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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Trindade Coelho: "Vae Victis!"

 Não estava ninguém na fonte, quando a Luísa, de cântaro deitado sobre a cabeça, ali chegou. Ninguém. Debaixo do sol risonho, ao murmúrio da água da bica, derivando, viva e clara, de um pedaço de telha partida, naquele socalco de pequeno cabeço em cujo topo, à roda da igreja branca, a aldeia negrejava, parecia tudo adormecido. Verdegavam perto os lameiros; iam viçosos, nos quintais e hortejos, os renques dos legumes, e já nos ramos das árvores, inteiramente vestidos de folha, picavam as primeiras flores.

Quase sem horizonte, porque outros cabeços o fechavam perto, esse recanto onde borbulhava a fonte parecia ali como escondido. Próximo, um ribeiro passava, além de umas paredes baixas, onde as mulheres costumavam lavar.

Mas não vinha dessa banda, àquela hora, o mínimo rumor de vozes, nem se ouvia, como noutros dias, bater a roupa nos lavadouros. Como nas doces aguarelas, uma atitude de êxtase imobilizava ali todas as coisas, tocando-as de uma pontinha de sono - e as coisas, como as crianças, pareciam, sorrindo, deixar-se adormecer...

Tomada do mesmo espasmo, a Luísa quedara-se abstrata junto da bica, esperando que se enchesse o cântaro; - mas agora, ao ruído monótono do fio de água, escoando-se, lentamente, no bojo do barro insaciável, como que lhe acordara nos ouvidos, onde lhe tinha ficado encantada, e com todo o relevo da voz do Tônio, essa pergunta que ele lhe fizera:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Estava mesmo a ver o rapaz quando lhe dirigira a inesperada pergunta. Fora no adro, um domingo de tarde. Os homens, em descanso, conversavam de lavouras, sentados por cima do muro; as mulheres tagarelavam em grupos, de cocarinhas no terreiro sagrado; e ela, com outras da sua igualha, chasqueava, à porta da igreja, dos moços que jogavam a barra.

Fingindo uma coisa séria, o Tônio, que entrava no jogo, viera para ela em mangas de camisa, o chapéu deitado para trás, num instante em que lhe não pertencia atirar o ferro. Da violência do exercício, trazia o sangue a espirrar-lhe da pele e muito vivos os olhos azuis.

- Ó Luísa! - dissera-lhe ele chamando-a de parte. - Fazes favor de uma palavra?

Ela fora, na boa fé, e quase sem o pensar. Senão quando, chegando-se como para um segredo, perguntara-lhe com a voz muito quente:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Não tivera tempo de lhe responder, nem saberia tampouco; e ele mesmo, chamado para o “tiro” que lhe competia, desandara lesto e sem se voltar, deixando-a, incoerente, a pensar na atrevida pergunta:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Já o cântaro ia quase cheio, mas ela nem dava fé. Sempre que podia fechar-se num pensamento, nas suas horas de suave remanso, era naquele pensamento que ela se fechava; e muitas vezes, ao adormecer, a esperança de o prolongar em sonhos fazia-a pegar no sono quase a sorrir. Viera-lhe daí o que parecia às outras melancolia, mas que era para ela um gozo suave - o prazer de estar sozinha, de não ver nem ouvir ninguém, de devanear, ela só, naquele tema sempre constante...

E de tanto que repetia a pergunta em pensamentos, chegara a recear repeti-la alto; e aos seus olhos era assim como um lindo quadro, cheio de luz e realidade, esse querido domingo de tarde, no adro, em que ele, o Tônio, lhe fizera ao ouvido aquela pergunta:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Parecia-lhe haver acordado então de um grande sono que durara toda a sua vida passada, de que mal se lembrava agora; e essa tarde no adro, que podia ter sido, para ela, tão indiferente como foram tantas, era agora como a sua primeira hora de existência, - essa tarde em que o Tônio, chegando-lhe os lábios quase ao ouvido, lhe perguntara numa voz muito quente:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Parecia-lhe mesmo estar a ouvi-lo: a sua voz como que ficara viva dentro dela, - e esse doce, misterioso ritmo em que se fundira, causava-lhe, de cada vez que o escutava, um encanto novo...

Recolhida, suspensa como num voo, num êxtase de toda a sua vida, outras vezes era ela mesma que a invocava... E de ouvido muito fito, os olhos semicerrados, um arroubo todo espiritual elevando-lhe os seios da alma, aquela voz descia do céu:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Voavam-lhe as horas neste enlevo, entre as paredes do seu tear; e o mundo, a felicidade, a alegria, o próprio Deus, residia tudo dentro dela, - na doce, enternecida recordação daquela tarde, no adro, quando o Tônio, sem ela o esperar, lhe fizera ao ouvido essa pergunta:

- Dás-me um beijo, Luísa?

E no entanto, não lho dera então, nem lho daria ainda hoje, esse beijo que lhe pedira o Tônio. Porquê? Nem ela o sabia: mas só de o pensar, as faces purpurejavam- -lhe, e a luz que desde essa tarde a envolvia toda, parece que tinha, de repente, um espasmo de intermitência...

Isso, porém, acontecia muito raras vezes, e quando sucedia era passageiro; pois que, sondada bem no íntimo, dela se pode dizer que vivia apenas, extasiada, de um êxtase da sua memória, e que a sua memória, semelhante a um estado imóvel, nada mais podia refletir do que a cena desse domingo de tarde, no adro, quando o Tônio, sem ela o esperar, viera segredar-lhe mesmo ao ouvido:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Tudo o mais era-lhe indiferente na vida, e como que o tinha esquecido; e para as coisas e fatos de ocasião, em que não havia remédio senão reparar, tinha agora uma benevolência quase risonha que repartia também com os outros, e que se convertera, para com os pobres, numa caridade cheia de ternura. Como o tear ficava na casa térrea de entrada, os pedintes era a ela que se dirigiam, uns da porta, outros da janelinha, e alguns havia já a horas certas. Parava de tecer a Luísa, e elevando a voz chamava pela mãe:

- Ó minha mãe! Faça favor de trazer um bocadinho de pão, que está aqui um pobrezinho.

E se a mãe replicava com o perdão - “Dá-lhe o perdão, que não pode ser” - ela mesmo, dali a pouco, ia-se ao pão e cortava-lhe um pedaço, dizendo às vezes que era para ela.

A mãe, que percebera, dissera-lhe a rir de uma dessas vezes:

- Tanto pão! tanto pão, rapariga! Ora aí está porque tens essa cor, que é mesmo da cor do centeio!

Mas era uma esmolinha que dava, e um desejo que satisfazia; - e só ela, afinal, não tinha que pedir nem que desejar! Graças a Deus, o trabalho sobrava-lhe, e não tinha mãos a medir; e quanto a ambições, isso que ela ouvia que todos tinham, não as sentia de casta nenhuma. No entanto, essa mesma felicidade era para ela um fato inconsciente e derivava, sem dar fé, da obsessão deliciosa daquele domingo de tarde, no adro, em que o Tônio lhe dissera ao ouvido:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Depois dessa tarde, sem contar as vezes que se salvaram, apenas uma ocasião tinham falado. Quase sem intenção, o Tônio chegara-se à janelinha do tear, e, assomando a cabeça loira entre os dois cacos de manjericos, pusera-se a falar com ela. Tinham conversado um pouco de tudo; primeiro de coisas simples da vida, e por fim, sem bem saberem como, de casamentos: uns que tinham gorado, outros que prometiam fazer-se, a sorte doutros que se tinham feito...

Nesta parte da conversa ainda a viúva interviera, e os três tinham rido o seu bocado. O Tônio andava em dia com os amores de toda a aldeia, e tinha um modo de dizer as coisas, e principalmente de se referir a pessoas, que fazia rir a mãe e a filha.

- E tu, ó Tônio, - dissera a viúva em certo ponto, - diz’ lá tu quem é que derriças?

Como dois floretes muito subtis, que se cruzam sem se tocar, os olhares dos dois, da Luísa mais do Tônio, haviam-se cruzado repentinamente. Ambos notaram isso, e ambos, no íntimo, ficaram como surpreendidos…

- Ora, ti Ana! eu penso lá nessas coisas! - acudiu o rapaz.

E como a Luísa se pusesse a tecer, e o ruído do tear abafasse as palavras, levantou a voz para que o ouvissem:

- Nem quero!

Mas a viúva objetou:

- Olha quem! Não queres! Põe lá que se te saíres a teu pai... - E com intentos de lhe puxar pela língua, perguntou: - Seguro que não botaste no S. João os teus papelinhos, ó Tônio?...

- Ora! - fez logo o rapaz sem ligar importância. - Mas isso toda a gente! - E para arredar alguma pergunta indiscreta, acrescentou: - Aposto que até vossemecê?!

Riu-se a viúva com muita vontade:

- Ai, filho, não! Olha eu! Algum tempo, algum tempo! Mas onde isso vai se bem correr!

E como uns laregos entrassem pela casa dentro, de focinho a rabuscarem o chão, correu a viúva a enxotá-los - “Coch'qui, inimigos! Coch’qui!” - enquanto os olhares do Tônio e da Luísa, rápidos como dois relâmpagos, segunda vez se cruzavam no ar...

- Vou-me que são horas, ti Ana! - disse logo o Tônio. - Até logo. - E não olhando já para a tecedeira, despediu-se também:

- Adeus, Luísa.

…Depois, mais nada. E aquilo mesmo, que podia ter sido, afinal, sem intenção, quase se lhe diluíra a ela da lembrança, - e aí persistira só, num fundo claro de madrepérola e num relevo cada vez mais vivo, aquela cena de domingo de tarde, no adro, quando o Tônio, sem ela o esperar, quebrara, nessa pergunta, o virginal encanto da sua adolescência, - fazendo-a acordar na puberdade:

- Dás-me um beijo, Luísa?

Na fonte, enquanto o cântaro levou a encher-se, não surgira sombra de gente. A mesma sonolência morna adormentava à roda todas as coisas, e só no azul do ar, muito fino, que o brando sol da manhã diluía numa luz suave, passavam, tocados de opala, os pássaros chilreadores. Na superfície do pequeno tanque adjacente, forrado de musgo, onde os animais costumavam beber, o céu espelhava-se límpido, muito fundo, com o ligeiro algodão de uma nuvem quebrando-lhe a um canto a monotonia; e já a água borbulhava do cântaro como em fervura, e a Luísa parecia esquecida, - quando um casal de borboletas brancas, interceptando, num voo sereno, a linha perdida do seu olhar, veio, imperceptivelmente, evocá-la de novo à realidade...

Reparou então que estava cheio o cântaro, e já a transbordar; mas indo a pegar-lhe para se ir embora, viu, de repente, assomar o Tônio num deslado, - como se o pensamento dela o evocara...

Tiveram ambos, naquele momento, o mesmo abalo de viva surpresa, durante o qual se fixaram muito um ao outro, a averiguar se lhes mentiam os olhos; - e com a certeza de que lhes não mentiam, adveio aos dois, no mesmo instante, a sensação entre perturbadora e deliciosa do isolamento em que se encontravam...

Sem refletir, parece que cedendo a um impulso estranho, dirigiu-se o Tônio para a banda da fonte; mas adivinhando nos modos da Luísa a turbação que a enervava, sem também saber a razão os passos hesitaram-lhe...

De repente, como se a cumplicidade do lugar e do silêncio o estimulasse, - e ela, abandonada, parecesse agora provocá-lo - apertou-a nos braços o rapaz; - e colando-lhe na boca os lábios frementes, como se lhe fora a sorver a vida, beijou-a num frenesi.

Ao mesmo tempo, numa vibração de rumor que vai a apagar-se, aquela voz deliciosa do Tônio, tão viva, desde esse domingo, como um canto de rouxinol, parecia agora, quase extinta, fugir e despedir-se da sua memória:

-...“ Dás-me um beijo, Luísa?...”

Fonte:
Contos Portugueses - Volume I.

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