sábado, 9 de junho de 2018

Pintar o mapa do interior de Portugal com as cores do papa-figos

Armando Carvalho é o rosto atrás do papa-figos, o nome pelo qual responde uma equipa de profissionais que se dedica a produzir e a divulgar guias de viagem sobre o interior de Portugal editados pela Foge Comigo.
Armando Carvalho chegou a temer o pior. Conhece os caprichos da ave viajante, sabe que o papa-figos procura os sítios mais bonitos, sempre no interior, para construir o seu ninho. E no passado mês de Outubro a paisagem de Vila de Barba, na freguesia de Couro do Mosteiro, em Santa Comba Dão, foi profundamente alterada com os incêndios que devastaram uma área inimaginável no interior de Portugal. “Tive medo que ele este ano não aparecesse, fosse para outras paragens. Mas já o ouvi. A primeira vez que ouvi o seu cantar foi no dia 1 de Maio. Um dia de bom augúrio.”

No currículo de Armando Carvalho lê-se que é um engenheiro florestal formado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, mas o percurso cívico revela que é muito mais do que isso. É, sobretudo, um activista ambiental militante e devotado aos territórios do interior, área que optou por trabalhar sempre em todas as suas facetas profissionais. Esteve no serviço nacional de Parques Naturais, esteve na Direcção Regional do Ambiente, depois no Instituto de Conservação da Natureza, com áreas protegidas de interior no Centro e Alto Alentejo. E esteve sempre na militância pelo ambiente, tendo mesmo chegado a assumir a vice-presidência da associação Quercus durante quatro anos.

Do ponto de vista formal, é, actualmente, um funcionário administrativo da Comissão de Coordenação da Região Centro, entidade que lhe concedeu uma licença sem vencimento. Na realidade é o sócio fundador e dinamizador da Foge Comigo, uma empresa fundada em 2012 que se dedica à produção, edição e comercialização de guias de destinos turísticos do território nacional, com particular enfoque nos territórios do interior.
Um dos carvalhos que Armando plantou na "Floresta dos Destinos"

A ambição é assumida, e vamos precisar de olhar para o mapa do território nacional, acompanhar o caminho de Chaves a Faro e visualizar a linha desenhada pela Estrada Nacional Número 2, para a perceber. “Queremos cobrir todo este território, entre a EN2 e a fronteira, com guias de viagem que levem os portugueses a conhecer estes territórios, e toda a sua riqueza”, explica Armando Carvalho. Portugueses? Sim, porque, para já, os guias são redigidos apenas numa língua. Mas o passo seguinte será, naturalmente, a internacionalização. Mas já lá vamos. Primeiro é preciso explicar como chegamos aqui, e Armando Carvalho nunca fala em nome individual, mas sempre em nome da equipa que representa e a que quis dar o nome de papa-figos.

“Essa ave viajante é a que melhor nos representa. E é um bom símbolo dos compromissos que assumimos quando abraçámos esta ideia. O primeiro de todos é esse nosso compromisso com o território e com a prioridade que damos aos destinos turísticos do interior”, explica Armando, enquanto nos aponta para as duas gatas que se passeiam por entre a lareira de granito, o alambique de cobre, os sofás e a velha cristaleira que fazem a decoração do “armazém” desta editora que já produziu nove títulos e tem neste momento mais dois na calha. “São as melhores amigas do papa-figos”, diz. 
As gatas circulam pela casa-sede da empresa, circulam pela casa contígua, que é a morada de família de Armando, circulam por toda a aldeia, que se tem tornado porto seguro de quem saiu para a cidade para ganhar dinheiro e fazer a vida, mas sempre a pensar em voltar.
Um dos volumes do Guia de Portugal, uma colecção produzida entre 1920 e 1970,
que ainda hoje é uma referência para tudo o que Armando faz

O segundo compromisso da Foge Comigo prende-se com a componente social que é dada ao projecto, uma vez que tem como objectivo partilhar o negócio com os agentes de cada destino turístico. “Não avançamos com nenhum guia se não tivermos uma parceria bem fundamentada com uma região, uma associação de municípios, um concelho. Eles têm de perceber que isto também é deles, e lhes vai permitir comunicar o território”, explica Armando. 
Os hotéis, restaurantes e restantes agentes de cada região não pagam nada para figurar no guia — “há um critério editorial, que é integralmente nosso, não aceitamos interferências” —, mas há uma noção clara de que é impossível avançar para a impressão de um guia de 500 páginas se não houver uma certeza de que pelo menos metade da tiragem está imediatamente vendida.

E há, por fim, o terceiro compromisso, que também é levado muito a sério, não fosse Armando Carvalho um assumido militante nas questões ambientais. A Foge Comigo compensa a pegada ambiental de imprimir cada um dos guias com a plantação de espécies autóctones, promovendo a biodiversidade. A “Floresta dos Destinos” já é uma realidade, vê-se das janelas da aldeia, e ocupa uma área de 3000 metros quadrados, conseguida por Armando Carvalho através do emparcelamento de pequenas propriedades que tinha dispersas, por herança, na região. O objectivo que se segue é abrir a visitas um percurso pedestre pelo meio desta floresta, que, para Armando, pode ser também o exemplo vivo do que é possível fazer em matéria de ordenamento florestal.
Um objecto que é simbólico em relação a tudo o que se passa no interior: o chocalho

Durante a conversa com Armando Carvalho não chegamos a ver o papa-figos. É normal, é conhecida a sua faceta de se esconder, e de serem raras as vezes em que revela a colorida penugem de que se veste. “Eu próprio só o vi duas vezes, durante todos estes anos”, revela o engenheiro florestal. Também não chegamos a ouvir o seu cantar, mas acreditamos que ele está ali, bem perto. 
No espírito da equipa da Foge Comigo, pelo menos, está de corpo inteiro e de canto cristalino. E por ali vai ficar, mesmo quando, em finais de Agosto, princípios de Setembro, o pássaro voltar a rumar a sul. Armando Carvalho e a pequena equipa que tem espalhada pelo país — o fotógrafo vive na Guarda, um dos gráficos vive em Castro Verde, outro vive em Tomar, mas não há fibra óptica que não reduza todas as distâncias — vão continuar empenhados a revelar os segredos de Portugal e a mostrar o que não se pode perder no interior do país, no duplo sentido. O que não se pode perder porque é obrigatório preservar, e o que não se pode perder porque é imperativo conhecer.

Resposta rápida
Qual foi o primeiro guia que escolheram fazer?
Começamos com o Guia das Aldeias de Xisto, que esgotou a primeira edição e fizemos a segunda. Depois fizemos o Guia das Aldeias Históricas, que também já está esgotado Depois fizemos o guia da Grande Rota dos Trilhos Pedestres, também para as aldeias históricas. Depois fizemos o guia da Nacional 2, a Agenda para 2017. E temos feito outros guias, locais, ou regionais. O próximo vai estrear uma nova chancela, a das cidades do interior, com a publicação do guia de Elvas, uma cidade fantástica que a mim muito me surpreendeu.

É fácil a uma editora sobreviver no interior do país?
Curiosamente estamos num concelho onde há três editoras a funcionar! Mas, enfim, enfrentamos os desafios do mercado livreiro e as dificuldades da distribuição. Tem tudo de ser feito com critério.

Quanto tempo demoram a produzir uma edição e qual é a tiragem?
Não há nenhum guia que nos leve menos do que nove meses. Na pesquisa do terreno, na redacção, edição, composição gráfica e depois produção, é impossível demorar menos tempo. As tiragens costumam ser três mil exemplares, sendo que os parceiros e agentes do projecto vendem metade e nós fazemos o resto a partir da nossa página da Internet.

LUÍSA PINTO (Texto) e ADRIANO MIRANDA (Fotos)
Fugas
Jornal Público

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