A idade traz consigo consequências que nunca deploraremos suficientemente. Diz um prolóquio galego que também se vai ouvindo, por osmose, na fronteira norte de Trás-os-Montes: «Quando o nariz pinga, a pila minga e a carvalheira zoa, a vida não está boa.» Bem decerto que não está. O nariz a pingar e a pila a mingar são desgraçados ónus da velhice. A carvalheira a zoar é senha de Inverno. Velhice e Inverno: qual deles mais triste e castrador?
É pois natural que na idade em que esses malefícios se instalam, a visão epicurista da noite de que temos vindo a falar esmoreça, e a gente comece a olhar a noite com outros olhos que não os da carnalidade ou da libertinagem. A noite deixa de ter a mais-valia erótica? Pois busquem-se sucedâneos, novos encantos. Haverá mil e uma maneiras de o alcançar. Um modo possível — pista que quero agora seguir — é concentrarmo-nos na noite já não como cenário de coisa nenhuma, mas na noite em si mesma. Melhor: o céu da noite como espectáculo fascinante que é. Aliás, não é preciso ter-se chegado a velho para a fruir assim: basta que tenhamos dentro de nós uma centelha de inquietude estética.
Claro que ver a noite dessa forma é prazer que a cidade nos tolhe. É preciso ir ao campo para o gozar em pleno. E se vale a pena! Um céu constelado de estrelas é tão belo e inspirador como o binómio de Newton ou a Vénus de Milo, com a vantagem de não ser produzido artificialmente. Numa noite calma de Verão, vibrante da estridulação de insectos, ver aqueles milhares de lumieiras lucilantes, aquele passadiço de poalha prateada da estrada de Santiago, o clarão da lua cheia rompendo de trás da serra — e considerar o assustador mistério de tudo aquilo...
Gozei muitas vezes, e ainda gozo quando se me proporciona, esse espectáculo da noite do campo. Metido num apartamento em Vila Real, cidade sobre a qual a EDP derrama generosamente torrentes de watts em cada rua, iluminando-lhe a giorno as noites, quando me chego, noite cerrada, à varanda e olho o céu — que vejo eu? A Lua, se acaso é noite dela; talvez Vénus ou uma qualquer estrela de maior fulgor — e disse. O resto é escuridão, porque o clarão da luz artificial ao rés da Terra ofusca os astros lá em cima, transformando o firmamento numa cúpula opaca. A falar verdade, à míngua de contemplar esse céu assim baço e inexpressivo, acabamos por esquecer onde fica a Ursa Maior, a Ursa Menor, o W da Cassiopeia e todas essas constelações do hemisfério norte que aprendemos a reconhecer na 4.ª classe, no tempo em que havia 4.ª classe e em que na 4.ª classe se aprendia a reconhecer coisas destas.
É pois natural que na idade em que esses malefícios se instalam, a visão epicurista da noite de que temos vindo a falar esmoreça, e a gente comece a olhar a noite com outros olhos que não os da carnalidade ou da libertinagem. A noite deixa de ter a mais-valia erótica? Pois busquem-se sucedâneos, novos encantos. Haverá mil e uma maneiras de o alcançar. Um modo possível — pista que quero agora seguir — é concentrarmo-nos na noite já não como cenário de coisa nenhuma, mas na noite em si mesma. Melhor: o céu da noite como espectáculo fascinante que é. Aliás, não é preciso ter-se chegado a velho para a fruir assim: basta que tenhamos dentro de nós uma centelha de inquietude estética.
Claro que ver a noite dessa forma é prazer que a cidade nos tolhe. É preciso ir ao campo para o gozar em pleno. E se vale a pena! Um céu constelado de estrelas é tão belo e inspirador como o binómio de Newton ou a Vénus de Milo, com a vantagem de não ser produzido artificialmente. Numa noite calma de Verão, vibrante da estridulação de insectos, ver aqueles milhares de lumieiras lucilantes, aquele passadiço de poalha prateada da estrada de Santiago, o clarão da lua cheia rompendo de trás da serra — e considerar o assustador mistério de tudo aquilo...
Gozei muitas vezes, e ainda gozo quando se me proporciona, esse espectáculo da noite do campo. Metido num apartamento em Vila Real, cidade sobre a qual a EDP derrama generosamente torrentes de watts em cada rua, iluminando-lhe a giorno as noites, quando me chego, noite cerrada, à varanda e olho o céu — que vejo eu? A Lua, se acaso é noite dela; talvez Vénus ou uma qualquer estrela de maior fulgor — e disse. O resto é escuridão, porque o clarão da luz artificial ao rés da Terra ofusca os astros lá em cima, transformando o firmamento numa cúpula opaca. A falar verdade, à míngua de contemplar esse céu assim baço e inexpressivo, acabamos por esquecer onde fica a Ursa Maior, a Ursa Menor, o W da Cassiopeia e todas essas constelações do hemisfério norte que aprendemos a reconhecer na 4.ª classe, no tempo em que havia 4.ª classe e em que na 4.ª classe se aprendia a reconhecer coisas destas.
(Continua)
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