Como vimos, desde o início da construção da via desde Foz Tua a Mirandela que se previa a sua continuação para a capital do distrito e daí para a fronteira onde deveria entroncar na de Zamora, com a contradição evidente de se defender aquela linha como de via estreita. Aliás, uma portaria de 1887 determinava que a estação ferroviária de Bragança fosse concebida de maneira a permitir essa ligação assim como para Miranda.
Tiveram os trabalhos de construção da via de Mirandela até Bragança continuidade em 1903, sendo inaugurados precisamente nesta cidade, no Campo de Santo António, isto é, no local escolhido para a localização da estação, cujo projecto de edificação foi aprovado em inícios de 1905.
Após a inauguração dos referidos trabalhos (20.VII.1903) aprovou a vereação por unanimidade um voto de congratulação e agradecimento em homenagem aos que mais activa e efficazmente promoveram aquelle vital melhoramento que de per si ha de garantir o futuro e prosperidade da cidade de Bragança e da região que tem o seu nome cujas entidades são Suas Magestades El-Rei o Senhor Dom [186v] Carlos e a Rainha a Senhora Dona Amelia, os Ex.mos Conselheiros Hintze Ribeiro, presidente do conselho de Ministros, Manoel Francisco Vargas, Conde de Paço Vieira, Emygdio Julio Navarro, Elvino de Brito embora fallecido, engenheiro Fernando de Sousa, sendo estes dois ultimos os que ellaboraram no projecto de lei de 14 de julho de 1899, fazendo approvar pelo parlamento, por mercê de que este caminho de ferro é agora construido primeiro que outros assaz recomendados, embora com somenos [?] direitos; proponho mais que se consigne mais um voto de especial gratidão e funda saudade pelo fallecido e mallogrado José Antonio Ferro de Madureira Beça, o incansavel obreiro que com tanto ardor se devotou á consecução d’esse importante melhoramento, a cuja realização consagrou durante dois annos a sua actividade, sacrificando a propria saude a ponto de perecer a sua prestimosa existencia, pelo que proponho que seja dado o seu nome que é o do engenheiro José Beça á rua d’Alfandega d’esta cidade onde se acha a casa por elle habitada desde a infancia até ir cursar na Universidade, proponho ainda um voto de sympathia ao intiligente e arrojado transmontano João Lopes da Cruz pello denodo com que se houve na lucta que tem por epilogo a realização da obra de que é empreiteiro geral, sendo muito cuadejuvado pelo distinctissimo engenheiro e director technico da linha Snr. Costa Serrão; por ultimo lembraria á Camara o nome do mais infatigavel propugnador d’aquelle assignalado melhoramento obstando contra tudo e contra todos a prorogação necesaria para estes trabalhos terem começo no memoravel dia 20 de julho de 1903. É ao Conselheiro Abilio Beça a quem sinceramente me venho referindo a cujo emprehendimento deve para sempre ficar ligado o seu nome (ADB 1901-1903).
Mas depois da festa vem o trabalho e as dores de cabeça quando se percebe nem sempre ser fácil conciliar todos os interesses.
Com efeito, vários são os conflitos entre a edilidade e a Companhia Nacional de Caminhos de Ferro ao longo da execução dos trabalhos ferroviários, sendo o mais importante o motivado pelo pagamento (ou falta dele) da indemnização devida à Câmara Municipal, assunto somente solucionado em 29.XII.1910, ou seja, 4 anos para além da inauguração da via férrea.
Sobretudo através do conteúdo das actas das sessões da vereação se percebe que a autarquia:
1 - defende a construcção d’uma avenida que ligue esta cidade com a estação do caminho de ferro no sitio do campo de S. Antonio (ADB 1905-1908), paralela à rua do conde de Ferreira, com os fundos governamentais destinados às obras do caminho-de-ferro (PJ 1905a, 3);
2 - defere (25.V.1906) o pedido de concessão de um terreno baldio localizado na margem direita do ribeiro de Vale de Álvaro para a exploração de água e construção de um poço para abastecimento de água à estação, à Companhia concessionária do caminho-de-ferro de Mirandela a Bragança, com a condição de que o terreno e agua a explorar para junto da estação do caminho de ferro sirva igualmente para o publico e pessoal do mesmo caminho de ferro, devendo para isso ser collocado um marco fontenario fora da estação, porque no caso contrario terá de se indemnizar a Camara na forma legal, vindo posteriormente com a palavra atrás argumentando pelo receio que ha que a agua falte no tanque publico, levando o Ministro do Reino a revogar tal recusa (ADB 1905-1908, 46-46v/54v); a verdade é que tempos volvidos a Companhia ainda não havia colocado o marco fontenario para abastecimento do publico e do pessoal do mesmo caminho de ferro, e não tendo ate hoje aquella companhia satisfeito a condição que lhe foi imposta, pro- [219] punha que se officiasse ao representante da referida Companhia n’esta cidade, lembrando o cumprimento da mesma condição para assim attender ás justas reclamações do publico (ADB 1905-1908);
3 - fosse o empreiteiro das obras João Lopes da Cruz, demandado judicialmente pela indemnisação devida pela perda do terreno municipal (logradouro) utilizado para a construção da estação e respectivo obradoiro, destinado ao local da feira do gado bovino realizada a 3 e 21 de cada mês (ADB 1905-1908, 47),
a) situação que motivou um ofício do director da Companhia Nacional de Caminhos de Ferro lembrando não ter havido expropriação por ser terreno baldio para além da antiga promessa de cedência gratuita por parte da Câmara Municipal, disponibilizando-se todavia para tudo regularizar (ADB 1905-1908, 59),
b) ao que A Camara resolveu que se declarasse n’esta acta de sessão que nunca ella prometeu a ninguem a cedencia de parte do terreno destinado ao campo da feira do gado bovino d’esta cidade, para n’ela se construir a estação do caminho de ferro d’esta cidade, porque nenhuma das suas actas de sessão acusa tal cedencia, antes pelo contrario se resolveu na primeira sessão que esta vereação celebrou, reclamar e logo pedir indemnisação pelo terreno occupado pela respectiva empresa com applicação á construção da dita estação (ADB 1905-1908, 95v),
c) a 17.VI.1910 (cerca de 4 anos após a inauguração da via) ainda esta questão se encontrava por resolver, pois a Câmara notifica o director da Companhia nesse sentido para além de o questionar se considerava como propriedade da empresa o espaço de terreno contiguo a entrada para mesma estação e que dá acesso do caes de mercadoria para os carros e outros meios de transporte (ADB 1910-1911, 30),
d) à qual aquele responsável responde que a 28 de Fevereiro desse ano havia comunicado à autarquia a decisão de a indemnizar em 200.000 réis com a condição precisamente de lhe serem entregues os aludidos terrenos,
e) a Câmara contrapopôs aceitando o valor mas com a condição de não ter que alienar os terrenos adjacentes à estação e ameaçou com uma acção judicial (ADB 1910-1911, 30v),
f) na sessão de 6.X.1910, em que curiosamente não há referências à revolta republicana dos dias anteriores em Lisboa, é apreciada uma carta da Companhia onde se percebe que o advogado da autarquia já se havia reunido com a sua direcção por razões do assunto pendente da indemnização (ADB 1910-1911, 53v),
g) por proposta de um dos vogais da vereação se deliberou aceitar o valor de 175.000 réis proposto pela Companhia pela occupação do terreno occupado por ella para a contrucção da estação do caminho de ferro d’esta cidade e mais edificações d’ella dependentes por se reconhecer que seria dispendiosissimo um pleito judicial no sentido de reivindicar maior quantia do que a fixada pela direção n’aquella cifra (ADB 1910-1911, 89v),
h) a Commissão Municipal Republicana do Concelho de Bragança, dá conta (29.XII.1910) de ter recebido do Chefe da Exploração daquela Linha, Veríssimo de Sá Correia, procurador da companhia, aquela quantia supra referenciada (ADB 1910-1911, 112);
4 - atendendo a uma exposição de 2 habitantes de Sortes que numa atitude cívica denunciaram a inutilisação d’uma fonte publica effectuada recentemente pela empreza da construcção do caminho de ferro de Mirandella a Bragança no sitio da Bica, limite da dita povoação de Sortes (...), resolveu tentar acção judicial contra a empreza constructora do caminho de ferro de Mirandella a Bragança, caso ella até ao dia 8 de agosto proximo futuro não vier entender-se pelos meios legais com este corpo administrativo (ADB 1905-1908, 52-53v);
5 - decidiu (4.IV.1907) oficiar ao representante da Companhia para que o caminho que ligava Donai e outras povoações à cidade na zona da estação ferroviária não fique com largura inferior a 6 metros, reservando-se esta Camara o direito de o conseguir pelos meios legais, quando amigavelmente o não obtenha (ADB 1905-1908, 107); a resposta, argumentada, vem no sentido de pedir a dispensa de tal exigência, decidindo a Câmara estudar o assunto para sobre ele se pronunciar futuramente (ADB 1905-1908, 125);
6 - por esta altura adjudicou a camara por maioria e pela quantia de 2:500$000 reis o fornecimento de energia eléctrica para a illuminação pública da cidade (...) segundo as condições superiormente aprovadas e que constam do Diário do Governo de 19 de Novembro de 1907; 4 vereadores votaram contra a adjudicação por considerarem não estarem as finanças municipais habilitadas a fazer frente aos encargos resultantes desse melhoramento (ADB 1905-1908, 125/218v);
7 - deliberou a 3.X.1910 sobre o melhor modo de receber n’esta cidade no dia nove do mez corrente a pessoa de Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Manoel 2.º (ADB 1910-1911, 52v) visita esta que, está bom de ver, se não chegou a realizar.
Epílogo
Com a aprovação dos novos estatutos da CP em 19477 e no âmbito de um processo de unificação da exploração da rede ferroviária nacional, passa a Linha do Tua para aquela empresa (CP 2006). E as locomotivas a vapor continuam pachorrentamente percorrendo a via entre o Douro e Bragança sem os sobressaltos que a 2.ª República lhe havia de imprimir.
Mas entrementes os econometristas começam a clamar prejuízos, por eles criados como sabemos, através da conhecida “política da morte lenta” e eis que em Outubro de 19928, encerram ao tráfego o troço Mirandela – Bragança (80km), permanecendo abertos os restantes 54km (Tua – Mirandela), aos quais em 1995, com a inauguração do Metro de Mirandela, a operar entre esta cidade e Carvalhais lhe são acrescentados mais 4km; em 2001 saem de circulação as locomotivas Alsthom e as carruagens “napolitanas” passando a empresa municipal participada pela CP, “Metro de Mirandela EP” a explorar toda a via entre Tua a Carvalhais (CONDE 2006; CONDE 2007).
E em 24.I.2004 são as instalações da estação ferroviária de Bragança alvo de outra inauguração, porquanto, após a sua adaptação, passam a servir como estação rodoviária (do mal o menos!)
Também a CP aí criou uma Secção Museológica mas que se encontra encerrada ao público, trocando a Câmara Municipal de Bragança e aquela empresa pública, entre si acusações de responsabilidade por tal facto (GONÇALVES 2005).
Mas a malfadada História não fica por aqui, pois assistimos agora a uma outra ameaça, a da sua submersão pelas águas do Tua através da construção de uma presa pelos barragistas da EDP com a conivência da inescrupulosa classe política regional e nacional que não merece ser considerada herdeira daqueloutra que no século XIX tanto lutou por estes melhoramentos que mantêm actualidade, uma vez que a região continua deficitária em vias e comunicações.
Carlos d’Abreu, 2006/2007
in:ocomboio.net
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