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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

"Uma Casa nas Ruas" - Parte VI

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..."
                                                                                         Começar do Zero
Acordou sobressaltado. Tinha caído do colchão. Ainda bem que não era uma cama. Já dormia no chão embrulhado em cartões há tantos anos, que uma coisa tão macia como um colchão de molas cansado, era demasiado luxuoso.
Era dia, a luz escoava-se pelos intervalos das tábuas da porta apodrecida e ele conseguiu apreciar melhor o seu improvisado quarto de dormir. Uma velha charrua, vários apetrechos de lavoura, uma pipa arruinada, as paredes de um antigo lagar. Ainda estava tudo mais ou menos como se lembrava, mas havia ali mais tralhas do que antes. Aquilo fora o local onde o seu avô abrigava o burro nos últimos tempos, mas também fora lagar e adega, quando os três ou quatro hectares do terreno das traseiras ainda lhes pertencia. A pequena quinta, fora vendida quase na totalidade pelo pai, apesar de ser herança da Maria da Luz e não sua. Por isso lhe chamavam o João “da Quinta”, desde que casara com a proprietária. O pai dela, já velho, achou que a deixava bem, entregue a um dos trabalhadores da propriedade, mas estava enganado. Enquanto houve coisas para vender e a mulher se não opôs, tudo desapareceu. De todos os terrenos que possuíam na aldeia, inclusive a pequena quinta por trás da casa, restou apenas a própria habitação e um pouco de quintal. Quando ela se recusou a pactuar com ele, começaram os problemas. Xico soube tudo o que se passara muito mais tarde, já adulto, mas não foi por isso que fez a vida de sua mãe mais fácil.
Saiu do compartimento armado com um arame grosso, pestanejou com o sol forte e dirigiu-se às escadas que acompanhavam a fachada lateral até à entrada principal. Um enorme melro esvoaçou, grasnando de indignação, do desprezado canteiro ao lado da porta. Depois de um pequeno estudo, “trabalhou” a fechadura, que não era das mais complexas e soltou uma exclamação de triunfo quando conseguiu abri-la.
Entrou no compartimento que fazia as vezes de cozinha e receção. Raios de luz caíam obliquamente através das frestas das portadas. As lembranças daquela área espaçosa. Sentado no chão a brincar, enquanto a mãe cantarolava, a acompanhar as canções do radio e costurava. Lá fora a chuva caía abundantemente e do quarto, ouvia-se o roncar embriagado do pai. Noutra altura, os pais batiam-se, estalada um, murro outro, até ela lhe bater com uma frigideira que estava ao lume. Ele ficou com queimaduras na cara e nas mãos, ela também, mas acabou ali a “guerra” e ela ajudou-o a pôr um pouco de banha para reduzir a dor. No outro dia o pai foi-se embora.
Com o estômago a rugir, rebuscou os armários e a dispensa, encontrou umas latas de atum, outras de feijão, dois pacotes de leite inchados, prestes a rebentar e um resto de cereais bafientos num saco de plástico.
Abriu uma das latas de feijão e comeu, com uma colher tirada da gaveta, que simplesmente limpou nas calças imundas. O prazo de validade da conserva passara há cerca de dois anos, mas ele não se preocupou.
A garrafa do gás, junto do fogão, ainda tinha algum combustível e a água e a luz não tinham sido cortadas. A irmã devia pensar voltar… mas se calhar ainda não tivera coragem.
Com um bocado de sabão e uma faca de cozinha barbeou-se o melhor que pôde, terminando com poucos cortes e finalizou com um banho quente.
Sentindo-se novo, foi ao seu quarto. A cama estava apenas com uma coberta, cinzenta pelo pó, mas na arca aos pés do leito, estavam muitas das suas antigas roupas. A mãe sabia que ele haveria de voltar. Não imaginava é que nessa altura tudo lhe estaria largo… e ela não estaria cá para ver.
Olhou-se ao espelho e achou que tivera saudades daquele Xico… estava na hora de o trazer de volta. Estava em casa, na sua casa.
Saiu, senhor de si, com um casaco de cabedal preto, coçado. Do alto da laranjeira rodeada de erva, o melro grasnou a sua revolta por ver o seu lugar profanado, mas ele não lhe ligou e foi à mercearia, contando o dinheiro que tinha consigo. Pelo caminho encontrou algumas mulheres idosas que reconheceu, mas elas olharam-no com curiosidade, sem perceber de quem se tratava.
Afastou as fitas e entrou na taberna/mercearia do Resende. O cheiro a vinho, alho e carnes fumadas era o mesmo de que se lembrava, mas as velhas mesas de madeira e bancos corridos foram substituídas por quatro mesas das mais baratas e respetivas cadeiras. O grande balcão de madeira de onde se servia tanto o copo de tinto, como um quilo de arroz, transformara-se agora num simples balcão com decorações em plástico e tampo em inox. Rematava um expositor refrigerado, onde estavam expostas algumas peças de carne. A luz fluorescente iluminava todo o espaço, mostrando as paredes pintadas a verde há pouco e um mata-moscas de luz azul crepitava a espaços, sempre que uma “atrevida” ia espreitar mais perto. Por trás do balcão, um homem gordo e quase calvo, de olhos pequenos e bochechas caídas, olhava-o desconfiado.
És tu, Manel? — Perguntou Xico, surpreso.
Xico? — O gordo franziu ainda mais o sobrolho, enquanto saía de trás do balcão. — Vejam lá o que o “vento do Diabo” haveria de trazer!
Então? — Sentiu-se ofendido. — É assim que recebes os amigos?
Amigos é? — Respondeu o merceeiro, sardónico. — Os amigos não roubam os amigos, já te esqueceste das coisas que fizeste por cá? Roubaste o dinheiro da caixa ao meu pai!
Eh pá, Manel, eram outros tempos, desculpa. — O recém chegado recriminou-se. — Coisas de canalha, sabes que eu andava sempre metido em trabalhos.
Tu andavas? A tua mãe é que levava sempre por tabela. Primeiro era o teu pai e depois tu!
Pois, era, pobre mulher não merecia o que a fiz passar. — Ele baixou os olhos, contristado.
Sabes que o meu pai só não apresentou queixa de ti na policia por causa dela? E o que teve de aturar da minha mãe! — Havia uma entoação de desprezo na voz do ex-amigo. — Mas ele tinha pena dela, que ficou a trabalhar a dobrar para pagar o ouro que roubaste à Lucinda da Igreja… — Como o outro, de olhos postos no chão, já não respondia, ele continuou. — E agora que vens cá “cheirar”? Vens apanhar mais umas notas “distraídas” agora que a velha morreu, só podes “chular” os outros.
Eu… — A frase iniciou-se com um falsete. — … quero comprar umas coisas. Estou a pensar ficar aqui por uns tempos.
Bem, já vi que temos todos que manter as portas bem fechadas…
Acho que já chega dessa conversa. — Xico endureceu o tom. — Já te disse que esses tempos passaram, fiz muitas asneiras eu sei, mas não posso fazer nada para que o que fiz nunca tivesse acontecido. Posso devolver o dinheiro do teu pai, uma merdice de cento e poucos euros, não agora, mas em breve. Assim que arranjar um trabalhito por aí.
Achas que o problema é o dinheiro? Então não aprendeste nada. — Manuel pôs as mãos na cinta e depois abriu os braços a abarcar o espaço comercial. — Olha para isto! Achas que o dinheiro que roubaste fez assim tanta falta? Foi a vergonha por que fizeste passar a tua mãe, o abuso da confiança do meu pai e o desprezo pela nossa amizade! Parece-te pouco?
Eu sei, percebo. — Começava a sentir-se a mais abjeta das criaturas. — Mas como te disse não posso desfazer o que está feito, apenas garantir-te que não volta a acontecer. Eu mudei, passei por muito nestes últimos tempos.
Isso, só o tempo o dirá. Mas digo-te uma coisa: vou atender-te e vender o que precisas, mas só porque ainda guardo um pouco da nossa amizade, senão tinhas que ir buscar as merdas a Castro Daire, porque aqui, não há mais sítio nenhum onde comprar nada.
Xico tentou apertar-lhe a mão, mas o gordo voltou-lhe as costas e regressou para trás do balcão, de onde o olhou com o ar de “merceeiro que aguarda os pedidos do cliente.
Na verdade, aquele homem balofo, que acabara de lhe dar tal lição de moral, não era o mesmo Manel, companheiro de infância e de patifarias, da sua juventude. Esse, foi ressurgindo nos minutos seguintes enquanto aviava os pedidos e ia respondendo às perguntas do amigo.
Em pouco tempo já estavam os dois sentados a uma das mesas a tomar café e a rir das patifarias da juventude.
Ali soube que quase todos os da sua idade haviam saído da aldeia, uns mudaram-se para a sede do concelho, outros para as cidades do litoral, outros ainda para França ou Inglaterra. Praticamente só restavam dois, ele, o Manel da mercearia e o Zé ferreiro, que não estava bom da cabeça. Contou-lhe como o Zé, que também herdara o negócio do pai, por isso não emigrara, perdeu tudo num incêndio que lhe levou, não só os bens, como a mãe, a mulher e uma filha. Ele próprio ficara muito queimado e esteve muito tempo no hospital. Quando regressou, ficou a viver na casa semi arruinada, que nunca restaurou e ia fazendo uns trabalhos de ferreiro, se havia… ou lhe apetecia.
De repente assomou, à porta por trás do balcão, um rosto feminino que Xico reconheceu. Era Natália, a “apaixonada” de Manuel, pelos vistos sempre ficaram juntos.
Manel! — O rosto gorducho estava zangado. — Não te pedi já que viesses ver aquela torneira da maquina de lavar? Agora rebentou o tubo e está a inundar a lavandaria! Anda, depressa, deixa-te de conversa!
Ela não o reconheceu, ou se o fez, ignorou-o ou não tinha vontade de falar com ele… nem ele com ela. De resto, sempre fora uma emproada, que se achava mais importante e rica do que realmente era. Não foi muito longe, se se deixou ficar por cá e casar com o merceeiro da terra.
O visado fez um sorriso triste para o amigo e murmurou um “Tenho que ir”, em conjunto com o encolher de ombros, antes de abandonar o estabelecimento, ao homem que era um ladrão confesso.
Xico pegou no saco com as compras que pagara e regressou a casa.
Passou o resto da manhã a limpar o quarto onde pretendia dormir e a cozinha, livrando-os do pó e tornando a casa menos assombrada. Depois de almoço, decidiu regressar às traseiras da casa e ao quintal abandonado. O melro estava agora em cima da ramada de videiras esqueléticas e fugiu, fazendo-lhe um voo rasante, frente aos olhos, enquanto grasnava zangado com o intruso. “Pássaro estúpido.”, sentenciou.
Encontrou uma sachola, uma pá e vários outros utensílios que, embora com alguma ferrugem, serviriam para o efeito que pretendia. Parou, apoiado no cabo da sachola a olhar para o extenso quintal coberto de ervas e silvas. Suspirou, quase desanimado, mas aquele quintal, devidamente arranjado, daria umas boas sacas de batatas; teria mais alimento e ainda ganharia mais uns euros.
 Arregaçou as mangas e deu a primeira sacholada na terra, depois outra e ainda outra. Estava a dar inicio a uma nova vida.
O melro plantara-se num sebe em frente ao trabalhador e emitia assobios, por vezes parecia até cantar uma música de uma publicidade conhecida. De todas as formas não o incomodava, antes o distraía, enquanto revolvia diligentemente a terra onde iria plantar as batatas. 
De repente o pássaro preto calou-se e Xico, de cabeça baixa, não se apercebeu da presença do intruso antes de ver as botas de trabalho, femininas e seguir as pernas para cima, passando pelas coxas e ancas bem delineadas até ao tronco forte, envolto por uma camisola de algodão bem recheada com peitos generosos. Todo o conjunto era encimado por um rosto moreno, envolto em cabelo aos cachos e decorado com uns olhos escuros e vivos, um nariz pequeno e afilado e uma boca pequena moldada num sorriso trocista. Estava mais velha, o rosto queimado do sol e as rugas nos cantos dos olhos, mas Maria Alice continuava uma bela mulher, que ele nunca percebera o que vira nele.
Não queria acreditar quando me disseram que tinhas voltado. — Ela atirou-lhe secamente, com as mãos na cinta, numa óbvia pose de desafio. — Serias capaz de te “abancares” por aqui sem ao menos me ir visitar?
Agora nunca o saberemos, não é? — Ele sorriu, com a transpiração a escorrer no rosto sujo de terra.
Nunca pensei voltar a ver-te a trabalhar… no duro pelo menos.
Também gosto muito de te ver. — Retorquiu, irónico. — Estás muito bem, a vida no campo faz-te mais jovem.
Bem, — Ela desviou o olhar enquanto o provocava. — o trabalhador veio, o mentiroso pelos vistos também. Quantas dessas personalidades, que trazes dentro de ti, vieram contigo? Está aí o ladrão também?
Não achas que estás a ser um bocadinho dura comigo?
Dura? Ainda não viste da missa a metade! Não foste tu que foste deixada como um trapo velho que usaste para te limpares. Depois de tantas promessas e tantas ideias, o que é que fizeste? Foste para a tropa, sem te despedires, roubaste meio mundo por aqui e nunca mais ninguém ouviu falar de ti.
Ele não respondeu e recomeçou a cavar a terra.
Sabes porque é que estou aqui a falar contigo, em vez de trazer a caçadeira do meu pai e deixar-te aí estendido? — Insistiu ela. — Porque, apesar de ser uma labregazita ingénua, o respeito e o medo dos meus pais eram superiores à vontade que tinha de me entregar a ti.
Não te deste muito mal. Breve casaste com o filho do barbeiro, segundo eu sei. — Atacou ele sem interromper o trabalho.
E que querias que fizesse nesta terra de m**? Depois de andarmos para aí a lambuzar-nos, tu foste embora e eu ficava aqui como a “gaja que o outro não quis”? Era isso? Cair nas bocas do mundo e ficar aí solteirona? Querias isso? Alguma vez me mandaste dizer uma palavra que fosse?
Sem conseguir articular palavra, ele dedicou-se com mais afinco a cada uma das cavadelas.
Que raios estás a tentar fazer aí, de qualquer forma? — Rita mostrou-se intrigada.
Vou plantar batatas! — Afirmou ufano.
Palerma… — Ela censurou com um sorriso trocista. — As batatas são em Março, agora só couves e cebolas. — Virou-lhe as costas e começou a afastar-se. — Quando acabares a escava passa lá em casa, arranjo-te umas sementes.
E o teu marido? Não se vai importar? — Inquiriu Xico.
O meu marido morreu há três anos! — Respondeu ela já na estrada.
Ninguém naquela aldeia estava contente com o seu regresso, exceto talvez a Maria Alice. Ele nunca se esqueceu dela e sempre se sentiu intimidado junto dela. Ficou a vê-la afastar-se, uma mulher bem feita, inteligente e viúva… o melro soltou o que pareceu uma gargalhada.
Que foi, pássaro estúpido? — Atirou-lhe um torrão que o fez esvoaçar para longe.
Xico? — A voz masculina, por trás dele, surpreendeu-o. Voltou-se para deparar com um homem quase careca e com o rosto deformado numa queimadura extensa. — Sou o Zé… o ferreiro…
Zé! — Exclamou com legitima felicidade, após o espanto inicial causado pelos estragos no rosto do amigo. — Ainda há pouco falamos de ti!
— Eu sei, foi o Manel quem me avisou que estavas cá e mandou isto. — Ergueu duas garrafas de cerveja. — Quer que brindemos à nossa infância, mas disse que continua zangado contigo.

continua...


Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.





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