As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
É verdade que sim — e eu sou uma dessas pessoas sensíveis, incapaz de matar uma galinha mas capacíssimo de a comer, ou parte dela, mormente se for caseira e do tipo pica-no-chão. Mas faço por não me sentir minimamente beliscado pelos versos de Sophia (ela própria, ia jurar, uma não-matadora, porém comedora de galinhas), que têm qualquer coisa de boutade e a cujo respeito se poderia aplicar o anexim popular que diz que ‘não tem nada a ver o cu com as calças’. Numa sociedade que se pretende organizada, há lugar para todos: os que matam e os que comem as galinhas, sendo que os que as matam também as comem por vezes, e já vão longe os tempos primordiais, cavernícolas, em que cada um fazia pela sua própria vidinha, isto é, tinha de ser auto-suficiente, isto é, se queria comer uma galinha tinha de a matar primeiro.
Estas considerações acodem-me à lembrança a propósito de pesca. É que eu fui em tempos pescador — pescador de cana, bem entendido, o tal que (outro ditado popular) ‘come mais do que o que ganha’. E daí? Acaso buscava eu na pesca o sustento da família? Nada. Buscava acima de tudo uma coisa: limpar o espírito. Aquelas horas passadas na ribeira, à sombra de freixos, salgueiros e amieiros, com o murmurinho das águas por música de fundo e a companhia dos pássaros e de algum leirão-de-água fugidio eram o melhor remédio para o stress e as inquietações da vida dita útil — mas tanta vez inútil. Depois, meia dúzia de bogas ou barbos que calhasse fisgar no anzol, ou um pratinho de escalos, já eram um prémio suplementar. O que importava, acima de tudo, era a paz conquistada, as baterias recarregadas para mais uma semana de lufa-lufa.
Com o passar do tempo, a vida complicou-se-me cada vez mais, em exigências e pressões. Quer dizer que hoje, mais do que nunca, precisaria eu de ir à pesca como acto de higiene espiritual e mental. Mas quê? Ferrou-se em mim o diabo verde, e hoje cheguei a um ponto em que sou perfeitamente incapaz de matar seja o que for — tirante as melgas e as moscas, que essas estão excluídas da minha moratória ecológica. É isto um sentimento muito grande de respeito por todas as formas de vida, que me faz lamentar retroactivamente todos os passarinhos que matei, todos os peixes que pesquei, todas as vidas que se extinguiram a capricho meu. Ainda as mais humildes, que isto da humildade das vidas ainda está muito mal explicado.
Mas, quando mal me precato, lá vem o meu demónio interior a cravar-me na alma o espinho dos versos de Sophia: ‘As pessoas sensíveis’, etc. Porque, sendo agora incapaz de matar, não perdi, ai de mim, o apetite e continuo a precisar de me nutrir. E uma travessinha de escalos e bogas de escabeche, regados a um tinto abertinho que eu cá sei, na frescura de uma adega em tarde de verão, continua a ser uma espécie de antecâmara do paraíso.
Ah, esta desmancha-prazeres da Sophia!
Estas considerações acodem-me à lembrança a propósito de pesca. É que eu fui em tempos pescador — pescador de cana, bem entendido, o tal que (outro ditado popular) ‘come mais do que o que ganha’. E daí? Acaso buscava eu na pesca o sustento da família? Nada. Buscava acima de tudo uma coisa: limpar o espírito. Aquelas horas passadas na ribeira, à sombra de freixos, salgueiros e amieiros, com o murmurinho das águas por música de fundo e a companhia dos pássaros e de algum leirão-de-água fugidio eram o melhor remédio para o stress e as inquietações da vida dita útil — mas tanta vez inútil. Depois, meia dúzia de bogas ou barbos que calhasse fisgar no anzol, ou um pratinho de escalos, já eram um prémio suplementar. O que importava, acima de tudo, era a paz conquistada, as baterias recarregadas para mais uma semana de lufa-lufa.
Com o passar do tempo, a vida complicou-se-me cada vez mais, em exigências e pressões. Quer dizer que hoje, mais do que nunca, precisaria eu de ir à pesca como acto de higiene espiritual e mental. Mas quê? Ferrou-se em mim o diabo verde, e hoje cheguei a um ponto em que sou perfeitamente incapaz de matar seja o que for — tirante as melgas e as moscas, que essas estão excluídas da minha moratória ecológica. É isto um sentimento muito grande de respeito por todas as formas de vida, que me faz lamentar retroactivamente todos os passarinhos que matei, todos os peixes que pesquei, todas as vidas que se extinguiram a capricho meu. Ainda as mais humildes, que isto da humildade das vidas ainda está muito mal explicado.
Mas, quando mal me precato, lá vem o meu demónio interior a cravar-me na alma o espinho dos versos de Sophia: ‘As pessoas sensíveis’, etc. Porque, sendo agora incapaz de matar, não perdi, ai de mim, o apetite e continuo a precisar de me nutrir. E uma travessinha de escalos e bogas de escabeche, regados a um tinto abertinho que eu cá sei, na frescura de uma adega em tarde de verão, continua a ser uma espécie de antecâmara do paraíso.
Ah, esta desmancha-prazeres da Sophia!
Apostila:
Sophia de Mello Breyner Andresen foi na verdade uma enorme poetisa. E perguntava eu acima quem tem medo da palavra ‘poetisa’. Porque vejo uma corrente muito grande e muito forte de pessoas que prefere fazer de ‘poeta’ um substantivo sobrecomum, aplicável aos dois géneros. Ou será antes comum-de-dois: o poeta, a poeta? Ainda não vi esse imbróglio deslindado.
Noto que são mulheres quem mais se bate contra a palavra ‘poetisa’. Verão nela algo de depreciativo, remetendo para qualquer coisa como escrevinhadora de versos sem qualidade? Acharão a palavra machista? Não sei. Limito-me a testemunhar o facto.
En passant, deixo aqui a minha congratulação pela trasladação dos restos mortais de Sophia para o Panteão Nacional. É o lugar de repouso apropriado para os restos mortais daquela que foi a mais clássica e cristalina das poetisas (desculpem a insistência) do nosso tempo.
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