E foram-se acomodando nos dois escanos que estavam de frente a frente, junto à lareira. Rosa e Judite, pulavam no seio de alegria com a vinda das visitas. Era uma lufada de ar fresco que lhes entrava casa adentro. Muito prestimosas, foram servindo bolo de chocolate e licor de noz verde caseiro. Trouxeram, também, a cesta das castanhas que Ti Joaquim de imediato vazou no assador, dependurado na argola da lareira. Foram assando nas altas labaredas, que alumiava mais do que a própria luz da cozinha. Era dia de Todos os Santos; dia de visitar os nossos no cemitério, trazendo memórias impregnadas em saudades. As pequenas, sentaram-se junto do pai. Sabiam o resultado destas visitas – havia sempre alguma novidade que acabaria por saltar no meio da amena cavaqueira em redor da lareira.
Depois das formalidades iniciais, perguntando por todos e pela saúde de cada um, assim como pelas lides do campo, querendo saber das colheitas e como é que tudo corria, a conversa começou a correr mais solta – talvez o licor, delicioso como nenhum outro naquela aldeia, ajudasse a soltar a alma aos convivas.
- Hoje, tenho uma história… Bem… não é uma estória. Passou-se mesmo de verdade. Podeis fazer fé que, o que vos irei contar, é a mais pura das verdades. A ver se fazeis caso. Há uma data de anos, morava aqui a ti Maria Benta - acho que nenhum de vós chegou a conhecê-la. Não interessa, vamos pra diante. Era uma mulher muito recatada, nunca se via na rua a não ser para ir ao soto aviar-se. Ah! Já me estava a esquecer! Também gostava de ir à missa, ao domingo. Esta mulher tinha dois filhos: um rapaz e uma rapariga. Ambos estudavam em Chaves. Era costureira e, diziam as mulheres que lá iam encomendar as roupas, tinha mãos de fada. O certo é que nunca se lhe conheceu o marido. Uns diziam que tinha abalado pra Lisboa à procura de trabalho e por lá ficara sem retorno; outros diziam que tinha morrido; o que vos posso garantir é que nunca se soube quem era o pai dos filhos, pelo menos eu, nunca dei por tal sujeito! Mas o que é que isto tem de especial, dizei-me vós?
Em uníssono diziam:
- Conte, conte, que a história está a ficar interessante!
- Então cá vai. – rematava, Ti Joaquim, enquanto mexia as castanhas no assador. – Nas noites quentes de verão, eu gostava de me deixar ficar na varanda a apanhar ar fresco. Sentava-me numa cadeira de recosto, e às vezes até adormecia, mas nos dias em que estava mais desperto… - fazia uma pausa propositada para espicaçar o interesse da audiência.
- Vá, continue paizinho! – atalhava a filha mais nova, Judite.
- Quereis saber o sucedido, não é verdade? Escutava um assobio muito bem trinado. E, pouco depois, abria-se a porta da casa da Ti Maria Benta. Mas ela não se arrimava à soleira! Pus-me guicho a dar conta da situação. Apareceu um vulto – era um homem –, que começou a olhar em redor a ver se estava alguém de vigia – melhor fora que não tivesse dado tanto alarido. Entrava e pronto! Ninguém se apercebia do caso. Dali por uma ou duas horas, tocou em retirada; desta feita, o assobio já não piava - devia ir de papo cheio!
- Ó paizinho! – dizia a Judite. – Se calhar foi consertar alguma coisa estragada. O pai não disse que a Ti Maria Benta vivia sozinha, não tinha marido?!
- Foi, sim, minha filha - consertar-lhe a fechadura! – e rindo da ingenuidade da filha, agitava para o alto as castanhas, para que não se queimassem no fogo vivo das labaredas.
Todos desataram a rir, agarrados à barriga, menos Judite que não percebia bem a situação.
- Mas o caso não ficou por aqui. Dali a dias, repetiu-se a cena! E eu tentei mirar melhor o sujeito.
- E descobriu quem era? – atirou de pronto Rosa.
- O malandrão, punha um boné na cabeça, um casaco bem aconchegado até ao pescoço e dava sempre as costas pra cá. Aproveitava a penumbra da noite para fazer estas visitas. Este era um sabidão! Mas eu fiquei à espreita. Quando saiu, mais escuro do que quando entrara, foi muito pior para ver se o reconhecia. Então do que é que me lembrei? Tinha de o seguir de longe, de modos que não me persentisse, para saber onde morava.
- E descobriu, paizinho? – de novo, o interesse aguçado de Judite.
- Não foi fácil, não senhor. Este era mesmo dos sabidos. Tinha a escola toda, olé se tinha! Acho que desconfiou de mim. Meteu-se por várias ruas e canelhas, quando morava tão perto. Mas como sou raposa manhosa, um dia fui dar um passeio mais largo… para ver se o seguia até casa. Fiquei desiludido.
- Então paizinho, que era o homem? – investia de novo Judite.
- Era um homem casado e bem casado, nosso vizinho, vejam bem. Se fosse solteiro ou viúvo, vá que não vá, mas um homem casado não estava certo. Isso não se faz, não senhor. – e meneava a cabeça em sinal de reprovação.
- E a coisa terminou por ali, ou continuaram as visitas a Ti Maria Benta? – perguntou Rosa. – Tome lá a taça, meu pai; deite aí as castanhas assadas. Que cheirinho tão delicioso!
Rosa, colocou uma folha de couve em cima das castanhas, para abafá-las e amaciarem. Ti Joaquim prosseguia com a história:
- As visitas passaram a ser cada vez mais à descarada; e a pobre da mulher dele, uma delicadeza de senhora, sem saber de nada. Isto estava-me cá a remoer os fígados!
- Ó paizinho, e vossemecê não fez nada? – questionou Rosa.
- Ó minha filha, o que é que eu podia fazer nesta situação? Ele, um desavergonhado; ela, sem marido e com as solas ainda por gastar! Estava ali um caso bicudo, ó se estava! O caso, ou descaso, já nem sei o que dizer, precisava de ser muito bem estudado para ser resolvido de uma vez por todas. Andava eu por aí a matutar, e torna de matutar, até que a vossa mãezinha, que Deus a tenha em bom descanso…
Responderam todos:
- Amém.
Entre cada frase, que Ti Joaquim acrescentava, todos metiam a mão na taça para tirar castanhas, que debulhavam com prazer, atirando as cascas ao lume, absortos na deliciosa história. Além do licor, para acompanhar o bolo, foi também servida jeropiga caseira. Nem se davam conta do que comiam e bebiam, tal a nuvem de puro prazer em que estavam envoltos.
- A vossa mãezinha, vendo-me em tais preparos, chegou-se ao pé de mim e disse: - Ó homem, o que é que tu tens que, de há uns dias para cá, andas estranho? – tive de abrir o jogo com ela, teve de ser, estava quase a rebentar. Bom, lá lhe contei o sucedido e… a vossa mãe disse-me que não me ralasse. Havia de arranjar uma solução para o caso.
- Ó Ti Joaquim, não me diga que a sua senhora tratou do caso?! – perguntou Zé Júlio.
- A minha Maria Amélia, era uma mulher especial. Como poucas nesta terra! Perdoe-me, minha senhora, sei que predicados não lhe faltam e só lhe ficam bem. – dirigia-se à esposa do Zé Júlio, a senhora Joana.
- O que é que a mãezinha fez, pai? – dito isto, Rosa, erguia-se do banco para ir buscar mais bolo, licor e jeropiga; e, com mãos delicadas e de uma alvura impressionante, ia servindo, um por um.
- A vossa mãe, com a desculpa de mandar fazer uma saia nova, foi a casa de Ti Maria Benta. Vendo-se a sós com a mulher, tratou de chamá-la à razão. O que conversaram ao certo… não sei.
- E o que é que aconteceu? – Judite, sempre atenta e curiosa, atirava perguntas, umas atrás das outras.
- A mulher, sentindo-se envergonhada por ter sido descoberta, agarrou nas trouxas e abalou para junto dos filhos, em Chaves.
- Fez bem, está certo. – diziam todos.
Mas Rosa, talvez por andar com um grãozinho na asa por um moço da aldeia, rematou:
- E o amor deles, acabou assim?!
- Filha, se ali havia amor, não o sei, mas era uma pouca-vergonha o que se estava a passar, isso é que era! Ou ele seguia com a Ti Maria Benta, ou ficava com a mulher. Com as duas é que não podia ser. Isto era uma sem-vergonhice!
Foram comendo o delicioso bolo de chocolate, as bilhós assadas e contando uma anedota aqui e outra acolá, até que se fez tarde e os convidados, com toda a cordialidade dos bons vizinhos, despediram-se.
As pequenas ficaram a matutar na história, noite dentro, tentando arranjar um final diferente para este enredo, não lhes fosse pródiga a imagética.
Ti Joaquim, dando o serão por encerrado, espargiu água para apagar as últimas rachas de lenha que estavam a arder no lume, beijou as filhas e foi-se deitar.
- Sim, meu pai.
- Vai ao cabanal e traz uma gavela de vides pra acender o lume, se fazes favor. E há outra coisa, antes que me olvide: depois da janta, vem até cá o Zé Júlio e a mulher. Combina com a tua irmã e arrumem esta casa, que nem um brinquinho!
- Pai, vou fazer um bolo para lhes servir.
- Tens sempre boas ideias, minha Rosinha! E de caminho, traz uma cesta de castanhas para assarmos quando eles chegarem.
- Vou chamar a Judite para me ajudar. Deixe tudo comigo, meu pai, não o vamos deixar ficar mal com as visitas.
- És um anjo, minha querida. Vai lá, e cuidem de tudo. O que seria de mim sem vós?! Um pobre desgraçado, isso é que era!
Viúvo há um bom par de anos, via nas filhas a companhia que lhe faltava desde a morte da sua tão querida esposa, Maria Amélia, a quem amara profundamente, mais do que a si mesmo. Fora um marido exemplar, amantíssimo, prestimoso e um pai que rodeava as pequenas de amor, carinho e atenções. Num ápice, viu fugir-lhe dos braços a sua amada esposa, como água que se esvai entre os dedos. Uma doença tenebrosa, que aparecera silenciosamente, corroeu-a vorazmente em poucos meses. As jovens eram a alegria da casa. Vendiam beleza e vivacidade e os rapazes da aldeia bem que lhes achavam graça, sempre que as viam passar par ir à mercearia ou acompanhavam o pai à missa do senhor Pe. Adelino. Os rapazes… ficavam a olhar de soslaio vendo-as passar com seus belos vestidos rodados, que a madrinha lhes fazia, e laços de seda nas longas tranças, encantando e dependurando qualquer coração feliz. Que raparigas! Perfumavam, de alegria, todos os sítios por onde passavam. Eram as meninas mais apreciadas em toda a aldeia. O pai e a mãe, tinham-se esmerado na educação que lhes deram e elas brilhavam em resplendor sempre que alguém lhes perguntava algo. Sabiam todas as matérias, porque eram muito interessadas em estudar e questionar. Até o senhor Pe. Adelino, com grande vaidade, lhes fazia perguntas na frente de outras pessoas. Sabia que as respostas eram divinamente bem respondidas, deixando-o em estado de levitação de puro prazer.
Jantaram, como de costume, às 19 horas, um delicioso arroz de cabidela, feito com uma galinha da capoeira que, havia uns tempos – isto das galinhas também tem o que se lhe diga -, teimava em fazer greve aos ovos.
Judite, franzia o sobrolho ao jantar; e o pai, atento a todos os pormenores da filha…:
- Se a galinha não põe ovos, para que nos há de servir? Diz-me lá, Judite?
- Paizinho: já sei que vai troçar de mim. Mas afeiçoei-me a ela!
- Ó pequena! Querem lá ver agora que não podemos comer da criação?! Então para que nos servem as galinhas, os coelhos, os patos, os perus, os porcos, o gado…
- Tem razão, paizinho, mas…
- Anda cá, pequena. – Ti Joaquim abraçava a filha e beijava-a na testa, com a mesma delicadeza com que se beija uma rosa branca. – Come lá o arrozinho que está uma maravilha! A nossa Rosa tem cá uma mão prá comida… Bem sabemos a quem saiu. A comida da vossa mãezinha… Meu Santo Cristo! Quantas saudades me moem dentro do peito…. Vamos lá, meninas, toca a comer antes que arrefeça. A comida depois de fria não presta pra nada. – nisto, os olhos começavam a encher-se-lhe de água.
Jantaram sem grandes conversas, nada mais que as circunstanciais. As pequenas, levantaram a mesa e puseram-se a arrumar a cozinha, sabiam que dali a nada iriam chegar as visitas.
Ti Joaquim deixou-se ficar sentado no escano à lareira. Pegou nas tenazes e foi ajeitando as brasas, sem grande rigor. O fole, que servia para atiçar o fogo, ficou-lhe entre as mãos como que a servir de instrumento de ajuda à meditação em que acabara de entrar. Só despertou quando se ouviram vozes:
- Ó da casa, está por aí alguém?
- Entre que é! Vão entrando, se faz favor. – dizia Ti Joaquim com o rosto vestido de um novo semblante. Adorava receber visitas e, sobretudo, gostava da companhia de pessoas arejadas, podia ser que acrescentassem algo ao seu dia.
- Então boas noites, às meninas e ao Ti Joaquim… - dizia Zé Júlio, com um sorriso de orelha a orelha; e a mulher, secundava-o num ar sereno de quem sabe vestir delicadeza.
- Entrem e não façam cerimónias. Faz de conta que estão em vossa casa. Ora sentem-se, se fazem favor.
E foram-se acomodando nos dois escanos que estavam de frente a frente, junto à lareira. Rosa e Judite, pulavam no seio de alegria com a vinda das visitas. Era uma lufada de ar fresco que lhes entrava casa adentro. Muito prestimosas, foram servindo bolo de chocolate e licor de noz verde caseiro. Trouxeram, também, a cesta das castanhas que Ti Joaquim de imediato vazou no assador, dependurado na argola da lareira. Foram assando nas altas labaredas, que alumiava mais do que a própria luz da cozinha. Era dia de Todos os Santos; dia de visitar os nossos no cemitério, trazendo memórias impregnadas em saudades. As pequenas, sentaram-se junto do pai. Sabiam o resultado destas visitas – havia sempre alguma novidade que acabaria por saltar no meio da amena cavaqueira em redor da lareira.
Depois das formalidades iniciais, perguntando por todos e pela saúde de cada um, assim como pelas lides do campo, querendo saber das colheitas e como é que tudo corria, a conversa começou a correr mais solta – talvez o licor, delicioso como nenhum outro naquela aldeia, ajudasse a soltar a alma aos convivas.
- Hoje, tenho uma história… Bem… não é uma estória. Passou-se mesmo de verdade. Podeis fazer fé que, o que vos irei contar, é a mais pura das verdades. A ver se fazeis caso. Há uma data de anos, morava aqui a ti Maria Benta - acho que nenhum de vós chegou a conhecê-la. Não interessa, vamos pra diante. Era uma mulher muito recatada, nunca se via na rua a não ser para ir ao soto aviar-se. Ah! Já me estava a esquecer! Também gostava de ir à missa, ao domingo. Esta mulher tinha dois filhos: um rapaz e uma rapariga. Ambos estudavam em Chaves. Era costureira e, diziam as mulheres que lá iam encomendar as roupas, tinha mãos de fada. O certo é que nunca se lhe conheceu o marido. Uns diziam que tinha abalado pra Lisboa à procura de trabalho e por lá ficara sem retorno; outros diziam que tinha morrido; o que vos posso garantir é que nunca se soube quem era o pai dos filhos, pelo menos eu, nunca dei por tal sujeito! Mas o que é que isto tem de especial, dizei-me vós?
Em uníssono diziam:
- Conte, conte, que a história está a ficar interessante!
- Então cá vai. – rematava, Ti Joaquim, enquanto mexia as castanhas no assador. – Nas noites quentes de verão, eu gostava de me deixar ficar na varanda a apanhar ar fresco. Sentava-me numa cadeira de recosto, e às vezes até adormecia, mas nos dias em que estava mais desperto… - fazia uma pausa propositada para espicaçar o interesse da audiência.
- Vá, continue paizinho! – atalhava a filha mais nova, Judite.
- Quereis saber o sucedido, não é verdade? Escutava um assobio muito bem trinado. E, pouco depois, abria-se a porta da casa da Ti Maria Benta. Mas ela não se arrimava à soleira! Pus-me guicho a dar conta da situação. Apareceu um vulto – era um homem –, que começou a olhar em redor a ver se estava alguém de vigia – melhor fora que não tivesse dado tanto alarido. Entrava e pronto! Ninguém se apercebia do caso. Dali por uma ou duas horas, tocou em retirada; desta feita, o assobio já não piava - devia ir de papo cheio!
- Ó paizinho! – dizia a Judite. – Se calhar foi consertar alguma coisa estragada. O pai não disse que a Ti Maria Benta vivia sozinha, não tinha marido?!
- Foi, sim, minha filha - consertar-lhe a fechadura! – e rindo da ingenuidade da filha, agitava para o alto as castanhas, para que não se queimassem no fogo vivo das labaredas.
Todos desataram a rir, agarrados à barriga, menos Judite que não percebia bem a situação.
- Mas o caso não ficou por aqui. Dali a dias, repetiu-se a cena! E eu tentei mirar melhor o sujeito.
- E descobriu quem era? – atirou de pronto Rosa.
- O malandrão, punha um boné na cabeça, um casaco bem aconchegado até ao pescoço e dava sempre as costas pra cá. Aproveitava a penumbra da noite para fazer estas visitas. Este era um sabidão! Mas eu fiquei à espreita. Quando saiu, mais escuro do que quando entrara, foi muito pior para ver se o reconhecia. Então do que é que me lembrei? Tinha de o seguir de longe, de modos que não me persentisse, para saber onde morava.
- E descobriu, paizinho? – de novo, o interesse aguçado de Judite.
- Não foi fácil, não senhor. Este era mesmo dos sabidos. Tinha a escola toda, olé se tinha! Acho que desconfiou de mim. Meteu-se por várias ruas e canelhas, quando morava tão perto. Mas como sou raposa manhosa, um dia fui dar um passeio mais largo… para ver se o seguia até casa. Fiquei desiludido.
- Então paizinho, que era o homem? – investia de novo Judite.
- Era um homem casado e bem casado, nosso vizinho, vejam bem. Se fosse solteiro ou viúvo, vá que não vá, mas um homem casado não estava certo. Isso não se faz, não senhor. – e meneava a cabeça em sinal de reprovação.
- E a coisa terminou por ali, ou continuaram as visitas a Ti Maria Benta? – perguntou Rosa. – Tome lá a taça, meu pai; deite aí as castanhas assadas. Que cheirinho tão delicioso!
Rosa, colocou uma folha de couve em cima das castanhas, para abafá-las e amaciarem. Ti Joaquim prosseguia com a história:
- As visitas passaram a ser cada vez mais à descarada; e a pobre da mulher dele, uma delicadeza de senhora, sem saber de nada. Isto estava-me cá a remoer os fígados!
- Ó paizinho, e vossemecê não fez nada? – questionou Rosa.
- Ó minha filha, o que é que eu podia fazer nesta situação? Ele, um desavergonhado; ela, sem marido e com as solas ainda por gastar! Estava ali um caso bicudo, ó se estava! O caso, ou descaso, já nem sei o que dizer, precisava de ser muito bem estudado para ser resolvido de uma vez por todas. Andava eu por aí a matutar, e torna de matutar, até que a vossa mãezinha, que Deus a tenha em bom descanso…
Responderam todos:
- Amém.
Entre cada frase, que Ti Joaquim acrescentava, todos metiam a mão na taça para tirar castanhas, que debulhavam com prazer, atirando as cascas ao lume, absortos na deliciosa história. Além do licor, para acompanhar o bolo, foi também servida jeropiga caseira. Nem se davam conta do que comiam e bebiam, tal a nuvem de puro prazer em que estavam envoltos.
- A vossa mãezinha, vendo-me em tais preparos, chegou-se ao pé de mim e disse: - Ó homem, o que é que tu tens que, de há uns dias para cá, andas estranho? – tive de abrir o jogo com ela, teve de ser, estava quase a rebentar. Bom, lá lhe contei o sucedido e… a vossa mãe disse-me que não me ralasse. Havia de arranjar uma solução para o caso.
- Ó Ti Joaquim, não me diga que a sua senhora tratou do caso?! – perguntou Zé Júlio.
- A minha Maria Amélia, era uma mulher especial. Como poucas nesta terra! Perdoe-me, minha senhora, sei que predicados não lhe faltam e só lhe ficam bem. – dirigia-se à esposa do Zé Júlio, a senhora Joana.
- O que é que a mãezinha fez, pai? – dito isto, Rosa, erguia-se do banco para ir buscar mais bolo, licor e jeropiga; e, com mãos delicadas e de uma alvura impressionante, ia servindo, um por um.
- A vossa mãe, com a desculpa de mandar fazer uma saia nova, foi a casa de Ti Maria Benta. Vendo-se a sós com a mulher, tratou de chamá-la à razão. O que conversaram ao certo… não sei.
- E o que é que aconteceu? – Judite, sempre atenta e curiosa, atirava perguntas, umas atrás das outras.
- A mulher, sentindo-se envergonhada por ter sido descoberta, agarrou nas trouxas e abalou para junto dos filhos, em Chaves.
- Fez bem, está certo. – diziam todos.
Mas Rosa, talvez por andar com um grãozinho na asa por um moço da aldeia, rematou:
- E o amor deles, acabou assim?!
- Filha, se ali havia amor, não o sei, mas era uma pouca-vergonha o que se estava a passar, isso é que era! Ou ele seguia com a Ti Maria Benta, ou ficava com a mulher. Com as duas é que não podia ser. Isto era uma sem-vergonhice!
Foram comendo o delicioso bolo de chocolate, as bilhós assadas e contando uma anedota aqui e outra acolá, até que se fez tarde e os convidados, com toda a cordialidade dos bons vizinhos, despediram-se.
As pequenas ficaram a matutar na história, noite dentro, tentando arranjar um final diferente para este enredo, não lhes fosse pródiga a imagética.
Ti Joaquim, dando o serão por encerrado, espargiu água para apagar as últimas rachas de lenha que estavam a arder no lume, beijou as filhas e foi-se deitar.
© Teresa do Amparo Ferreira, 13-11-2021
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