Decorridos 41 anos, para uns parece um sonho longínquo, envolto em belos ideais destroçados e, para outros, um pesadelo que lhes destruiu as suas vidas e que os fez passar por privações, mantendo o azedume contra quem fez a descolonização e a mudança de políticas e de regime, partilhando igualmente da preocupação e vontade daqueles que, externamente, não pretendiam que a “Revolução dos Cravos” vingasse em Portugal e que tudo fizeram para que assim acontecesse. Hoje, são evidentes os sinais de desagrado e de que algo não terá correspondido ao esperado. Pelo quarto ano consecutivo, os militares da Associação 25 de Abril recusaram estar presentes na cerimónia oficial e protocolar na Assembleia da República, com o argumento dos “crescentes e continuados desvios às esperanças e valores de abril”.
Como estudante em Coimbra, de 1968 a 1971, vivi a ambiência das lutas estudantis, largamente influenciadas pelo movimento francês e pelos ideais de liberdade e igualdade. Tinha plena consciência do regime ditatorial em que vivia, e que se opunha, por razões óbvias, à democracia. Cedo me apercebi que havia canções proibidas e que a canção era uma arma – e se andasse de barbas e com uma viola, seria um alvo facilmente identificável… e a “silenciar”, pois tinha a experiência do desligar forçado da corrente elétrica quando ousava tocar, em público, a “Trova do Vento que Passa”… sem letra e em ritmo de valsa-jazz, para disfarçar –. Sabia que havia exilados políticos, crimes [de sangue] políticos sem castigo, bufos da PIDE/DGS e uma guerra nas “províncias ultramarinas”, que parecia infinita, que absorvia muitos recursos financeiros ao país e que custava a vida a muitos homens portugueses, que iam cumprir uma missão em defesa da “Pátria” – dizia-se.
Ingressei no exército para cumprir o serviço militar obrigatório, ainda em plena ditadura, com Marcello Caetano na presidência do Conselho [de Ministros] a tentar fazer umas tímidas reformas, que depressa foram rotuladas de “primavera marcelista”, mas que não eram do agrado dos defensores do Estado Novo. Apesar das tentativas de Marcello Caetano em explicar as suas políticas e ideias para o país, através do programa semanal na RTP, intitulado “Conversas em Família”, a verdade é que se via impotente, face a quem se opunha a essas reformas, como também não correspondiam às expetativas de quem esperava uma maior abertura política, com eleições livres, e uma maior liberalização da economia.
Encontrava-me em funções no Gabinete de Estudos do quartel do CICA 2, na Figueira da Foz, quando em finais de setembro de 1973 tomei conhecimento que se estaria a preparar um movimento de militares do exército, que se alargaria a outros ramos das Forças Armadas, e que poderia derrubar o governo de Marcello Caetano. Em outubro desse ano – mês em que fui transferido para o BC3 em Bragança, a meu pedido –, ouvi rumores que estaria eminente um golpe de estado de extrema-direita, encabeçada por alguns generais, onde se destacava Kaúlza de Arriaga. Soube do fracasso da missão de uma coluna militar do RI5 das Caldas da Rainha, que chegou às portas de Lisboa, em 16 de março de 1974, sendo enviados alguns desses militares, de castigo, para o BC3 onde me encontrava e com quem falei sobre esta operação falhada. Durante a madrugada do dia 25 de abril, ainda não tinha raiado o dia, havia ordem de recolher urgente à unidade, ordem dirigida a todos os militares que pernoitavam fora do BC3, encarregando-se disso, diretamente, o capitão responsável pela segurança. Tive conhecimento que tinha vingado o início da operação militar e que o nosso comandante estava temporariamente afastado de funções. Perguntei, por diversas vezes, se estávamos com as “tropas rebeldes” ou com as “tropas fieis ao regime” e não obtive respostas. Certezas? Apenas a de abrirmos trincheiras no interior do quartel, numa posição defensiva, e de enviarmos um carro de transmissões para espiar o quartel de Chaves (BC 10). Sempre agarrado ao pequeno transístor, vou sentindo que ao fim da manhã já se começava a respirar de alívio, pois o comunicado do MFA anunciava que a situação estava a ficar dominada e que a libertação estava para breve. Demoraram várias horas até à confirmação. Por volta das 18h00, o general António de Spínola, na companhia do capitão Salgueiro Maia, apresentaram-se no Quartel do Carmo, em Lisboa, para negociar a rendição de Marcello Caetano, a pedido deste – pois só se renderia perante um militar de alta patente –, o que veio a acontecer. Apenas nas primeiras horas do dia 26 de abril é que foi dada a conhecer a Junta de Salvação Nacional, que proclamou António de Spínola como o seu presidente. Nesse dia, fui com um grupo de militares ao edifício onde estava instalada a Legião Portuguesa, na zona histórica da cidade de Bragança, e carregámos caixas com armas e munições, livros, documentos, mobiliário e diverso equipamento pertencente àquela organização, que transportámos para o quartel. Nesse mesmo dia ouço o comandante, já em pleno exercício de funções, dizer que “sempre, desde o primeiro instante, estivemos com o Movimento das Forças Armadas”. Logo a seguir, fui incumbido de uma missão: partir com um grupo de militares para a zona do Douro Internacional e montar a segurança à barragem do Picote, impedindo qualquer operação de sabotagem a esta central hidroelétrica.
Fui-me apercebendo de anteriores movimentações de militares noutras zonas do país, com especial atenção à Figueira da Foz, de onde tinha saído há poucos meses, e que teve um papel importante na madrugada de 25 de abril de 1974, mais concretamente por volta das 03h00. Foi aí que se deu a concentração de tropas, no chamado “agrupamento norte”, e que envolveu as tropas aquarteladas no RAP 3 e CICA 2 da Figueira da Foz, a que se juntaram as do RI 10 de Aveiro e, um pouco mais tarde, as do RI 14 de Viseu, que se movimentaram em direção a Leiria e a Peniche, tendo em vista ocupar a prisão política. Tinha sido aconselhado, por um militar de carreira, para que eu [na tropa] fizesse por “passar despercebido e não ter castigos nem louvores”. Mas não tenho dúvidas, caso estivesse no CICA 2, sairia com as tropas em direção a Peniche, que sabia ter presos políticos e uma PIDE/DGS armada, pelo que arriscaria um castigo ou até a própria vida.
No 1.º de maio de 1974, num calmo e dia lindo, assisti, embevecido, à gigantesca manifestação popular em Lisboa, através do meu pequeno transístor, enquanto me encontrava ainda na barragem do Picote e a ser muito bem tratado pelo pessoal em serviço na hidroelétrica. Poucos dias depois, foi a impaciência de repetidos telefonemas para o quartel, que não estavam a resultar. Finalmente, a autorização para ser substituído e a dos restantes militares sob o meu comando. Depois, a licença militar que me permitia ir casar a Coimbra, no dia 11 de maio, numa altura em que a viagem de comboio era de sol a sol, ou melhor, saía-se cedo, ainda de noite, e chegava-se já de noite.
Já casado e ainda militar, assisti, num pavilhão coberto em Bragança, ao boicote da Campanha de Dinamização Cultural e Ação Cívica do MFA, que pretendia esclarecer e conquistar as populações, particularmente as do interior rural, para um projeto revolucionário para o país e, assisti, pouco depois, ao assalto e à destruição, através de fogo na via pública, da biblioteca e mobiliário do Partido Comunista – que se tinha instalado na avenida João da Cruz –. Assisti, no início do período revolucionário, ao emergir de alguns “heróis” improváveis. Nove meses depois estava na condição de civil e envolvido numa campanha de alfabetização, junto de colegas da reparação naval.
Decorridos 41 anos, olho e vejo um país bem mais moderno, sendo pioneiro mundial, ou na linha da frente, em várias áreas. Se sentimos retrocessos em determinadas conquistas de abril, particularmente na área social, com o aumento dos índices de pobreza, de nada resulta ficarmos à espera que alguém resolva. Os militares fizeram o que tinha a fazer em 1974, numa determinada conjuntura e com a Guerra do Ultramar no horizonte. Agora, resta a sociedade civil. Já há muitos anos que acredito mais na democracia participativa do que na democracia representativa. Se temos ideais, se não estamos satisfeitos com o que temos, com o que somos e com quem nos representa, só temos que nos mexer, organizar e coletivamente promover as transformações que sentimos necessárias à nossa volta.
Gostei de rever estas Memórias de Abril, ficou a experiência, mas não vivo agarrado ao passado. Escreveu o grande poeta Camões:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades”.
Para a frente é o futuro, e ele está nas nossas mãos!
© Jorge Nuno (2015
in:jorgenuno-letras.blogspot.pt
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(Henrique Martins)
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sexta-feira, 24 de abril de 2015
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