Há que tempos não nos encontrávamos nas páginas virtuais do Facebook! Pois hoje deram-me saudades e resolvi partilhar com os meus Amigos um texto que publiquei em 2015, numa prestigiada revista, “Granta” de seu nome. Chamava-se o texto “A noite, as noites” e, como é bastante extenso, vou fazer como gosto: dividi-lo em fatias não demasiado longas para não desencorajar a leitura. Assim um pouco à maneira de folhetim. Vamos a Isso?
A noite, as noites
Faço ideia do espanto — do espanto e do terror — com que os primeiros hominídeos viam todos os dias o sol sumir-se para lá dos montes e o denso mistério da escuridão cobrir a terra, avolumando as muitas ameaças a que mesmo durante o dia estavam sujeitos: os desconfortos da doença, as demasias do clima, as garras dos predadores. Espanto e terror devem ter sido as primeiras emoções provocadas pelo fenómeno noite.
Depois, como tudo, as coisas foram evoluindo naturalmente. A noite passou a ser vista como algo natural, inquietante mas passageiro, em saudável alternância com o dia. A vida estruturou-se em função dessa alternância: passou a haver coisas que se fazem de dia e coisas que se fazem de noite. E acabou por se chegar à conclusão de que a noite, não deixando de ser um reino perigoso, tinha também as suas consolações: aproximava as carnes e incitava ao comércio sexual. Daí nasceu e se consolidou um dos mais populares entendimentos da noite, que ainda hoje se mantém popular e cada vez com mais vigor: a noite como cenário privilegiado para amores. Não andará longe desse sentido a própria palavra «noite», em frases como «frequentar a noite» ou «ser um homem (ou uma mulher) da noite». Ou no título «Guerra aberta no submundo da noite», que leio agora mesmo no meu semanário de estimação.
Entretanto, a literatura fez-se uma grande caixa-de-ressonância desse entendimento, porque ninguém como os escritores para explorar as potencialidades eróticas seja daquilo que for. Bem, nem todos, claro: há sempre aqueles para quem o amor físico é delituoso por definição, e uma simples gota de sémen bastaria para poluir um parágrafo, um capítulo, um livro inteiro. Esses ou calam a noite, ou vêem-na com olhos mais castos, ou, enfim, procuram nela outra espécie de atractivos. Já lá iremos. O certo é que, de uma forma geral, a literatura se tem prestado, melhor do que todas as outras artes e à compita com o cinema, a fazer essa leitura, digamos, sensual da noite. É grande o número de textos literários em que ela aparece associada ao amor. Melhor: ao pretexto ou ocasião para o amor. Digamos que a noite se tornou o outro nome do amor. Envolvendo-nos em escuridão propícia e criando uma atmosfera de segredo e cumplicidade, uma espécie de bem-vinda cegueira, que convida à intimidade, ao afrouxamento de interditos e à transgressão, ela constitui o ambiente por excelência para os devaneios amorosos. Também para os do coração, cândidos, platónicos, naturalmente. Mas muito mais os que entendem com a carne — e quanto mais transgressivos, melhor.
(Continua)
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