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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Onde me trouxe esta fotografia que tirei há sessenta anos!

 Para o caso de alguns dos meus Amigos  FB  não estarem familiarizados com esta vista, diga-se desde já que o rio que corre lá no fundo é o Sabor, um dos afluentes da margem direita do Douro. Atravessando a ponte, passada meia dúzia de quilómetros, estamos em Torre de Moncorvo. Aqui o rio está já muito próximo (um ou dois quilómetros, talvez) da sua entrada no Douro. 
Agora que lhes satisfiz a curiosidade, deixem-me espraiar um pouco, dando largas aos sentimentos que a fotografia acorda em mim.
Este troço do Sabor era um dos nossos favoritos para a pesca. A proximidade do Douro abastecia-o abundantemente de peixes. E que peixes? Ainda não tinha aparecido, nesses anos 50 e 60 do século passado, uma certa casta de pescadores criminosos, porque criminosamente têm andado a introduzir nos nossos rios espécies alóctones que destroem as espécies autóctones, como é o caso do tristemente célebre lúcio, que na sua insaciável voracidade leva tudo a eito: peixes, rãs, cobras-d’água e até aves aquáticas. Dizendo-o com todas as letras: esses senhores têm destruído em dois ou três anos, o que a mãe Natureza construiu em milhões de milénios. 
Pois nesses tempos, o que se pescava nesta parte do Sabor eram barbos, escalos, bogas, enguias e tencas (estas, também chamadas pimpões, uma espécie que não subia muito o rio e só se encontrava próximo da foz). Pescavam-se ainda uns peixes pequenos e sem valor culinário, a que os pescadores de rede locais chamavam ironicamente tubarões. E por vezes pescava-se involuntariamente um ou outro cágado, a que também se chamava sapo-concho ou sapo-conqueiro. Num certo dia particularmente azarado, o meu Pai pescou nada menos de sete destes pachorrentos quelónios, a que era dificílimo retirar o anzol, e ainda por cima cheiravam pior do que ol que dizem  que  cheira o  ninho da  boubela. Foi um record que nunca vimos igualado, quanto mais  superado.
Já nos anos 70, constituí a minha própria equipa que aos sábados me acompanhava para o rio. Deixo aqui os seus nomes em respeito à sua memória (já faleceram todos) e como preito de gratidão pela camaradagem e amizade que me dedicavam. Eram eles Joaquim Santos, o ‘Ramex’, Leopoldo Ribeiro e Alfredo Fraga. Aos sábados, como digo, lá íamos todos no meu Anglia Fascinante para onde nos palpitasse que o peixe picaria mais. Podia ser a Ponte de Remondes, também sobre o Sabor, umas dezenas de quilómetros a montante, ou a ribeira de Gralhós, que dava escalos estupendos, ou este troço do Sabor de que vimos falando. 
Tão importante como a pesca, era a hora da merenda. Cada um de nós levava o seu farnel, e, ao fim da tarde, juntavam-se os quatro farnéis num farnel único. Com a passagem do tempo, os farnéis foram-se especializando (à falta de melhor termo). Cada um trazia o que já sabia que todos apreciavam. O Sr. Leopoldo trazia  bolos de bacalhau, o ‘Ramex’ trazia uma omeleta, o Fraga creio que trazia um naco de presunto. E eu? Eu trazia uma coisa que na aparência era uma omeleta, mas na verdade era uma espécie de pastelão doce feito com Nestum Figos (coisa que a Nestlé deixou de fabricar, e é pena), que a minha Mulher inventou e era uma delícia para encerrar condignamente e em doçura a comezaina.
Se repararem na fotografia, do lado de lá da ponte, sobre a direita, vê-se distintamente uma casa branca, que julgo que era um armazém da Junta Autónoma das Estradas. Do lado oposto, vê-se muito mal uma outra construção não rebocada, que dera uma taberna: a taberna do Lino, santo homem, que nos deixava merendar, a troco das duas ou três laranjadas
que nos vendia ao longo da jornada de pesca. O Lino decerto já morreu também. E a mim, único sobrevivente, no termo desta evocação saudosa e comovida, não me ocorre nada de melhor do que, à semelhança do que oiço fazer às gentes de Grijó, formular o voto sincero de que Deus fale muitas vezes na alma do ‘Ramex’, do Leopoldo, do Fraga e do Lino, que, todos eles, encheram de sentido tantas das minhas tardes de sábado e me proporcionaram momentos de uma alegria que poucas veze terei repetido e por isso não posso esquecer.
Onde me trouxe esta fotografia que tirei há sessenta anos!
Resta dizer que o que se vê na fotografia está hoje debaixo da água represada por uma barragem que creio não estará longe deste lugar. E juntamente com a ponte e a taberna do:Lino e tudo o resto, também um pedaço da minha vida está ali submerso. O que me leva a acrescentar o voto que acima formulei: que Deus fale muitas vezes no rio Sabor de outros tempos, do qual se dizia, não sei se com razão, que era o último rio selvagem da Europa.

A. M. Pires Cabral

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