Lobo-ibérico. Foto: Arturo de Frias Marques/Wiki Commons |
Os dados do Sistema de Monitorização de Lobos Mortos (SMLM) contam a história mais recente de um conflito antigo. Foram recolhidos 133 cadáveres desde 1995, quando se começaram a guardar em arcas congeladoras os lobos-ibéricos encontrados sem vida, para serem alvo de necrópsia e apurar-se o que tinha acontecido.
Estes números foram comunicados à Wilder pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que assegura o funcionamento do SMLM desde que este foi criado, em 1999. É nesta base de dados que se registam todos os lobos encontrados mortos, seja por vigilantes da natureza ou por agentes do SEPNA-Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente, ligado à GNR. Muitas vezes, o alerta é dado por cientistas e outras pessoas que andam pelos campos.
Fonte: SMLM/ICNF |
“Ao longo do meu trabalho, tem sido frequente deparar-me com lobos mortos”, confirma Helena Rio Maior, bióloga e especializada na conservação de grandes carnívoros. Ao longo de 12 anos, Helena esteve envolvida num projecto de seguimento de lobos em Portugal marcados com coleiras com GPS, coordenado pelo CIBIO (Universidade do Porto). “Posso dizer que em 20 lobos seguidos, cerca de metade foi morto ilegalmente pelo Homem.”
O lobo-ibérico (Canis lupus signatus), uma sub-espécie do lobo-cinzento exclusiva da Península Ibérica, foi descrito para a Ciência pelo espanhol Ángel Cabrera, em 1907. Na altura, distribuía-se de Norte a Sul do território português, em especial no Interior, mas foi perdendo terreno. Hoje, está circunscrito a quatro núcleos populacionais, no Norte e Centro: três acima do Douro – Peneda-Gerês, Alvão/Padrela e Bragança – e o mais pequeno e isolado a sul daquele rio.
Segundo o Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental, publicado em Abril, a espécie mantém-se Em Perigo de extinção desde 1990. Quanto ao tamanho da população, manteve-se “globalmente estável nas duas últimas décadas, apesar de ocorrerem algumas variações a nível regional”.
Até ao final do ano, espera-se que sejam publicados os resultados do último censo à espécie, realizado entre 2019 e 2021. Mas os dados já conhecidos indicam que não há diferença face ao número de lobos apurado há 20 anos: no total serão cerca de 300 animais – dos quais menos de metade efectivamente reprodutores – divididos entre 50 a 60 alcateias.
Lobo-ibérico. Foto: Gérard van Drunen/Wiki Commons |
Esta estabilidade está todavia em contramão com o que se passa noutros países europeus, onde há uma “tendência geral de expansão da espécie”, nota Helena Rio Maior. Já em Portugal, “a situação populacional não tem melhorado, inviabilizando que esta atinja um estatuto favorável de conservação”. Há que apostar na conservação do lobo e investigar o que se passa, avisa.
O que é mais comum, pode afinal não ser
Nas necrópsias a todos os cadáveres de lobo encontrados, realizadas pelo INIAV-Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, em Vairão, Vila do Conde, os números de atropelamentos lideram as causas de morte. Até 2018, representaram praticamente um terço das situações investigadas, quase o dobro das armadilhas de laço e dos abates a tiro.
No entanto, acredita-se que essa diferença acontece, justifica o ICNF, porque as estradas originam “cadáveres que são encontrados mais facilmente”. Helena Rio-Maior concorda que esses são “os casos mais visíveis”, mas que até não serão os mais comuns.
“Todos os outros casos são mais crípticos – ou seja, mais escondidos – quer por os cadáveres poderem encontrar-se em zonas de difícil acesso, quer por haver a necessidade de ocultação de um crime”, explica a investigadora, que acrescenta que “o cenário real de taxas de mortalidade e das suas causas é obtido exclusivamente através do seguimento de animais marcados com GPS”.
Nesses casos, recorrendo à localização por satélite, “é quase sempre possível chegar ao cadáver” e reconstruir o que terá acontecido nos últimos momentos de vida. Dos lobos marcados no âmbito do projecto de telemetria em que esta investigadora participou, entretanto terminado, a principal causa de morte foi o laço, seguida do tiro e do uso de veneno.
Entretanto nos anos mais recentes, segundo os dados do SMLM, têm sido registados tantos lobos a morrer em armadilhas de laço como atropelados nas estradas nacionais. Em conjunto, essas duas causas representam quase metade dos 23 animais necropsiados pelo INIAV desde 2018. O abate a tiro surge como o terceiro maior motivo.
Causas de morte de lobo-ibérico apuradas entre 2018 e Abril de 2023. Fonte: SMLM/ICNF |
No que respeita às armadilhas de laço, proibidas por lei, são muitas vezes usadas para apanhar outras espécies como o javali e o corço. Mas nos últimos anos, há indícios de que são usadas de propósito para matar lobos, que ficam presos pelo pescoço ou por uma pata e acabam por morrer à fome. Ou pior.
O encontro com uma destas armadilhas foi precisamente o momento fatal para um lobo encontrado morto em Paredes de Coura, na freguesia de Cunha, em 2019. Dois anos depois, em 2021, foram notícia outros dois cadáveres detectados no Parque Nacional da Peneda-Gerês, em Montalegre e Bragança – o primeiro dos quais, mais uma vez, apanhado numa armadilha de laço. Já no último mês de Março, foram encontrados dois lobos sem vida em Montalegre e Arcos de Valdevez, os dois com marcas de tiro.
Em contrapartida, são raros os envenenamentos confirmados – uma realidade “claramente subestimada, porque é uma causa de morte que origina cadáveres de difícil detecção”, comenta o ICNF. Até 2018, foram confirmados em laboratório apenas quatro lobos envenenados, apesar de 14 situações que apontavam nesse sentido, e desde então não houve mais casos conhecidos. É que devido à degradação dos produtos usados e à dificuldade de os detectar em laboratório, muitas suspeitas acabam como “causa indeterminada” nas estatísticas do SMLM. Além disso, muitos animais não chegam a ser encontrados: ao sentirem-se doentes, escondem-se.
O lobo-ibérico morre também enfraquecido por doenças como a esgana e a parvovirose ou por conflitos com outros animais. Num dos casos identificados nos últimos cinco anos, “admite-se que as mordeduras tenham sido causadas por outros canídeos, cão ou lobo”, adianta o ICNF. No outro, “trata-se de um animal recolhido na área de Rio de Onor, e pelos ferimentos que apresentava admite-se poderem ter sido causados por um veado”, mas “sem certezas”.
Mais investigação criminal precisa-se
As justificações que são dadas para se continuarem a matar lobos são bem conhecidas. Muitas áreas naturais estão cortadas por estradas, povoações e outras infraestruturas, as presas silvestres são insuficientes e estes predadores de topo viram-se para o que está mais à mão: cabras, ovelhas, vacas, cavalos e burros. Muitas vezes, como no Alto Minho, aplica-se “regime de pastoreio livre de bovinos e equinos, em que os animais estão mais vulneráveis”, aponta o instituto. O resultado traduz-se em prejuízos para quem vive da pecuária.
Como resposta, em Portugal existem regras para compensar quem perde animais caçados pelo lobo, por vezes criticadas como burocráticas e de aplicação demorada. Nos últimos anos foram criados também programas, como o Life Wolflux, que apoiam a utilização de cães de protecção de gado, uma tradição que se foi perdendo e que se tenta recuperar. E a nível do Estado, foram lançados em Abril novos financiamentos dirigidos a quem efectivamente utiliza estes cães para evitar que os rebanhos sejam atacados.
Mas de facto, o convívio entre humanos e lobos continua atribulado. “Creio que as populações rurais ainda encaram o lobo como um problema, não havendo, de forma geral, uma lógica de coexistência com a espécie que permita tolerar a sua presença e concentrar esforços em minimizar as suas consequências negativas, nomeadamente a diminuição dos prejuízos causados nos animais domésticos”, refere Helena Rio Maior. Seria importante também, acredita, um estudo sociológico a este nível.
Pormenor de lobo ibérico conservado no Museu de História Natural, Lisboa. Foto: Joana Bourgard |
Para que as mortes propositadas diminuam, a investigadora afirma que são importantes mais acções de sensibilização das populações locais, mas que isso não chega. Em primeiro lugar, sublinha, “a primeira fase para um combate bem sucedido ao furtivismo, e ao crime ambiental em geral, é o conhecimento dos casos e das problemáticas que os envolvem”.
Depois de consolidado todo esse conhecimento, “é fundamental que se adoptem medidas e políticas que permitam combater o furtivismo de forma adequada”, incluindo “a concertação e capacitação de todas as entidades responsáveis pela implementação da legislação”: Autoridade Nacional para a Conservação da Natureza (ICNF), autoridades policiais (SEPNA|GNR), procuradores e magistrados.
Mas para já, indica, “sem dúvida que a esmagadora maioria dos processos crime contra lobos foram arquivados”. “É imperativo que se invista na investigação criminal, de forma a que seja possível apurar responsabilidades e que isso tenha um efeito dissuasor.”
Só dois processos em tribunal
Em Portugal, o lobo é o único animal selvagem protegido por uma lei específica dirigida à espécie, publicada em 1988 e regulamentada em 2016, com o objectivo de o proteger e proibir a sua morte. É também visado pelo Plano de Acção para a Conservação do Lobo-ibérico, aprovado pelo Governo em 2017. No entanto, uma coisa parece ser o que está escrito na lei, outra o que sucede no terreno.
Até hoje, só terá havido dois processos concluídos na Justiça. O caso mais antigo, registado em 2012 na sequência de uma montaria, terminou com o pagamento de um pequeno valor. “O arguido foi sujeito a suspensão provisória do processo mediante o cumprimento da injunção de pagamento da quantia de 300 euros à Associação de Bombeiros Voluntários de Arcos de Valdevez”, relata o ICNF.
No segundo processo, em 2017, nem chegou a ser proferida sentença, pois “foi determinado o arquivamento do mesmo, dado o resultado da necropsia ter indicado a causa de morte como indeterminada.”
Ainda assim, é possível que nos próximos anos haja mais mortes desta espécie ameaçada a chegarem ao tribunal. E com um desfecho diferente. É que em 2019 as regras relativas ao SMLM mudaram de forma a “potenciar o apuramento mais eficaz das causas e circunstâncias da morte dos animais, bem como dos responsáveis pela mesma”, explica o instituto que tutela a conservação da natureza.
“A partir dessa altura, e na sequência de sessões de esclarecimentos efetuadas junto das autoridades policiais e de magistrados das Comarcas da área de distribuição de lobo, a notificação do Ministério Público e o desenvolvimento do processo de investigação têm vindo a decorrer de forma mais sistemática e orientada para a obtenção de resultados”, acrescenta.
Desde então, depois de receberem o auto de notícia a dar conta de um lobo encontrado morto, são os procuradores do Ministério Público que pedem a realização de uma necropsia ao INIAV, para que sejam investigadas as causas. Este último redige então o relatório pericial, enviando o documento novamente aos magistrados, que determinam o que fazer.
Assim, quanto à actuação da Justiça, neste momento estão a ser acompanhados “de forma próxima vários processos, ainda em curso no Ministério Público, aguardando-se pela conclusão dos mesmos”, indica o ICNF.
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