sábado, 6 de junho de 2015

Histórias de Gaiteiros


«Festa sem gaiteiro, não é festa». Expressão repetida por estes homens já com longos anos percorridos. Quase todos aprenderam gaita-de-foles de forma autodidacta. Além de tocadores, muitos tornaram-se artesãos, construindo a sua gaita-de-foles. A Associação Gaita-de-Foles recolheu algumas destas histórias aqui contadas.
Ezequiel dos Santos - O Gaiteiro de Vale Martinho
Ezequiel dos Santos, faz parte de toda uma tradição regional e, como tal, não pode nem deve ser considerado, como expressão de tradições locais e limitadas. Assim, é no contexto transmontano que deve ser enquadrada a sua arte de soprar na gaita-de-foles, instrumento que constitui um prolongamento essencial da sua vida. Com efeito, Ezequiel dos Santos nasceu e vive numa região que, ao longo dos tempos, foi um verdadeiro cruzamento intercultural. 
Ezequiel dos Santos foi registado aos 17 de Outubro de 1927. Desconhece «como muitos dos que por aqui nasceram» a data exacta do seu nascimento. Mas garante que foi ali, em Vale Martinho. 
Septuagenário de boa fibra transmontana, continua a dedicar-se às tarefas agrícolas, na companhia de sua mulher, alardeando «mais fôlego que um ‘matcho’. Porque se assim não fosse» - perguntou - «como é que podia ser gaiteiro?»
Autodidacta na aprendizagem da gaita-de-foles, Ezequiel dos Santos evoca, a cada passo, a figura - mítica e venerada! - de um tal José Benedito, gaiteiro que foi em Vale dos Prados, aldeia não muito distante de Vale Martinho.
«Falecido há mais de trinta anos, José Benedito foi o melhor gaiteiro que eu conheci em toda a minha vida e foi com ele que eu aprendi tudo o que sei. Vendo-o tocar, como mandavam as regras, porque gaiteiro que se preze não ensina aos outros os segredos da sua arte.» Ezequiel dos Santos nunca enjeitou desafios ou despiques e orgulha-se de já ter calado muitos tocadores de clarinete - um «inimigo» figadal da gaita de foles! - soprando no seu velho instrumento. Esta, que exibiu no decurso do nosso primeiro encontro, era uma espécie híbrida traça galega, muito estragada e com abundantes quantidades de adesivo castanho a ligar os vários componentes do bordão: «Já tocou muito... É muito velhinha mas olhe que ainda não vi melhor por aí.» Mas por via do cansaço lá foi comprando uma nova, em Vigo, «com um fole que não perde ar.» 
Actualmente, Ezequiel dos Santos quase só faz as festas das aldeias mais pequenas da região ou com menos posses. São toques de alvorada e de procissão, assim como reportório de baile e modas: 
«Quando não têm dinheiro para 'Justar" bandas de música, eles vêm 'Justar" comigo as gaitadas...». 
A formação instrumental varia de acordo com os fundos recolhidos e disponíveis; na sua máxima força pode integrar dois bombos, duas caixas de guerra e pratos. Tudo instrumental de sua pertença, como não podia deixar de ser para poder controlar o grupo. Mas os tocadores contratados esgotam-lhe a paciência durante os ensaios e durante a «função».
O trabalho já não abunda e depois do Verão as festas escasseiam: 
«No Natal e nos Reis é que aparece alguma coisa para fazer. Nos Reis eu vou muitas vezes tocar a Vale Salgueiro: toco no dia 5, por volta das cinco da tarde e no dia a seguir faço as alvoradas, a missa e vou na procissão de Santo Estêvão.»
Com percussão reduzida porque a função é religiosa. Nada de arraial. Em princípios de Setembro de 1996, Ezequiel dos Santos contava ir fazer de novo a festa em Vilarinho das Azenhas, terra situada lá para os lados do Cachão: «Aquilo é das 8 da manhã às 6 da tarde. Mas só vou se me puserem carro à porta. Como é que eu posso levar tudo para lá?»
Não levou. Acabaram por ser os de Sanfins do Douro a fazer a festa. 
Homem de muitos suores nos campos duros e pedregosos de Vale Martinho, Ezequiel dos Santos fala com toda a desenvoltura, como todo o gaiteiro que se preza. Homem vivido e de histórias sempre artilhadas, orgulha-se de nas suas andanças africanas ter uma vez atrasado um voo porque começou a tocar gaita-de-foles e toda a gente o ficou a ouvir. Mas também não se esquece do verdadeiro pânico de um organizador de uma festa em pleno País Basco, ao qual afiançou que iria tocar o «Viva Espanha», assim como a ovação que recebeu no campo do Mirandela quando este jogou contra o Boavista para a Taça de Portugal e ele se encontrava nas bancadas a tocar para animar as hostes locais. 
Ezequiel dos Santos apresenta um reportório que testemunha de modo assaz expressivo a transição entre as composições mais antigas, em claras vias de extinção, e as chamadas modas mais recentes. Sem esquecer as composições de carácter religioso, dignas de toda a nossa atenção e registo. Exibindo um razoável domínio das apoiaturas, Ezequiel dos Santos não tem quaisquer conhecimentos musicais teóricos, tocando o «compasso» de ouvido (como de ouvido aprendeu com o gaiteiro de Vale de Prados, José Benedito).
Ezequiel dos Santos dispõe de um numeroso conjunto de ponteiras:
 «Destas já não sou capaz de fazer: falta-me a vista. Tenho de as mandar vir de Espanha, porque não posso ficar mal.» Mas as do bordão, essas continuam a ser confeccionadas por si, quer com canas que recolhe nos canaviais do Tuela, quer com hastes de sabugueiro (um bom feixe de esguias varas bem secas encontrava-se pendurado no alpendre). Para levantar a lingueta, Ezequiel dos Santos usa a vulgar linha preta de costureira, colocando, por vezes, um pouco de fita-cola para evitar o seu fecho com a humidade excessiva. O extremo é tapado com cortiça. 
Se na gaita antiga os problemas de afinação lhe causam indisfarçada impaciência, com a nova tudo é diferente, embora ainda se encontre em fase de adaptação. No que se refere às ponteiras, Ezequiel dos Santos mostrou-nos dois exemplares, muito antigos, que conserva como reserva. Uma das ponteiras, feita de buxo, «é coisa rija, pra nunca mais acabar.»
No entanto, são já claramente peças de museu, pedaços sobreviventes de uma memória que se vai desvanecendo: «Quando eu morrer isto não vai servir para ninguém. Ninguém quer mais continuar com esta tradição!...»

Texto e Fotos: Excerto do livrete do CD «Ezequiel dos Santos- Gaiteiro de Vale Martinho, Mirandela» - Colecção «Gaiteiros Tradicionais nº1» - Mário Correia / Sons da Terra, 2000


José Maria Fernandes - O Gaiteiro de Urrós 

Quem já teve a oportunidade de o ver e ouvir tocar numa das muitas ocasiões festivas vividas pelas comunidades rurais da Terra de Miranda, de imediato concluiu estar na presença de um gaiteiro verdadeiramente expressivo de uma tradição de seculares origens, desempenhando funções rituais e culturais de reconhecido prestígio social. De facto, José Maria Fernandes permanece como um dos mais expressivos gaiteiros tradicionais no contexto cultural da Terra de Miranda. 
Residente em Urrós, aldeia do concelho do Mogadouro na qual nasceu em 15 de Abril de 1934, José Maria Fernandes destaca-se pela invulgar combinação de talento e virtuosismo com capacidade e instinto de entretenimento, sendo mesmo um caso único, que não hesitamos em considerar como constituindo um derradeiro exemplo de uma tradição que, tanto quanto nos é dado conhecer, apenas encontra actualmente paralelo em Júlio Prada, gaiteiro de Ungilde, aldeia sanabresa ao lado das terras de Bragança. Na verdade, José Maria Fernandes frequentemente ensaia passos de dança, procurando estimular todos quantos assistem às suas execuções, fazendo-o com desenvoltura e elegância e gerando momentos de íntima comunicação com o auditório.
José Maria Fernandes aprendeu a tocar gaita-de-foles com cerca de doze anos de idade, tendo como mestre seu pai (o qual, por sua vez, aprendera com seu avô), do qual aprendeu a esmagadora maioria do repertório. Todo um ambiente musical familiar que foi decisivo para a alegria e o entusiasmo com que se dedica às suas funções gaiteiras. 
Do mesmo modo, não podemos deixar de registar pormenores tão surpreendentes como reveladores da sua técnica instrumental, que referenciamos como «fragmentos da digitação fechada» (levanta-se um dedo de cada vez tapando o imediatamente inferior a cada nota, excepto no que se refere à mão direita, na qual se chegam a levantar três de uma só vez). O que porventura constituirá um resquício de seculares influências asturianas, onde a técnica da digitação fechada é amplamente utilizada pelos gaiteiros tradicionais (e não só).
No que se refere ao seu vasto repertório, importa desde já verificar que o mesmo transcende amplamente os emblemáticos «laços» das danças dos pauliteiros, apresentando espécimes de religiosa funcionalidade, modas de baile e de terreiro, espécimes de rondas e de peditórios e cantigas populares (não só da área mirandesa mas também de toda a vasta terra transmontana, com «passagens» por temas beirões e minhotos).

Texto: Excerto do livrete do CD «José Maria Fernandes, Gaiteiro de Urrós, Mogadouro» - Colecção «Gaiteiros Tradicionais» nº7 - Mário Correia / Sons da Terra, 2000


José Nunes Vieira - O Gaiteiro de Frossos

Há quatro anos, durante a Romaria da Nossa Senhora do Socorro, no cimo do monte onde se situa o santuário (a dois quilómetros da vila de Albergaria-a-Velha), apercebemo-nos do som de uma gaita-de-foles. Aproximámo-nos e deparámos com quem a tocava: um homem, já idoso, que vinha acompanhado por três rapazes que tocavam caixa, bombo e pratos. 
Foi assim que conhecemos o Sr. Zé, de seu nome completo José Nunes Vieira. Nasceu há mais de 80 anos em Frossos, onde vive ainda hoje (Frossos fica situado no Concelho de Albergaria-a-Velha).
Quem o quiser encontrar poderá perguntar pelo Sr. Zé - o gaiteiro, ou pelo Sr. Zé - o ferreiro, pois exerceu esta actividade profissional durante muitos anos.
Ainda hoje vai ocasionalmente à sua oficina onde trabalha com um velho fole de ferreiro, daqueles que «agora já são difíceis de encontrar».
Quando o Sr. Zé era novo, antes de tocar gaita, tocava flauta, «daquelas com chaves», acompanhado por caixa e bombo. 
 A sua primeira gaita-de-foles foi comprá-la a Taveiro, perto de Coimbra, «a um homem que as fazia». Esta tinha, no entanto, um senão: o fole da gaita, que era de pele, tinha previamente servido para guardar azeite, exalando por isso um odor que não agradava ao Sr. Zé. A gaita que utiliza actualmente já foi comprá-la à Galiza. As palhetas e os palhões (que ele próprio manufactura) são feitos, respectivamente, de plástico, a partir de embalagens de iogurte, e de cana.
Além de tocar em festas e Romarias, também é contratado para fazer peditórios. Houve uma vez até que, excepcionalmente, foi contratado para tocar num compasso Pascal numa aldeia perto de Viana do Castelo. Também já tocou para animar «bailaricos». Certa vez fê-lo tocando ao desafio com o Sr. Hélio do Paço, um gaiteiro de Pinheiro, localidade vizinha de Frossos. Quando um terminava de tocar uma música o outro repetia-a e assim sucessivamente. Isto enquanto tudo dançava ao som das gaitas.
O primeiro gaiteiro que o Sr. Zé conheceu foi um tio do Sr. Hélio do Paço, infelizmente já falecido (o Sr. Hélio já vai nos sessenta e muitos). Por sua vez, o mais jovem tocador de gaita daquela zona, um rapaz de vinte e poucos anos que, como gaiteiro, merece todos os elogios do Sr. Hélio, emigrou recentemente para o Canadá.
Um pormenor interessante a realçar está em que os três gigantones que tivemos oportunidade de observar, imóveis e mudos, guardados no celeiro do Sr. Zé, são da autoria do próprio, que os utiliza para animar algumas festas em que participa.

Texto: Henrique Oliveira, Publicado em «Gaita-de-Foles» - ( revista da APEDGF ) ; nº1- Abril de 2001


Eduardo Francisco Veiga - O Gaiteiro de Deilão

A freguesia de Deilão fica situada em plena região da Alta Lombada, uma área de planalto situada a 800 metros de altitude, a poente de Bragança, -confinante com a Espanha, delimitada a nascente pelo Rio Maçãs, a norte pela Ribeira de Pereira e Cerro de Deilão e a sul pela Ribeira de Réfega. 
A riqueza e a diversidade das tradições musicais da Lombada encontra-se estreitamente associada à vida das gentes da região, com uma «estação de festas» centrada na época natalícia (no chamado «ciclo dos doze dias», do Natal aos Reis).
No contexto da generalidade das festas da aldeia de Deilão, bem como de outras terras (e não apenas nas Festas dos Rapazes), o gaiteiro desempenha tradicionalmente um papel de enorme relevância, sendo mesmo considerada imprescindível a sua presença - Festa sem gaiteiro não é festa, dizia-se com toda a propriedade e quando não o havia na aldeia ou estava ausente para a prestação do respectivo serviço militar recorria-se mesmo aos gaiteiros de fora, como o Maçã, da Petisqueira, ou das vizinhas aldeias espanholas (de Riomanzanas costumavam contratar um gaiteiro que tocava por música, que vinha de véspera e ao qual pagavam com grão de bico).
Eduardo Francisco Veiga (que nasceu em Deilão em 1940) -também conhecido como o «Gaiteiro Dias» ou «Gaiteiro de Deilão»- recordou-nos que nos seus tempos de rapaz ficava fascinando com os gaiteiros espanhóis que vinham tocar na aldeia (tais como o Gaiteirim, de Riomanzanas; o gaiteiro de Figueruelas; o gaiteiro de Moldones; o gaiteiro João Prieto, da aldeia de Rio de Onor). «Os gaiteiros espanhóis vinham cá tocar e toda a gente gostava muito deles. Eram recebidos na terra como gente muito importante e eu também queria ser assim. E aproveitava todo o tempo para os ver a tocar e foi assim que aprendi. Tinha de ser assim porque por aqui não havia ninguém para ensinar a tocar gaita-de-foles».
A vontade e a determinação em ser gaiteiro era enorme e necessidade aguçou-lhe o engenho: adaptou a uma bexiga de porco uma ronca, uma ponteira e um soprete feitos de «caneleiro» (uma variedade de cana da região) e deu início à aprendizagem. Tarefa difícil, porque com um fole daqueles era coisa para muito sopro e pouca música.
Durante muitos anos, Eduardo Francisco Veiga utilizou uma gaita-de-foles galego-sanabresa, adquirida em segunda mão ao Gaiteiro de Riomanzanas. 
A ronca da velha gaita do Gaiteiro «Dias» exibe diversas abraçadeiras de metal zincado, porque a madeira rachou em vários locais; e a ponteira já levou diversas camadas de verniz, porque o suor das mãos sempre foi fazendo estragos. Mais recentemente, Eduardo Francisco Veiga adquiriu em Bragança uma gaita galega, com um fole que guarda melhor o ar porque com a outra já lhe custa muito tocar. Ainda faz os palhões, mas quanto às palhetas a vista que fraqueja e a mão que treme, obrigam-no a mandá-las vir de Riomanzanas.
Eduardo Francisco Veiga é o último gaiteiro tradicional de Deilão, facto que não deixa de lamentar, manifestando-se bastante descrente quanto à possibilidade de alguns dos rapazes da terra se poderem vir a interessar pelo instrumento e desse modo garantirem a continuidade da tradição até agora assegurada pelo popular gaiteiro «Dias». A menos que por lá apareçam de novo os gaiteiros espanhóis para animarem as festas da aldeia, ninguém mais poderá dizer: Toca gaiteiro, se não, não ganhas as castanhas!... 

Texto e Fotos: Excerto do livrete do CD «Eduardo Francisco Veiga, gaiteiro ‘Dias’ Deilão, Bragança» - Colecção «Gaiteiros Tradicionais» nº5 - Mário Correia / Sons da Terra, 2000

in:cafeportugal.net

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