quarta-feira, 20 de junho de 2018

A ação dos padres de Brancanes em Vinhais. O Seminário da Senhora da Encarnação e constituição da Venerável Ordem Terceira da Penitência

No registo da “vizita vigessima outava” efetuada, em 13 de fevereiro de 1763, ao Real Seminário de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes, o escrivão mencionava o nome do reverendo padre Frei António de Nossa Senhora das Neves, louvando-o com o título de “Missionario Apostólico fundador do Seminário de Nossa Senhora da Encarnação da villa de Vinhaes”.
Na mesma lauda, evidenciavam-se os poderes conferidos ao visitador, “para que vesite, corrija, amoneste, y castigue tam in capite quam in membris, y si fuere necessário forme processos, y los concluja [...] como en todo lo demas, a lo que detreminam las Constituciones Appostolicas de los seminarios”, e declarava-se que tais competências lhe eram conferidos pelo Geral da família Cismontana, Frei Pedro Juan de Molina, leitor de sagrada teologia e “teologo da de la Magestada Católica en su Real Junta por la Immaculada Conception segunda vez Menistro Geral de toda la Ordem de Menores de N.P. S. Francisco”. A esta luz, compreende-se que espíritos ilustres como Frei José de Sant’Ana, citado em 1760 como “escritor coronista, e guardiam” do Seminário de Brancanes, gostassem de perpetuar a função que exerceram. Era em nome dessa memória que, a seguir ao nome, acrescentavam “ex vezitador do da Encarnação da villa de Vinhaes”.
A constatação dos laços que uniam as casas dos missionários apostólicos, obriga a que se considere a relação dos missionários franciscanos de Brancanes com Vinhais, vila da diocese de Miranda do Douro, situada na estrada que ligava Bragança e Chaves. O convento de Brancanes esteve intimamente relacionado com Santo António do Varatojo (Torres Vedras), convento franciscano integrado, desde 1534, na Província dos Algarves de que se desligou em novembro de 1679, altura em que passou a Seminário Apostólico das Missões. Já o lançamento da primeira pedra da igreja de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes, fundado na quinta de Branca Anes, na periferia de Setúbal, ocorreria em 27 de junho de 1682 por iniciativa de Frei António das Chagas  e contou com o patrocínio de D. Pedro II. O andor em que transportava a primeira pedra foi levado aos ombros pelos prelados dos conventos estabelecidos em Setúbal numa cerimónia em que o arcebispo de Lisboa, simbolicamente, lançou nos alicerces espécimenes de todas as moedas que corriam no reino.

FIGURA 1 – Frontaria principal da antiga igreja do Convento de Brancanes

Mas as obras conheceram uma progressão irregular e só voltariam a animar-se, em 1711, quando beneficiaram do calor de D. João V. Além deste fato, esta data também é importante por sinalizar o momento em que o mosteiro franciscano de Brancanes se transformou em Seminário de Missionários Apostólicos e passou a ter governo autónomo.
Todavia, só em 11 de agosto de 1713 o noviciado estaria em condições de acolher João da Lapa, o primeiro noviço a dar entrada em Brancanes.
A maioria dos que se lhe seguiram era oriunda de zonas do centro e do sul do país, terras mais próximas do convento. Mas não passaria muito tempo para se poder contar candidatos a frades de coro oriundos de Braga, do Porto, de Barcelinhos e de freguesias do bispado de Lamego. E também de Trás-os-Montes. Embora não saibamos se foi o primeiro transmontano a tomar ordens, o padre Francisco Pinto, de Monforte de Rio Livre, povoação perto de Chaves, então integrada no bispado de Miranda, tomava o hábito na casa de Brancanes em 21 de maio de 1725. Portanto, a crescente presença de noviços do norte do país traduz o modo como os padres de Brancanes influenciavam áreas distantes de Setúbal em resultado do seu progressivo direcionamento para as terras setentrionais. Em Trás-os-Montes, a importante praça de guerra de Chaves cedo mereceu a atenção dos missionários. 
No Verão de 1719, Frei Manuel das Onze Mil Virgens e Frei José de S. João chegavam a esta “pobre villa feita huma Babilónia de escândalos e huma sodoma de torpezas” onde encontraram “muita parte da gente tam rebelde a ouvir a palavra de Deos”. No combate a este ambiente, os missionários apostólicos percorreriam diversas aldeias das imediações da antiga cidade romana e, provavelmente, desbravaram o campo para Vinhais.


Já os caminhos que levavam a Bragança e a Miranda do Douro, só mais tarde, parece, seriam percorridos com afoiteza pelos padres de Brancanes. Neste mundo muito ruralizado a superstição e outros prolongamentos do paganismo ancestral continuavam vivos, oferecendo aos seguidores de S. Francisco razões para o empenhamento na transformação da consciência religiosa das populações. Num manuscrito sobre a ação missionária dos padres de Brancanes dá-se nota do envio para Miranda do Douro de frei José de Santa Teresa e de frei José dos Santos, uma parelha que, deixando Brancanes no primeiro de maio de 1744, chegou à cidade duriense nos primeiros dias de agosto. Manter-se-iam nos limites desta diocese durante quase dois anos pois só regressaram a casa em dois de abril de 1746. Embora se conheça o seu percurso, à ida e à vinda, interessa-nos o itinerário plasmado no quadro anterior, sobretudo por se dar nota dos dias que os missionários permaneceram nos aglomerados visitados.
Como se vê, na maioria das povoações demoravam-se quinze dias na pregação da missão. No rol das exceções estavam Mirandela e Mascarenhas, com uma permanência de 21 dias, Miranda do Douro que foi visitada duas vezes onde se demoraram trinta dias da primeira vez e vinte da segunda. Desta vez, corria o mês de fevereiro de 1745, “abriram missão na Sé [...] aonde pregavão todos os dias” perante uma catedral repleta de fiéis.
Ao mesmo tempo, poderia causar admiração a brevidade da passagem por Bragança se não conhecêssemos a advertência do cronista, ressalvando “nam repare em gastar tam poucos dias em Bragança sendo huma cidade tam populoza com quatro conventos que havia tido pouco antes missão e fizerão somente aquelles quinze dias para comprir com quem lhes pedio”. Contudo, nesta notícia, ressalta uma primeira estação de setenta e cinco dias em Vinhais, logo complementada com uma segunda visita em que os missionários se demoraram igual número de dias. O que, sem dúvida, equivalia à superação de um período de dificuldades já que “(o) medo (d)os seus longes e a aspereza e pobreza” destas terras transmontanas cediam perante um “caminho das missois mais trilhado, (pois) graças a Deos que se sabe hir, e vir, e fazer lá muito fruto”. Frase ilustrativa de como era profundo e generalizado o desconhecimento da geografia do país enquanto, de forma subentendida, apontava a urgência da ação missionária.
Portanto, a conjugação de fatores como a presença continuada dos missionários, o conhecimento mais profundo das idiossincrasias locais, o estreitamento de laços com os vários estratos da pirâmide social e o relacionamento com os que tinham poder de decisão, seriam determinantes para a decisão dos franciscanos de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes se fixarem em Vinhais, vila onde edificaram um seminário, iniciado em 1752, a partir da qual irradiaram os princípios que levaram à criação da Venerável Ordem Terceira da Penitência.
Assim, o processo da constituição da Ordem Terceira da Penitência de Vinhais surge estreitamente ligado à pregação da missão e à fundação do Seminário. Por isso, é importante olhar para os desejos e para as ambições de alguns próceres locais e para a forma como os Missionários Apostólicos de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes entendiam e praticavam os ideais da igreja militante. Só assim se pode explicar a capacidade de, num território afastado de centros urbanos importantes, se congregarem as vontades capazes de materializarem um cometimento que possibilitaria uma base de apoio à constância na ação missionária. Neste contexto tem relevância o requerimento, datado de 1754 ou 1755, em que José de Morais Sarmento pedia o traslado de um alvará régio que se guardava no cartório do cabido da Sé de Miranda do Douro. Resumimos as informações que nos parecem mais adequadas para a compreensão de algumas das circunstâncias relacionadas com a fundação do Seminário:
1• A fundação do seminário era um desejo dos locais, razão pela qual se congraçavam os oficiais da Câmara, a nobreza e o povo de Vinhais;
2 • A vila, “copiosa de moradores”, administrava mais de “quarenta lugares de destricto” e, em tal vastidão, não contava com qualquer convento de religiosos. Existia apenas um convento de freiras de Santa Clara, muito pobre, e um único pároco curava a totalidade da freguesia;
3 • Perante as carências de assistência espiritual, pois “padicião todos necessidades de confessores e directores de suas consciências” tentaram alcançar do monarca a licença para se edificar “hum hospício de religiosos reformados do numero de dez sendo seis confessores tres pregadores e hum so leigo”. Graça semelhante, e com visível “fruto de suas almas”, tinha já sido concedida aos habitantes de Miranda do Douro e de Mirandela.
4 • D. João V, em 26 de outubro de 1739, acolheu favoravelmente uma petição que lhe tinha sido apresentada no sentido de se “fundar hum hospício de relegiosos Missionários” em Vinhais.
A edificação foi autorizada mas o arranque das obras, por razões nem sempre esclarecidas, seria sucessivamente protelado. Em 22 de setembro de 1751, alcançada a licença do rei, a câmara, nobreza e povo endereçavam uma petição ao bispo da diocese de Miranda do Douro, D. Frei João da Cruz, com a finalidade de obterem a sua indispensável concordância. Ao processo juntar-se-iam ainda declarações tendentes a assegurar que, no futuro, os padres fundadores seriam respeitadores tanto da jurisdição episcopal como dos direitos paroquiais, nomeadamente em matérias relacionadas com o pagamento dos dízimos.
Na mesma petição já se dava conta da presença de dois religiosos na vila de Vinhais, Frei Diogo dos Prazeres e Frei Francisco de S. Alberto, ambos enviados pelo guardião de Brancanes, Frei António de Nossa Senhora das Neves, para pregarem a missão e dirigirem a fundação do novo seminário. Uma carta do guardião do Real Seminário de Brancanes para estes padres, datada de 8 de maio de 1751, “dia da Aparição do Senhor S. Miguel protector das Missões deste Seminário” é bastante esclarecedora não só por lhes recomendar zelo na “nova fundação do hospício, ou Seminário, que para Missionários se intenta dar principio na villa de Vinhaes pela devoção, piedade, liberalidade do sargento mor José de Moraes Sarmento e mais fieis daquela província, que por tão repetidas vezes pedirão os fundadores a este Seminário” mas ainda pela enfatização da vontade de “cooperar(em) com os rogos” do bispo de Miranda do Douro, D. Frei João da Cruz. Em nome da salvação das almas.
O bispo carmelita, em 15 de outubro de 1751, ordenaria a medição e demarcação do chão destinado à obra do seminário, situado “no fim da Rua Nova de S. Caetano no sítio chamado da Taipa”, numa propriedade doada por José de Morais Sarmento e, em 5 de novembro do mesmo ano, colocaria os seus sinais no documento que licenciava a edificação do seminário. Seria dedicado a Nossa Senhora da Encarnação e na solenidade do lançamento da primeira pedra, ocorrida em 6 de janeiro de 1752, o antístite fez-se representar pelo doutor Caetano de Sá Ferreira, chantre na Sé. Contudo, muitas das circunstâncias relacionadas com o arranque e com desenvolvimento da empreitada não são conhecidas. Em todo o caso, as obras ainda decorriam em 1758 como se deduz de um trecho das Memórias Paroquiais, especialmente quando o clérigo informador, referindo o convento das freiras de Santa Clara, noticiava a existência em Vinhais de:
“outro (mosteiro) de religiosos de Brancanes que a custa das rendas manda erigir o Mestre do Campo Joze de Moraes Sarmento natural desta villa com algum consorcio, ou ajuda de mais nobreza povo e terra della que todos concorrem com igoal zello para o exito, e conservação dos Religiozos Missionários”.
Relativamente aos contributos formais para o delineamento da obra, as fontes conhecidas são pouco reveladoras. Em 18 de novembro de 1767, Frei José de Sant’Ana, natural do arcebispado da Baía, duas vezes eleito em guardião e o primeiro que obteve a patente de escritor e cronista de Brancanes, registaria na “taboa do semiterio” desta casa o falecimento ocorrido no Seminário da Encarnação de Vinhais, em 19 de julho de 1767, de Frei Constantino da Conceição. Nasceu em Azurara, no bispado do Porto, vestiu o hábito seráfico em 18 de outubro de 1732 e professou como irmão leigo em 8 de dezembro do ano seguinte.
Antes de se deslocar para Vinhais já tinha ido ao bispado da Baía na companhia de dois missionários de Brancanes, certamente com o intuito de estudarem as possibilidades do prolongamento das missões ao território do Brasil. Nesta perspetiva, a integração do irmão Constantino da Conceição na comitiva não deixaria de estar relacionada com funções de conselheiro técnico tendo em vista, no caso de aí permanecerem os missionários de Setúbal, a necessidade de se edificar a igreja e alojamentos.
Em relação com a obra de Vinhais, esta notícia de óbito interessa-nos especialmente por se mencionar que Frei António de Nossa Senhora das Neves, quando incumbido da fundação do novo seminário: “o escolheu para u(m)a das pedras fundamentais dele, a cuja edificação contribuio muito com seu zelo, e com o seu brasso, sendo carpinteiro de mediana suficiência”.
Informação importante por revelar como o irmão leigo de Azurara, radicado em Setúbal, vem dar contributos importantes na obra de Vinhais e ainda por testemunhar a capacidade das casas de religião se bastarem a si próprias em matérias como a conceção, a execução e a direção de obras. O que explica os laços de família existentes entre o programa arquitetónico da frontaria de Brancanes e o da frontaria do seminário de Nossa Senhora da Encarnação de Vinhais.

continua...

Luís Alexandre Rodrigues

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