quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Trás-os-Montes - No tempo em que os sinos dobravam

Os sinos das igrejas, hoje associados apenas «à marcação das horas e anúncio das missas dominicais», foram, durante séculos, usados «como chamamento para os mais diversos rituais, festivos ou trágicos», como acontecia nos meios rurais transmontanos refere o etnógrafo Alexandre Parafita.
«Os sinos foram, durante séculos, um valioso meio de comunicação, em especial nas zonas rurais. Davam às comunidades as notícias alegres e tristes, tantas vezes empoladas pelo critério emocionado dos sineiros que imprimiam cunhos pessoais no manuseio dos badalos», afirma o professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
E dá exemplos: «pelas características do toque a finados, sabia-se se era morte de homem, de mulher ou de anjinho. Nos toques a rebate, vinham os alertas de perigo, que se distinguiam caso se tratasse de fogo, de invasão, saqueamento, caça a ladrões ou batida a animais selvagens. Os rebates desesperados dos sinos apelavam a um congraçamento colectivo na defesa dos interesses em perigo».
«Em muitas aldeias transmontanas, no toque a finados, usava-se o sino maior do campanário, na crença de que quanto maior fosse o estrondo, para mais longe iria o demónio naquela hora e não se aproximava do defunto», recorda o etnógrafo, adiantando que «segundo a tradição popular, o demónio ciranda em torno do corpo procurando resgatar a alma».
«Daí os vários rituais de esconjuro que nesses momentos o povo costumava praticar, como é o caso da recitação das “Doze palavras ditas e retornadas”», sublinhou.
Outros toques de grande representação simbólica nas comunidades estão associados aos momentos do parto, refere Alexandre Parafita, precisando que «é tradição serem tocadas nove badaladas quando a mulher está no momento de dar à luz e em alguns lugares é o marido que se ocupa dessa tarefa».
Segundo Alexandre Parafita, também se tocava o sino para afugentar as trovoadas, usando-se aquele que estivesse virado para o lugar onde se pensava que os raios iriam cair, «habitualmente a serra do Marão “por não dar palha nem grão”».
«A crença na eficácia dos sinos em tempos de trovoada é grande entre a população transmontana. Reza a lenda que na Castanheira, aldeia do concelho de Chaves, os sinos da igreja de São João tocavam sozinhos para anunciar as trovoadas, o que permitia aos camponeses regressarem dos campos a tempo de se protegerem e acautelarem os seus haveres. E conta-se também que os galegos de uma povoação vizinha, sabendo dessa virtude dos sinos, foram lá roubá-los, e que estes, depois de recuperados pelos seus legítimos donos, nunca mais tocaram sozinhos», conta.
Alexandre Parafita faz ainda referência a outras «lendas de sinos que narram toques misteriosos sem a presença de qualquer sineiro».
«Aludem, por exemplo, ao dia da restauração da independência no ano de 1640, em que muitos sinos tocaram sozinhos num impulso solidário e patriótico contra os espanhóis, numa altura em que ainda não tinham chegado a terras tão longínquas as notícias do golpe dos conjurados», aponta.
Não faltam também «lendas de sinos que aludem à sua fuga misteriosa das igrejas onde foram colocados, indo aparecer no local onde pretendem que o templo seja construído. Este contexto traduz geralmente conflitos de vizinhança, com constantes transladações dos sinos para diferentes locais em função das conveniências dominantes nas comunidades. E perante questões terrenas desta ordem, importa que haja uma resposta do Céu, traduzida na fuga do sino à revelia da mão humana».

Café Portugal/Lusa

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