Se em tempos idos tal estrutura garantia uma dupla segurança contra os invasores, agora o que se deixa para trás são os ruídos do atarefado vaivém da urbe que continua a crescer a ocidente. Aqui a atmosfera é de uma absoluta tranquilidade, apenas quebrada pelos ecos de uma conversa de vizinhas, o som de um rádio que se escapa de uma janela e a correria de uns poucos garotos que ainda habitam o casario alvo.
Nas pequenas hortas rodeadas de muros baixos crescem figueiras, cerejeiras e legumes, mas a ânsia de verdura dos seus moradores não parece satisfeita pelos extensos contornos do Parque Natural de Montesinho que se avista do cimo das muralhas. Os jardins prolongam-se nas vielas estreitas, em vasos muitas vezes improvisados onde crescem flores de todas as cores. E, logo que chega a Primavera, cada pedaço de solo bravio enche-se de papoilas e malmequeres, sobrevoados por bandos agitados de pardais.
Viver entre muralhas:
Se em momentos de maior silêncio o pequeno núcleo de cerca de sessenta habitantes parece deserto, basta procurar os recantos soalheiros. É por aí que se reúnem os mais idosos à conversa. Elas quase sempre de rendas no regaço, eles com algum cão aos pés, deitando um olho às traquinices dos netos que acabaram de chegar da escola. E todos com muitas décadas de vida passadas dentro do núcleo muralhado - um dos mais harmoniosos e bem conservados do país -, à sombra de vetustos monumentos, que desde sempre se habituaram a ter como companheiros de brincadeiras.
Agora, em tempos de frigoríficos e para evitar actos de vandalismo, a porta do monumento só abre a horas certas, recebendo os turistas na sua atmosfera gelada, refrescante oásis durante o Verão e um pesadelo nos meses frios, quando o vento se insinua constantemente pelas janelas que enfeitam cada um dos cinco lados do edifício.
Com uma forma de pentágono irregular, a sua singularidade não se limita à arquitectura, de que é exemplar único em toda a Península Ibérica. De origem misteriosa, os historiadores não conseguem datar com precisão a época da sua construção. Enquanto alguns autores a situam no século XII, outros defendem a teoria de que terá sido erguido no século XV, sendo o seu estilo românico civil tardio. Outras teses chegam a atribuir-lhe uma raiz romana ou grega. Ao certo, sabe-se que foi sobretudo um importante reservatório de água, com um subterrâneo composto por uma cisterna abobadada - a "Sala d'Água" -, tendo o piso térreo sem divisões e com uma bancada de granito ao longo das paredes - a Casa da Câmara" - servido como lugar de reunião dos "homens bons" do concelho, a partir do século XVI. Poderá igualmente ter albergado os peregrinos que rumavam a Santiago de Compostela, já que a cidade era um importante ponto de passagem.
Muralha e Cidadela:
A seu lado, formando um harmonioso conjunto, fica a Igreja de Santa Maria, de fundações românicas mas completamente reconstruída no século XVIII, na qual se misturam os estilos renascentista e barroco. Enquanto no seu interior se destaca a pintura do tecto, o exterior distingue-se pela bela fachada principal, com colunas decoradas por folhas de videiras e cachos de uvas.
Junto à fachada oeste do castelo, abrigado agora por uma alameda de grandes plátanos, encontra-se o velho pelourinho, onde eram castigados os criminosos da época medieval. Curiosamente, a coluna está assente sobre uma figura suíno-mórfica, a que os locais chamam de "Porca da Vila", e que representa um berrão. Os berrões eram um ídolo pré-histórico, sendo o seu culto uma prática característica dos povos transmontanos. O monumento é encimado pelo escudo das armas de Bragança e um capitel do qual partem quatro braços, cujas extremidades são decoradas com carrancas.
De Brigantia a Bragança:
Da primitiva Brigantia, fundada cerca de dois séculos antes do nascimento de Cristo, nada resta. Guerras entre árabes e cristãos, com os consequentes saques e destruição, arrasam por completo a povoação que na época se dividia em dois núcleos distintos: um situado no lugar da actual cidadela e outro no vale onde agora se encontra a Sé. Em 1130 volta a ser reconstruída por ordem de Fernão Mendes, cunhado de D. Afonso Henriques. Cinco décadas mais tarde D. Sancho I concede-lhe foral mandando erguer a fortificação, indispensável na zona de fronteira do jovem reino. O castelo surge então no lugar de Benquerença, pertencente aos frades beneditinos do Mosteiro de Castro de Avelãs. Em finais do século XIV a vila é oferecida como dote por D. Fernando I a uma das suas cunhadas, irmã de D. Leonor Teles. Finalmente, Bragança torna-se ducado em 1422, tendo como primeiro duque D. Afonso, filho ilegítimo de D. João I e genro de Nuno Álvares Pereira. Com o correr dos anos, o burgo torna-se próspero e nove anos depois D. Afonso V eleva-o finalmente à categoria de cidade, a pedido do segundo duque, D. Fernando. Ironicamente, nenhum dos membros da Casa de Bragança alguma vez ali estabeleceu residência. Enquanto o primeiro Duque preferiu construir o Paço Ducal nas suas propriedades de Guimarães, os nobres seguintes escolheram o clima ameno do sul, habitando o Paço de Vila Viçosa.
Domus Municipalis e Igreja de Sta. Maria:
Entretanto, os séculos XV e XVI vêem surgir na cidade um importante centro de manufactura de tecidos de luxo como veludos e damascos. A sua fama era tal que se comparava "a doçura das carícias femininas ao toque dos veludos de Bragança". Simultaneamente, a fortaleza situada no alto da colina da Nossa Senhora do Sardão, ia sofrendo constantes restauros. No reinado de D. Afonso IV (1325-57), são atribuídas à vila as terças das igrejas da região "para repairamento dos muros". Este facto é confirmado numa carta escrita por D. Fernando, onde afirma que a cerca está deteriorada e a requerer muitos trabalhos, finalmente levados a cabo em finais desse século. A Torre de Menagem é então construída, numa obra que demora 30 anos a concluir. De arquitectura gótica, distinguindo-se pela elegância as janelas em ogiva, ameias e seteiras, as suas linhas apresentam semelhanças com alguns castelos ingleses, do mesmo período.
Histórias de guerreiros e princesas...
Ainda dentro do recinto da fortaleza, mas encostada ao pano de muralha, ergue-se a enigmática Torre da Princesa, de base quadrangular e linhas simples. Era aí que habitavam os governadores e alcaides do castelo, não sendo utilizada para fins militares. O seu nome, de origem desconhecida, deu azo a diversas lendas e histórias populares. Os relatos estendem-se no tempo, tendo como protagonistas as personagens históricas de Dona Brites, Dona Sancha e a bela Leonor, infelizes vítimas de amores não correspondidos, maridos ciumentos ou intrigas da corte. Talvez por ter um final feliz, a mais conhecida é a que relata o amor secreto entre Diana, sobrinha do senhor do castelo, e Ricardo, cavaleiro que partiu para as cruzadas em busca de glórias que o tornassem digno de esposar a jovem. Dez anos se passaram e vendo que a sobrinha recusava todos os pretendentes e que nenhum argumento a demovia de esperar, toda a vida se necessário fosse, D. Hermenegildo resolve utilizar um último estratagema. Disfarçando--se de fantasma, aparece uma noite no quarto dizendo que é a alma de Ricardo, morto em combate, e que a liberta da sua promessa. No mesmo instante uma luz intensa ilumina a alcova, assustando o pretenso espírito que desiste dos seus intentos. Dias depois, Ricardo regressa vitorioso e o casamento realiza-se.
O castelo que assistiu a ferozes batalhas e se insurgiu ao lado do povo contra o domínio filipino, viu chegar bravos soldados empunhando a primeira águia napoleónica que os franceses perderam em território peninsular, vive agora em merecido descanso. Extinto em 1958 o Batalhão de Caçadores n.º 3 que o ocupava, alberga actualmente o Museu Militar, nos cinco pisos da Torre de Menagem. Percorrê-los é ficar a conhecer um pouco mais da nossa História e ter oportunidade de reflectir como todo o equipamento bélico usado era afinal tão inofensivo, se comparado com as novas armas de destruição maciça. Vale a pena começar pela cripta para descer a acanhada escada de caracol até às antigas masmorras. O primeiro piso, além da cisterna, apresenta, na Sala do Gungunhana, interessantes artefactos utilizados por diversos povos africanos e a história do célebre chefe tribal que ousou desafiar o poder colonial em África. A partir do segundo piso, as exposições sucedem-se por ordem cronológica, num total de 14 divisões, desde a Sala D. Afonso Henriques até à Sala da Primeira Guerra, estando patente em cada uma delas o armamento utilizado na época correspondente. Assim, às cotas de malha medievais seguem-se as bestas e armaduras quinhentistas, as espadas e mosquetes do século XVII, as carabinas e sabres do século seguinte. O primeiro conflito mundial termina a extensa colecção, com uma série de fotografias e postais mostrando soldados portugueses na frente da batalha.
Ana Pedrosa
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