Se houver de atribuir-se a algum cristão-novo de Torre de Moncorvo o título de patriarca, ele cairá muito bem a Luís Vaz. Com efeito, nele entroncam as mais poderosas famílias marranas da terra. (1)
Porém, o local de seu nascimento terá sido Mirandela e irmãos seus foram casar em Vila Flor e Vila Nova de Fozcôa, engrandecendo também aquelas comunidades. Álvaro Vaz e Esperança Pires, foram os seus pais e pertenceram à geração dos “batizados em pé”.
Se bem que ele diga que “sempre viveu na Torre”, a verdade é que a sua ligação a Mirandela é constante. E foi ali também que ele casou, com Branca Pires, ou Dias, filha de Branca Ribeira. O casal fixou morada em T. Moncorvo e a sogra, depois que enviuvou, foi morar com a filha e o genro. Seria mulher de relevo, do ponto de vista social, e era servida por uma escrava, mulata, Paula de seu nome.
Luís terá começado a sua vida profissional como mercador, um mercador de sucesso e cobrador de rendas, a ponto de ser nomeado “recebedor das sisas” do concelho. Os seus investimentos, no entanto, dirigiam-se para as propriedades rústicas, tornando-se “empresário agrícola”, para utilizarmos a linguagem moderna. Isto porque, ao contrário dos lavradores que então produziam para consumo próprio e mercado local, ele dedicou-se sobretudo ao cultivo de linho cânhamo e sua transformação em panos e cordas, (2) para o que tinha criados e criadas, cristãos-velhos, geralmente.
Em Dezembro de 1551, faleceu em Mirandela um cristão-novo chamado André António, pessoa de relevo social, a cuja família ficaria ligado um dos mais famosos médicos portugueses (3) e muito bem relacionado com na Casa dos Távora. E comentando o falecimento de André António, Luís Vaz terá dito que tudo acabava ali, que “não havia mais do que nascer e morrer”. Isto seria ouvido por um Pedro Ferraz, cristão-velho de Mirandela, casado em Torre de Moncorvo, no seio da enobrecida família Lobão. Pedro terá comentado o caso com outras pessoas, nomeadamente com o Dr. Luís de Azevedo e com o padre Baltasar Gonçalves, concluindo que, ao dizer tal coisa, Luís Vaz negava a existência da alma, do paraíso e do inferno. (4)
Por aqueles tempos construiu-se a igreja da Misericórdia de Torre de Moncorvo e parece que a esmola de Luís Vaz foi bem avultada. E já então o lugar de provedor da Misericórdia ganharia importância política. E em determinada altura apareceram dois concorrentes de peso e posicionados em campos bem diferentes. Um deles era cristão-velho, de nobre linhagem e com formação universitária – o Dr. Luís Azevedo. O outro era cristão-novo, advogado de sucesso – o Dr. André Nunes. Luís Vaz, sendo parente do Dr. André Nunes, terá sido um dos seus esforçados apoiantes.
Não sabemos qual deles ganhou as “eleições” e a vara de Provedor. Sabemos é que, entretanto, ao vigário geral Aleixo Dias Falcão terão chegado denúncias de judaísmo contra Luís Vaz e ele se meteu a organizar um processo judicial que depois remeteu para a inquisição de Lisboa onde também Luís Vaz acabou por ser entregue e ficar preso, em 10.4.1557. (5)
Já vimos a acusação de “saduceu” sustentada nos testemunhos de Pedro Ferraz, Luís Azevedo, e Baltasar Gonçalves, estes dois dizendo que ouviram dizer ao outro. Não foi difícil ao procurador do réu desmontar a acusação, mostrando inimizades entre os acusadores e o réu e explicando que tais palavras são perfeitamente compreensíveis em tal momento, como significando que a morte é certa para todos nós.
Outra acusação saiu da boca do meirinho Francisco Rodrigues dizendo que “o réu vai muito mal à igreja e estando a missa a levantar a Deus, ele se deixa ficar fora sem entrar na igreja…”
Também a suspeição e a prova de inimizade entre eles desvalorizou este testemunho. Com efeito, Luís Vaz provou que andaram em tribunal por causa de uma injúria. A injúria terá consistido em Luís Vaz apresentar uma queixa perante o Corregedor da comarca contra um anterior meirinho que era Barnabé Cordeiro, cunhado de Francisco Rodrigues, o qual foi demitido do cargo e desde então os três nunca mais se falaram.
Um terceiro “crime” foi testemunhado por Gaspar Vaz, solteiro, pedreiro, dizendo que em casa de sua mãe entrava muitas vezes uma mulata chamada Paula escrava de Branca Ribeira, sua vizinha e que lhe contou que em casa de Luís Vaz “se guardava o sábado de sexta-feira à tarde sem fazer nenhum serviço e se vestiam camisas lavadas e se guardavam os sábados como guardamos os domingos, não consentindo que criados e criadas da casa fizessem nada em tais dias e que tão judeus eram agora como no tempo que crucificaram a Jesus Cristo”.
Também esta acusação caiu por terra por que, “Gaspar Vaz, testemunha da justiça, diz ouvir dizer a Paula cativa da sogra do réu (…) e que a tudo a dita Paula, em seu testemunho diz que não ouviu nem viu”. Acresce que Gaspar foi acusado de ter roubado uma manta a um irmão de Luís Vaz e foi por isso “infamado de ladrão e por justiça degredado”.
Como era de norma, mandaram os inquisidores de Lisboa ouvir de novo as testemunhas para ratificar seus depoimentos. E nesse tempo ainda as testemunhas eram “abertas”, ou seja: aos réus ou seus procuradores era dado conhecimento das acusações e dos acusadores. O procurador indicado por Luís Vaz para, em Torre de Moncorvo, acompanhar a audição das testemunhas foi seu genro, o licenciado Francisco Fernandes.
Obviamente que o procurador e os familiares e amigos do réu, se esforçariam por convencer as testemunhas a mudar seus depoimentos. E isso mesmo foi utilizado pelo promotor de justiça contra o réu, alegando que houvera “negócio e suborno que teve com as testemunhas da justiça, como também tiveram naturalmente na terra seu genro e parentes” para se desdizerem. Assim não entenderam os inquisidores que, pura e simplesmente, deliberaram que o réu fosse solto e mandado em paz. Porém, como não sabia praticamente nada da doutrina cristã foi mandado uns dias para o Colégio a fim de ser devidamente instruído.
O processo de Luís Vaz tem particular interesse pelo notícias que nos dá acerca do quotidiano da vida económica, social e política de Torre de Moncorvo, uma terra que ele, como arrecadador das sisas sabia ter uns 1 500 vizinhos. Por ele sabemos, nomeadamente, que a igreja da Misericórdia já estava construída. E o mesmo em Mirandela, já que uma das testemunha de defesa por ele indicadas é exatamente “o cura da igreja da Misericórdia nova de Mirandela”.
NOTAS e BIBLIOGARFIA:
1-Pelo casamento da filha Maria Vaz, teve origem a família dos Isidros. O filho Francisco Vaz Frade ligou-se às famílias Henriques e na sua descendência a ligação estendeu-se aos Alvim, aos Pena, aos Mesquita, aos Cardoso… Ver: ANDRADE e GUIMARÃES – Os Isidros, a epopeia de uma família de cristãos-novos de Torre de Moncorvo, ed. Lema d´Origem, Porto, 2012.
2-A cultura intensiva do linho cânhamo no Vale da Vilariça levou mesmo a câmara de Moncorvo a queixar-se perante o rei D. Afonso V dizendo que “os homens lavram ali muitos linhos alcanaves além do razoado, em tal guisa que por azo do dito linho lavrarem tanto, vêm a adoecer e morrem ante tempo (…) e deixam morrer as vinhas e deixam de lavrar o pão e a terra vai-se a monte”. – ANTT, Além Douro, lv. 4º, f. 222. Cit. ALVES, Francisco Manuel, Moncorvo Subsídios para a sua História ou notas extrahidas de documentos inéditos, respeitantes a esta importante villa transmontana, in: Ilustração transmontana, Porto, 1908.
3-Francisco da Fonseca Henriques, mais conhecido por Dr. Mirandela. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES – O Dr. Francisco da Fonseca Henriques e a sua Família na Inquisição de Coimbra, separata da revista Brigantia, vol. XXVI, pp 189-225, Bragança, 2006.
4-Aquela afirmação de Luís Vaz insere-se na corrente do chamado “judaísmo saduceu” e da filosofia epicurista, com base na qual foi processado pela inquisição de Évora o serralheiro Manuel Galindo, um dos primeiros 4 condenados à morte por aquele tribunal e que estarão representados no coroamento da fachada da igreja de Nª Sª da Graça daquela cidade. COELHO, António Borges – Inquisição de Évora 1533 – 15668, p. 239, ed. Caminho, Lisboa 2002; ESPANCA, Túlio – Curiosidades de Évora, in: A Cidade de Évora, Boletim da Comissão Municipal de Turismo, Ano XXI, 1964, pp. 429 – 162.
5-ANTT, inq. Lisboa, pº 12 301, de Luís vaz.
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