As sardinheiras eram um grupo de pessoas pobres que, num Portugal rural e com muito pouca mão-de-obra assalariada, tentava conseguir o sustento para a sua casa e fintar a morte pela fome. Contudo, as lavradeiras pequenas e remediadas ao verem-lhe fazer negócio, lançavam para o ar o dito: «a sardinheira vende sardinha e come galinha».
Inicio esta memória deste comércio móvel rural pela Torre Dona Chama por ter conseguido os dados com facilidade.
Ao arrolar a enumeração dos que se dedicavam à venda da sardinha cabeçuda, da escochuda ou escochada (sem cabeça) e do chicharro, à volta dos anos cinquenta, temos um rol de sardinheiras e sardinheiros: a Tia Lucília, o Ti Carlos Costa Polimenta, a Tia M.ª Gucha, a Tia Marquinhas Guerra, o Ti Tavares e a Ti M.ª Calhelhos.
A escochuda era vendida mais no tempo quente, porque ao sair-lhe a cabeça vinham as vísceras agarradas e conservava-se mais tempo. A sardinha cabeçuda era mais vendida no tempo frio por o peixe se conservar melhor devido às baixas temperaturas.
A sardinha chegava, alta madrugada, de Matosinhos, vencendo as arrastadas curvas do Marão, vinda de caminheta por Mirandela, porque a meados do século XX, já havia estrada por Mascarenhas. Era trazida, em caixas com sal, pela Margarida (do peixe) Cardoso (de Mirandela e esposa do Cardoso – em segundas núpcias) e tinha o Porfírio de empregado. Na Torre recebia-a e distribuía-a o Manuel Guerra, albardeiro de profissão, a quem as sardinheiras já tinham encomendado, previamente, uma ou mais caixas.
Cada caixa paralelepipédica, de tábua fina de pinho, pesava, cheia de sardinha, cerca de 25 quilos, contando com as taubas do caixote, a sardinha acamada e o sal grosso para a conservar. A camada da sardinha de cima da caixa era a maior, mais brilhosa e vistosa e chamada sardinha de capa. Por isso, só se tiravam as taubas de cima da caixa à medida que se gastava a que estava à vista, até ao fundo. Ia-se arrancando mais uma tábua para escoar mais uma porção e quando ficava a meio ou pouco mais já se não arrancavam mais e ia-se tirando, aos pares e com arte. As taubas despregadas eram aproveitadas e voltavam ao distribuidor com a caixa vazia.
Mas o pregão acabava por ser um desafio e uma provocação: - quem compra a sardinha fresquinha!... Ou ainda, o grito apelativo que carregava todos os sonhos e ilusões de um dia de labuta: - ou squinha biba! Depois, as lavradeiras vigiavam-se umas às outras e se uma comprava as outras também tinham de comprar, para não se ficarem a trás. Quando o não faziam, por não puderem ou por serem avarentas ou miseráveis de espírito, tinham que engendrar uma desculpa esfarrapada.
As sardinheiras vendiam-na logo de manhãzinha, com as caixas à cabeça, andavam de porta em porta na Torre e, no final, quando não escoavam tudo iam pôr as caixotas no passeio do Zézinho (José Gonçalves), para as acabarem de vender, junto ao Largo da Praça (hoje adulterado para Largo da Berroa, com desrespeito pela tradição).
Isto as que se ficavam pela corda da Torre, porque outras iam mais longe. A Tia M.ª Calhelhos ia mais para os Vilares. Mas, havia as que iam de terra em terra, pelas aldeias vizinhas, chegavam a percorrer uma distância de 20 e 30 quilómetros para vender toda a sardinha, até Vale de Gouvinhas (Mirandela), Murçós (Macedo de Cavaleiros), Rebordelo, Edrosa e Zoio (Vinhais).
De Rebordelo costumava vir buscar uma caixa o Augusto Canário que a alombava para vender na sua terra. O Canário (de Rebordelo) prosperou e estabeleceu-se como comerciante bem sucedido.
A sardinha era comprada ao cento pelas sardinheira e a venda tinha por base o quarteirão, contando-se aos pares. O quarteirão eram «doze pares e ó bicho». Se a lavradeira só queria meio quarteirão, saía rafado, porque só levava seis pares. Alguma mais pobre só comprava um quarto de quarteirão ou três pares. Os chicharros eram vendidos à unidade ou aos pares e cada par custava uns 2$50 (dois mil réis e quinhentos ou cinco crôas).
Normalmente, a sardinha era vendida a dinheiro ou trocada por grão de pão moído pelo António Moleiro no Moinho (entre os Vilares e a Torre). As lavradeiras e as jeireiras eram receptivas às aflições das sardinheiras e compravam mais do que precisavam. Era vulgar a Ti M.ª Calhelhos, pedir à mãe da Celeste Pires: - fique-me lá com este restinho por um litro de pão para os meus filhos! Nas zonas serranas ou de montanha, vivia-se com mais fartura, trocava-se muita sardinha por pão da serra, ganhando as sardinheiras pelo peixe e pelo grão.
Nessa altura, as sardinhas eram rijadas (e as batatas) (não se perdia a guerdura nas brasas) ou os carapaus em azeite e faziam-lhe um delicioso molho de escabeche para se conservarem por uns dias, na mosqueira ou na gaveta, numa travessa ou prato fundo de gemalte. O chicharro era cortado às postas e rijava-se, também. Cada sardinha avantajada dava para dois garotos e nas casas dos pobres dava para três. A mim tocava-me sempre do lado do rabo porque detestava a cabeça do peixe.
Nos dias de feira, a 5 e 17 de cada mês, havia para venda «pôlbaro» seco ou de meia-cura em cestos de cana abarricados. Na feira dos 17, antes do Natal, comprava-se o pôlbaro e punha-se de molho para o dia 24 de Dezembro.
Havia duas feiras francas ou anuais, a dos Santos, a 5 de Novembro e a dos Reis a 5 de Janeiro. O Largo do Toural era dos mais belos do Norte de Portugal e que começou a ser destruído nos anos sessenta, sendo ocupado com algumas casas.
O peixe dos pobres era o bacalhau, que se comia frito ou guisado com batatas, principalmente nas grandes fainas agrícolas, como a segada, a vindima ou a vareja (da azeitona). Guardava-se na adega ou no sótão (loije térrea e fresca em que se guardava o fumeiro, as carnes e os queijos curados. Era frequente cortar-se uma racha de bacalhau para merendar, beber um copo ou fazer uma refeição de seco.
O côngaro comia-se pouco em Terras da Torre. Quando o havia, num dia de nomeada, a Tia M.ª Calhelhos que era gaga, anunciava com pregão: - quem compra a cona fresca?!... (leia-se: quem compra o côngaro fresco?!..).
Na Torre, merece referência o João (Baptista) Miranda, filho da Tia Rosa Sacas, esta a primeira distribuidora de sardinha que a vendia às regateiras. O João Miranda começou como sardinheiro, vendendo até Espanha e na volta trazia minério no burro. Teve na Torre a primeira caminheta e uma fortuna. Seguiu-se o Américo Dias e depois a Margarida (do peixe).
Neste trabalho etnográfico e memorial sobre a Torre Dona Chama, tomo como referência os anos cinquenta e sessenta do século XX e tive a ajuda da Celeste Pires (Vilares da Torre) e do Ti Octávio Andrade (Torre).
Jorge Lage
in:diario.netbila.net
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