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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O moço dos bois

De oras em quando dou por mim a pensar que já não vou para novo. Não sendo velho, as memórias das minhas vivências, o registo daquilo que vi, coloca-me em frente dos olhos coisas do mundo antigo.
Modos de vida e de ser que se perpetuaram nos séculos e que frequentemente ainda chegaram até aos meus anos de menino e moço nado e criado nas serranias que aconchegam as versas numa poética infância mesmo que sem versos.

Tenho a perfeita noção hoje em dia neste meu e seu quotidiano feito de modernidade e com coisas de muito espanto, de que privilegiadamente ainda tive um pé num mundo que se foi. Consegui e consigo ver coisas que há duzentos anos ou mais se viviam e sentiam. Foi uma sorte.

Ainda sou do tempo em que se não passava nos cruzamentos dos caminhos pela meia noite, em que se acreditava em lobisomens e em bruxas disfarçadas sob a forma de caldeiros velhos nas bermas dos caminhos, e em que se penava porque se não acreditava em dias melhores.
Consigo por isso perceber que o calcorrear de um caminho se fazia com ele a entrar por uma pessoa adentro numa envolvência que dava afagos com as particularidades de cada metro, de cada parede, e de cada paisagem em momentos irrepetíveis porque tudo mudava a cada hora apesar de parecer tudo estar na mesma.

No pequeno cosmos que era cada aldeia, entre todos os animais domésticos, os bois eram de primeira importância. Impunham-se pelo tamanho e pelo préstimo. Cabia-lhes a função de acrescentar força a quem pela força da vida ensopava o suor do rosto com titânicos esforços quantas vezes a troco de uma simples sopa na mesa.

A importância de uma casa de lavoura começava por medir-se pelo facto de ser ou não detentora de uma junta de bois, e a riqueza de uma terra aquilatava-se pela quantidade delas em posse dentro dos seus limites e por entre as suas gentes.

Ser-se possuidor de um carro de bois dava estatuto e posição, pois era sinal de que se possuíam muitos bens ao luar e que se tinham de rogar muitos homens e mulheres para trabalhar. Animais de carga e seres humanos contribuíam para o desenrolar da vida lento e harmonioso, ainda que muito pouco justo.

O moço dos bois, que não tinha necessariamente que ser rapaz e nem sequer era tido como importante entre os pares e os patrões, tinha um papel de primeira apanha nas dinâmicas do granjeio e das inúmeras labutas em redor dos cereais e das vides e em lameiros mais cuidados que as próprias vidas.

Aparelhava e pensava os animais, condicionava e conduzia os carros de bois por entre ruas e carreiros. Com o aguilhão dava-lhes ordens de marcha e com a voz dava-lhes ordens de avanço e de paragens. Com o assobia, indicava-lhes o momento de beber a água vertida da fonte para o tanque.

Com os carros de bois, transportava-se tudo. Lenha para o lume, trigo para se malhar na eira, batatas arrancadas do campo para a loja, uvas para serem pisadas no lagar, e pipas de vinho para serem entregues por vezes bem longe aos compradores do costume em viagens de horas infindas.

Mas o que valia mesmo a pena para quem fosse rapaz ainda isento das preocupações da vida, eram as viagens nas chedas. Estas eram dois prolongamentos pontiagudos na parte traseira dos carros de bois com a função essencial de nelas se passarem as cordas que davam sustentação à carga transportada.

Muitas vezes os rapazes nelas encavalitados faziam parte dela por mero deleite como era o meu caso. O moço dos bois de quem eu mais gostei, foi um que era mouco. Não ouvia e só via em frente. Quase nunca se apercebia ao suplemento de carrego sob a forma de esporádicos e fugidios passageiros.

Não ouvia ele, mas ouvia eu. Ainda hoje ouço o chiar daquele carro de bois guiado por aquele moço, que sem saber, abriu uma rilheira na minha cabeça por onde ainda escorrem estas lembranças. Que Deus o haja.


Manuel Igreja

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