Minha amiguinha adorada. — Ontem à noite, enquanto a tua mamã bordava à luz do candeeiro uma touca Inverno para ti, e teu pai fazia paciências, sentado com Is dos seus amigos ao canto em que está a mesa de jogo baixo da étagère dos livros bonitos, tinhas-te encostado ao braço da minha poltrona, e ali, ao pé do fogão, depois termos estado a ver todas as figuras da Ilustração Francesa, pediste-me que te contasse uma história.
- Mas uma história verdadeira! acrescentaste, sacudindo para trás os cabelos e pondo em mim os teus olhos, sérios como quando me ralhas e me sacodes, por eu ficar às vezes pensativo e calado a olhar para as faúlhas que deita o lume. Quero uma história triste. As histórias que fazem rir são petas. Hás-de contar-me um conto que me obrigue a cismar como as pessoas crescidas quando principiam a dizer os casos que lhes sucederam.
Foi assim que me falaste, e eu prometi-te, debaixo da minha palavra de honra, que me lembraria hoje da história que tu querias.
Aqui a trago escrita neste papel. Quero regalar-me de ta ouvir ler com a engraçada pronunciazinha dos teus oito anos. Quando as pessoas grandes lêem o que eu escrevo, sorrio por fora, mas não imaginas como estou por dentro, de encanzinação e de birra! Se nunca lhe fazem as pausas nem lhe dão as intenções que eu tinha!... Quando tu lês então sim. Quando tu me gaguejas, me silabas, e até (aqui para nós) me soletras de quando em quando, com a tua voz alegre, vibrante e fina, afigura-se-me ouvir uma revoada de passarinhos, que me dão bicadas no pensamento e me esvoaçam com ele pelos céus.
Rosinha, a dama da minha história, tinha sete anos, era loira como tu, e tinha os olhos ainda maiores e mais azuis. Aquela parte do céu que todas as crianças têm por dentro das suas cabecinhas, e que se lhes desafoga no sorriso e no olhar, saia-lhe a ela unicamente pelos olhos, porque Rosinha, a bem dizer, nunca ria. Vê lá se seriam grandes ou não os olhos de uma pequenita assim!
Era magra, tinha os braços finos e as mãos afiladas e descarnadas como as de uma senhora em ponto pequeno. Chegavam a meter respeito, apesar da sua pequenez, pelo que eram de pálidas e pelas veias azuis que se lhe viam, quando ela as cruzava no peito, como a santa de um altar, para conter a fadiga ou a tosse que a sufocava ao mais leve esforço. Era meiga como um cordeirinho sem mãe que a gente crie por caridade com o leite do seu almoço e tão asseada quanto pode sê-lo uma camélia quando acaba de se colher com o orvalho em cima.
Passava horas e horas com a face no seio de sua mãe, beijando-a longa e docemente na boca e nos olhos, brincando-lhe devagarinho com alguma madeixa solta do cabelo, com as medalhas do bracelete, ou com as rendas da camisa, que se lhe viam no peito por dentro do decote.
Era tão sossegada que nas sextas-feiras à noite os folhos do seu vestido de cassa estavam ainda tão frescos e tão perfumados como no momento em que o vestira na quinta-feira de manhã!
- Tão boa de alma e tão fraquinha de corpo, é do céu esta menina, diziam os pobres da aldeia beijando-lhe as mãos quando ela, ao sair da missa, distribuía por eles os dinheirinhos que lhe tinham dado.
Os médicos recomendavam sempre que a amimassem muito e a livrassem de comoções violentas.
O pai de Rosinha viajava, a mãe vivia com ela e com os seus criados numa quinta que tinha.
Uma noite estavam juntas numa sala que ficava rente com o jardim. Era tarde, todos se tinham recolhido, só elas seroavam e não tinham sono, a mãe porque a estava contemplando, ela porque dormira por algum tempo num sofá. Senão quando truz! truz! bate-se por fora na janela que deitava para o parque. A mãe estremeceu. Rosinha abraçou-se nela com o coração a bater-lhe como o de um canário que de repente se sente agarrado no poleiro e fechado na mão da sua dona.
- Já sei o que é, observou a mãe. É a vidraça que não ficou fechada e que está batendo nas portas.
E levando uma luz para um quarto contíguo disse a Rosinha:
- Fica por um instante aqui para te não constipares, enquanto eu vou fechar a janela.
A menina esperou por um minuto, ou dois, mas parecendo-lhe — ilusão por certo! — ouvir falar confidencial e precipitadamente, abriu a porta de súbito e entrou outra vez na sala donde saíra.
A janela estava aberta e a cortina corrida. A luz do aposento espargia-se para fora até alumiar as árvores mais próximas.
Enquadrado no caixilho da vidraça, estava direito como um fantasma e envolto num manto escuro um vulto que parecia de homem e que, ao encarar em Rosinha, recuou dois passos cobrindo o rosto com a capa.
Imagina que susto, Clarice! Ponha cada um o caso em si! Dizem os livros que se não deve acreditar em almas em outro mundo... Eu de mim não acredito, principalmente de noite. Mas, a falar-te a verdade, tenho medo também. Tal qual como se acreditasse. Ainda mais, talvez! Estou a contar-to e estou a estarrecer. E mais sou homem! Rosinha, que era a debilidade e a exaltação nervosa na mais mais estrita figurinha de menina que se pode ver, expediu um grito estridente e dilacerante e caiu como morta.
Voltou a si, mas ficou doente, de medo, com febre e com delírio.
Ao cabo de oito dias ninguém podia vê-la sem chorar sobre o seu pequeno leito de faia branca e de cetim azul. A palmas das suas mãozinhas escaldavam como ferro quente. Tinha a boca seca, a respiração arquejante, e os olhos - os seus grandes olhos azuis - desmedidamente dilatados.
Quando a punham de lado e a aconchegavam na roupa, submetendo-lha no ombro como a tua mamã te quando tu vais dormir, era tão delgadinho e exíguo o seu vulto, que apenas se conhecia que estava gente nessa caminha rodeada de carícias, de sustos, de hesitações e de esperanças, pelo movimento da respiração e pelo aspecto dos cabelos, cujos anéis se viam espalhados e confundidos com as rendas do travesseiro. Quem lhe beijava a cabeça loira sentia o cheiro acre da febre misturado com esse perfume virginal das cabeças das crianças - perfume com que os pais se inebriam e que se parece com o da plumagem interior de um ninho aquecido pelo seio amoroso de avezinha.
Por mais que lhe fizeram, por maiores que foram os esforços da medicina, por mais ardentes e desesperados que foram os mimos, os cuidados e as orações maternas, Rosinha foi sempre a pior.
Um dia apareceu mais sossegada e serena. Estava com a mãe que a fitava, engolindo o pranto e procurando sorrir à sua dor com o mesmo esforço com que uma pessoa gelada procura espantar o frio fingindo-se quente. Rosinha disse-lhe assim:
- Está muito triste mamã, que eu bem lhe conheço nos olhos que tem chorado muito... E tenho-a ouvido também a soluçar aí, aos pés da minha cama, julgando-me adormecida. Não pense mais em mim. Eu sei que morro, mas que vou para o céu. Não tenho medo de ficar sozinha. Quando eu lá chegar acima hei-de pedir ao anjo da minha guarda que me leve a falar com Deus, e eu mesma lhe farei queixa daquele homem negro que veio de noite meter-lhe medo, andando para trás diante de mim como um fantasma, e escondendo os olhos no seu manto preto. Hei-de pedir, hei-de exigir mesmo em nome da mamã, que ele fique enraizado no parque, imóvel no meio das árvores, para que o papá ainda o encontre quando voltar, e com a força que ele tem, lhe descubra o rosto e ralhe muito com ele... Abrace-me agora, mamã, e verá como eu lhe vou dar com um beijo a consolação e a esperança...
A mãe ergueu as mãos para um crucifixo que estava pendurado no muro e bradou-lhe:
- Deus de misericórdia! matai-me aqui! que eu morra já, ou que enlouqueça ao menos!
Faze ideia, Clarice, como seria doloroso ouvir assim a despedida extrema, tão caroável e terna, de uma filhinha que se adora, mais que tudo na terra e no céu! Verdade seja que se reuniriam pelo amor no outro mundo... Não querem dizer que as estrelas cadentes, que a gente vê de noite atravessar o espaço, são as almas dos que se amaram na terra a procurarem-se para se incorporarem numa só luz no firmamento? Não era já um penhor dessa entrevista celestial o beijo derradeiro que a filha oferecia à mãe? Quando esta, porém, se debruçava na cama para o receber, Rosinha tinha a boca aberta, os braços deslaçados, a cabecinha caída para trás no travesseiro como um peso de chumbo, e os olhos vidrados, embaciados e imóveis, cravados na figura do anjo pálido e frio de alabastro, por cima de cujas asas abertas pendia o cortinado do leito. Estava morta.
Quando o pai voltou não encontrou no parque o fantasma negro. O jardim estava igualmente só! Não viu ninguém. Nem a filha que lhe saltasse jubilosamente ao pescoço, nem a esposa que cingisse ao coração. A menina já estava sepultada no seu tumulozinho do cemitério do Alto de S. João, onde nós havemos de ir no dia de finados dispor um canteiro de amores-perfeitos em testemunho da nossa saudade e plantar uma roseira em memória do nome da defuntinha gentil. A mãe tinha trocado o aconchego dos seus aposentos, as árvores do seu parque, as flores do seu jardim, e as alegrias tão meigas e serenas da sua família, pela solidão horrorosa de um quarto numa casa de alienados.
De hoje em diante, Clarice, quando fizeres a tua oração da noite, reza um padre-nosso a maior pelo homem negro. Ninguém sabe quem fosse, mas deve ser grande culpado, a quem Deus dificilmente perdoará, aquele que esconde o rosto na capa para não ver as crianças, e para as não beijar!
A comiseração para os criminosos como ele só pode pedi-la os inocentes como tu.
Ramalho Ortigão: "Histórias Cor-de-Rosa" (1870)
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