Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Também por isso a relação que temos com os deuses é sobretudo emotiva. Somos forçados a existir sem saber porquê numa realidade que não pedimos. A carregar uma vida às costas ao serviço de forças que não controlamos, antes nos controlam, vivendo-a tanto quanto ela vive de nós. A lutar mais ou menos inconscientemente com o que nos cerca e domina, atascados em dúvidas sobre o que andamos a fazer. A estranheza e a inutilidade de tudo pairam por cima das nossas cabeças nesta passagem que sabemos temporária e breve. Sentimentos íntimos e esmagadores de abandono e orfandade, difíceis de traduzir em palavras, fazem de nós permanentes meninos ansiosos à procura de figuras que nos acudam e protejam no desamparo – deus-pai, mãe-do-céu. Que nos salvem de nós próprios e da solidão com promessas de vida futura, feliz, num além incerto – cristo-salvador.
Para justificar a situação absurda em que estamos pendurados, imaginámos seres sobrenaturais cujos atributos contrastam com os estreitos limites que vemos em nós, de quem esperamos receber a dádiva daquilo que nos falta, a quem rogamos que nos apontem um caminho. Infelizmente os que falam em seu nome são pessoas iguais a nós. Os chamados imortais permanecem sempre mudos e quedos, abrigando-nos da dúvida criando mais dúvida. E é assim que onde há crença há descrença. Acreditar é duvidar. Nas palavras de tertuliano, “acredito porque é absurdo”. Nas coisas de que estamos certos não acreditamos. Nos deuses sim, precisamente por não termos essa garantia. Por isso, como diz um pensador dos nossos dias, “bem escondida no coração do ateu há resquícios de crença, no mais íntimo do crente resiste a sombra da dúvida”. Tanta mais dúvida, por certo, quanto mais fanático o crente for.
É provável que tudo isto explique ainda que tenhamos feito nascer e morrer milhares e milhares de deuses ao longo do tempo, e sabe-se lá quantos mais estarão na calha para nascer e morrer. Na incerteza, como alternativas terrenas a eles, causamos devastações de toda a ordem, inventamos drogas que nos estupidificam, enfrascamo-nos de trabalho e tecnologia, ambicionamos progresso material sem fim, acumulamos montões de bens supérfluos, cultivamos prazeres fugazes que ainda cavam mais o nosso vazio. Perseguimos inclusive nobres utopias como a beleza, a liberdade, a justiça, a igualdade, sem que nenhum destes escapes nos possa aliviar inteiramente da desesperança. De uma forma ou de outra, dê por onde der, e visto que nunca nos livraremos de acreditar, que seja ao menos em alguma coisa que valha a pena.
Pela minha parte deixei-me tocar por uma proposta de divindade que o evangelista lucas põe na boca de jesus: “o reino de deus não é algo que se veja chegar, é um estado de espírito, está dentro de vós” (17:20,21). Suponho não errar se disser que podemos também chamar a esse reino consciência, psique, mente, alma, pensamento. Apesar de não palpável, se o temos dentro não estaria correto dizer que nos transcende, sendo por isso menos uma aposta de fé, um credo, do que uma certeza. Permitimos ou não que se manifeste, conforme o desejarmos, mas ninguém no-lo trará a não ser nós. É difícil imaginar algo mais individual, subjetivo, privativo. Como origem de todo o sentimento, nesse lugar onde só a nós rezamos tanto pode nascer a dor, o desgosto e a loucura como a harmonia, a paz e o amor. Adivinhando os abismos dessa dimensão sem limites, temendo o poder fantástico que promete e fugindo ao trabalho sobre-humano de a desvendar, vivemos ainda na idade da pedra da sua exploração.
(Nordeste - dez. 2020)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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