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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Havia duas casas entre a nossa e a da Tia Ilda e do Senhor Miguel...

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


Do nosso quintal, via-se perfeitamente parte substancial do deles e melhor que tudo, a figueira que lá estava desde o tempo dos Afonsinhos. A figueira era para mim uma entidade transcendental. É que dela dependiam muitas coisas e bichos e quando a estação dos figos terminava e o frio entristecia os quintais ela ficava ali como algo que esperasse pela eternidade. No princípio do Verão começavam a ver-se despontar e de um dia para o outro eram tantos, que pela novidade dada a impaciência, como quem não quer a coisa, a garotada na hora do calor entrava pelo cancelo de trás e tirava a prova. Desilusão, ainda estavam verdes e o pé ressumava leite.
Da primeira prova ficava marca pois os lábios da miudagem engrossavam e eram como a denúncia da transgressão evidente. Reunido o concílio concluía-se que só estariam bons quando os pássaros, na azáfama matinal os debicassem, o que indubitavelmente era sinal de estarem maduros.
Como os pássaros preferiam sempre os cimeiros havia sempre figos com fartura até onde nós conseguíamos subir.
Apenas que nesse intervalo de tempo a Tia Ilda também colhia o seu pratinho para a sobremesa do tio Miguel. Não era que ela se incomodasse com os figos comidos pelos garotos, apenas queria que se não esgalhassem os ramos o que nós dentro do razoável fazíamos por cumprir.
Aquela figueira era um fenómeno. Dela comiam os pássaros, os garotos que apareciam normalmente ao fim da tarde para um joguinho de futebol na Cortinha da Albininha Guerra, a Tia Ilda e a família e ainda dava figos secos pró Natal. Tinha também a vantagem de os dar Lampos e alguns Vindimos. Não sei se o que digo é possível, mas, seriamente em Setembro ainda havia figos na figueira.
Sendo hoje domingo e o calor de Julho apertar, na madorra das três /quatro da tarde fui à travessa da fruta e escolhi uma ameixa para acalmar um ratinho que reclamava coisa fresca. Pensei, faziam-me falta uns figuinhos da figueira da Tia Ilda do Miguel. Quantos comi e como era bom quando mais pró fim da tarde depois do "derby" entrávamos pelo cancelo de trás, colhíamos uns figos e sentados nas pedras do muro divisório íamos ao Céu e voltávamos com a força que os figos doces como mel nos transmitiam e ainda hoje as minhas papilas gustativas lembram em tempo de Verão.
Há uma série de pequenas coisas na minha lembrança que me transportam automaticamente para esse tempo, essa figueira e essa mulher que nunca vi zangada com os garotos e que sempre nos quis bem como aos seus próprios filhos. Quando nos juntávamos à porta da Oficina do “Rei” e ele estava de má catadura, sabíamos que sairia ordem de destroçar. O Rei Pai olhava-nos de esguelha e dizia fero: -Figos ao Cabeço ou grilos à Santa Cruz. Era como uma rajada forte de vento e nós desandávamos um pouco e eu pensava: figos tem-nos a Tia Ilda e grilos não faltam no "Trinta", para quê ir tão longe? Mistérios que me levaram algum tempo a decifrar. Ainda hoje se veem figueiras por toda a cidade velha e sempre que passo estas recordações me assaltam e me obrigam a comparar esse tempo com o de agora. Se as figueiras falassem perguntar-lhe-ia: -Não tendes lembrança do tempo em que as gentes vos olhavam com olhos aguados e vós lhes oferecíeis o vosso fruto que a uns consolava e a outros matava a fome? Com certeza me responderiam: -Sim, mas os homens são assim, sempre foram, quando precisam enchem a Natureza de cuidados, mas também cedo se esquecem de quem lhes faz bem.
Vê como nos abandonaram e nos deixaram para aqui sem préstimo que nos sirva a nós ou a eles. Preferem comprá-los no Supermercado, pesados Imaturos e sem saberem onde e por quem foram tratados.
A minha imaginação arranja-me estas fábulas sempre que passo junto ao rio a partir da Central. Para jusante ainda se veem muitas figueiras de ambas as margens, decrépitas algumas, sobreviventes outras, muitas dentro do que foram quintais e de casas arruinadas, mas há duas com as quais eu dialogo sem palavras, a que ainda está junto à Central, (Centro de Ciência Viva) e outra junto à Ponte do Loreto. Dessas duas comi uns quantos figos que me faziam lembrar do pregão da Tia Pita que no Verão os vendia pelas ruas, apregoando de forma cantante: -Figuinhos da Capadócia, pregão, que me ensinou onde se davam os mais famosos do mundo.
Mas os figos da Tia Ilda do Miguel eram para mim os melhores.
E para me entristecer, um dia vieram os Engenheiros que traziam rolos de papel, máquinas de topografia e um pelotão de serventes e capatazes e derrubaram as casas, os quintais, desalojaram as pessoas, destruíram uma comunidade e fizeram aquela vergonha que dá pelo nome de Torralta!
Que Deus lhes pague com juros de onzeneiro. Voto meu. 





Bragança 12/07/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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