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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 18 de outubro de 2014

OS OLHOS DE PENÉLOPE

DUMA PONTA À OUTRA DO DOURO, AO SOM DUM BOMBO, DUMA CONCERTINA (...)

CABRAL, António
Entre o azul e a circunstância

Duma ponta à outra do Douro, ao som dum bombo, duma concertina, a vida em primeiro lugar é terra, depois olhos, suor e música, terra é a cultura, de Mazouco a Barqueiros, nas planuras crestadas de Miranda, longa dança nos olhos de Penélope tecendo um futuro de limoeiros, o Cachão da Valeira e seus fantasmas, mil e uma noites reunidas à volta do mesmo fragão que esfrangalhou num ápice o barco rabelo, ah tempos, de pombos bravos e coxas de raparigas celtas no fresco vinha d alhos da Ferreirinha, cultura carcomida dos mesmos nevoeiros que se amaciam em franjas de luz na chula rabela, o ouro visto por dentro do outro lado, desfeito em gritarias insalubres no ferro de Moncorvo, reagrupado nas três sílabas de Vila Flor, cultura é isso, as amendoeiras florindo, sua velha resina incendiando-se num jogo popular, este é o jogo da reca, senhor ministro, Vila Real é assim, rezava o Freud, ao menos a libido, só as águias que rilham aos bocadinhos o céu das Fisgas de Ermelo é que rivalizam com os plátanos de Mateus, aqui sua excelência o secretário e sua excedência o não secretário sentam-se à fagácea tábua e decretam: a cultura somos nós, os outros que vão pentear as teias de aranha de Barroso ou engalfinhar-se numa chega pagã com os testículos do boi do povo, mas o melhor de tudo é crer em Cristo como dizia o poeta e, embrulhado num lençol, ir pela via crucis daquela procissão que soe fazer-se na minha aldeia, a inteligente inocência ou não dos animais falantes que mandam a política à merda e passam a vida a colar os ossos ao mesmo bolor, esticando-se aos domingos no adro, que este carreirinho vai ter à ribeira, que o amor dos homens é uma cegueira, mas que homens, pergunta-se, os pintassilgos continuarão a sua festa de macieiras e a donzela, por acaso ainda virgem, de raiva sobretudo, retomará nas endoenças o seu papel amarrotado de madalena arrependida, em Vilar de Perdizes é isto, o povo é que faz a cultura, os outros desfrutam-na à televisão, derretendo-a como um caramelo, estou-me nas tintas para o significado, viva a significância de Lord Russell, dizem, o espectáculo, a rede e a espessura dos signos, educai o povo e vereis em quem ele vota nas próximas eleições, por tudo isto, Lídia, quando (ou) vires um gentleman faz-lhe uma figa ou, se o entenderes, um signo-saimão na encruzilhada em que venha a passar, preferível como um ouriço é arranhar as tripas do Marão, soltar lá de cima um viva cor de fogo e vir passar depois um serão valsado com a Tuna de Meneses, lembras-te das maias e daquele grupo de meninos em Covas de Barroso, dançam tão bem, dizias, e cantavas com eles a história da pastorinha que voou com o vento e subiu aos palácios da manhã, cultura, enfeite de música nas rugas da montanha, ah este povo que se embebeda nas feiras, joga o pau sem boas maneiras e cultiva gerânios contra a noite no Vale de Aguiar, onde nasce um rio que desagua na Régua, fica tudo em família como os milhares e milhares de serranos que se juntam em Mirandela na Senhora do Amparo ou em Lamego na Senhora dos Remédios, à luz dos foguetes que iluminam os metais das bandas e riscam infinitas coisas nos olhos, também nos teares de Agarez, fartura apenas de linhos, nos barros de Vilar de Nantes e Bisalhães, contornos dum tempo velho, a cultura, meus senhores, é esta vida onde o chão continua, terra que os dias vão moldando, afeiçoando a desejos e a desígnios, a cultura não se estuda, vive-se, conhece-se ardendo com ela, vista do lado de fora terá os encantos de Nausícaa, mas não tem de Nausícaa o espaço entre a alma e o púbis, por isso te dirá um gaiteiro de Ansiães: não me escrevas, escreve-te, anda com os meus bois para as lombas de Montesinho, e as cabras ágeis do Larouco, geografia docemente feroz, só aí as flautas entoam o sol poente, que a nossa poesia tenha as marcas da terra que são no fundo as marcas de todos nós, se nos reconhecermos, eu venho dum lugar onde os lobos ainda frequentam as ruas e as câmaras municipais, capazes de devorar as mais puras intenções, em seu proveito e do diabo do partido a que pertencem, os lobos são iguais em toda a parte, culpam-te sem pudor como ao cordeiro da fábula, defrontá-los é uma forma de cultura, a tua, se a vives, pois só há cultura literária onde primeiro houver cultura, isto é, consciência de si, a unidade dos contrários e a bem calcinante opção, é Stendhal contra Kant, a beleza como promessa de felicidade, ó graves escritores do mundo-cão, arrancai das palavras a liberdade como quem arranca dum ventre uma vida, com o saber possível, certo, que toda a palavra é mulher, eu venho dum lugar onde se erguem tapumes contra o povo, quando se abre um buraco é como quem solta um cão, só fiel servidor de el-rei d. simão que vai à caça, de louros e de votos, porca miséria, Lídia, minha filha, perdoa-me este excesso, carne dum romantismo que talvez infelizmente não pode acabar, orquídeas não são as palavras que deposito nas tuas mãos, é um sabor acre de terra, a nossa terra, cujos limites o sejam do que diga.

CABRAL, António - Entre o azul e a circunstância
in:diario.netbila.net

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