O que não significa, como fica dito acima, que não haja poetas que, falando de noite e de amor, mantêm em relação a eles uma puritana reserva.
É o caso de Soares de Passos, poeta a que ainda voltaremos, no tão decantado — e cantado, acompanhado ao piano — «Noivado do sepulcro», poema narrativo que começa justamente dando logo no primeiro decassílabo as coordenadas temporais e espaciais da história que vai contar: «Vai alta a lua! na mansão da morte». Ou seja: é noite no cemitério. Nessa balada seminal, que tanto epigonismo fez pingar em álbuns de senhoras aliteratadas e tanta lágrima fez derramar a meninas tísicas, o poeta faz da noite do cemitério o cenário para umas núpcias que não foi possível celebrar em vida. De forma que:
É o caso de Soares de Passos, poeta a que ainda voltaremos, no tão decantado — e cantado, acompanhado ao piano — «Noivado do sepulcro», poema narrativo que começa justamente dando logo no primeiro decassílabo as coordenadas temporais e espaciais da história que vai contar: «Vai alta a lua! na mansão da morte». Ou seja: é noite no cemitério. Nessa balada seminal, que tanto epigonismo fez pingar em álbuns de senhoras aliteratadas e tanta lágrima fez derramar a meninas tísicas, o poeta faz da noite do cemitério o cenário para umas núpcias que não foi possível celebrar em vida. De forma que:
[...] mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
Presume-se, naturalmente — et pour cause — que a união post mortem dos dois noivos tenha sido casta. De qualquer modo, há a meio do poema uma alusão de passagem ao «infernal prazer» que se presume condenável.
O alemão Friedrich Novalis, cinquenta anos antes, não tinha ido tão longe na exploração macabra da noite. O romantismo ainda não degenerara e ainda se continha dentro de limites apesar de tudo razoáveis. Os melancólicos “Hinos à Noite” — hoje de leitura quase tão estimulante como um cronicão medieval, mas que na altura (princípios do século XIX) fizeram a reputação do poeta — são a sua obra definitiva. Uma vez mais, estes hinos são o oposto da visão da noite como alcoviteira. A noite é antes uma figuração da morte. De resto, foi a morte da sua amada noiva, Sofia, com apenas quinze anos de idade, que lhe inspirou os hinos. A noite de Novalis é uma porta mística por onde se entra à presença de Deus. Já não está associada a Eros, mas a Thanatos — o que para alguns não será tão contraditório assim. Pois não há quem, com boas razões, afirme que o momento supremo do êxtase amoroso é uma benévola prefiguração da agonia final? Novalis, contudo, não foi por esses caminhos, que então ainda estavam por percorrer. Para ele, a noite é um pouco como para Fernando Pessoa, aliás Álvaro de Campos, numa conhecida ode: «enfermeira antiquíssima», que pode arrancar o poeta «do solo de angústia e de inutilidade». Ou seja: consoladora dos aflitos.
Como se vê, a cada um sua noite.
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário