sábado, 9 de outubro de 2021

AS ELITES POLÍTICAS DE BRAGANÇA – GOVERNADORES CIVIS, PRESIDENTES DA CÂMARA E CHEFES PARTIDÁRIOS

Numa sociedade profundamente conservadora, rural, aferrada à tradição, católica, com uma elevadíssima taxa de analfabetismo, em que a economia, praticamente de subsistência, tinha por base o gado, os cereais e a batata, não é difícil compreender o papel determinante que as elites políticas tiveram em Bragança, como aliás, no Nordeste Trasmontano.

José Damasceno Campos, Governador Civil de Bragança entre 1964-1968

Elites, isto é, os “notáveis” na expressão de Francisco Manuel Alves (expressão essa, todavia, utilizada em sentido bem mais lato que o da política), os “influentes”, os “caciques”, ou seja, a minoria que detém o poder, o prestígio e a influência assentes “na autoridade do passado e do costume” (Max Weber) para eternizar sobre a sociedade local/regional formas de denominação tradicional que passam pelo clientelismo, pela proteção, pelo apoio económico, pela escolha dos políticos a nomear e eleger, e pela seleção arbitrária das opções em causa quanto às infraestruturas a construir e ao bem-estar das populações.
No Suplemento à Illustração Trasmontana, em 1908, sintetizam-se os fatores que contribuem para a eternização do caciquismo. Segundo ele, o trasmontano, “vítima do meio e da falta de educação apropriada, é todo indolência, hesitação e desconfiança”; “entregue ao deus-dará”, só confiava na intervenção divina, “ou na influência prestimosa do seu chefe político, a cuja casaca, como parasita pernicioso, se agarra desesperadamente, aflitivamente!”
O povo trasmontano “se quieta, numa situação degradante, miserável e humilhante, sem vontade, sem orientação, sem independência; criatura automática com movimentos derivados de cordelinhos, que o político maneja à sua vontade, sem que se lhe oponha resistência nobre e altiva, como de um povo livre e independente”.
“O chefe político deste povo é quem dele em absoluto dispõe, porque lhe dá, ou promete dar, os miseráveis recursos para não morrer de fome”.
Qual a origem e natureza da elite política de Bragança? Torna-se evidente que são recrutadas nas famílias mais abastadas do Município, cuja riqueza assenta exclusivamente na terra, nas propriedades agrícolas que detêm por herança ou compra, as dezenas de “quintas existentes nos arredores da Cidade, que abastecem, em boa parte, Bragança de produtos hortícolas”, mas que funcionam também como instrumento de prestígio e simultaneamente de trabalho, ocupando centenas de assalariados na agricultura e transporte dos bens alimentares, e reforçando, desse modo, as relações de dependência pessoal e clientelismo, não raras vezes camufladas nas relações de parentesco que a endogamia proporciona – “é meu familiar”, dirão os mais humildes a propósito do “Senhor da Casa Grande” da sua vila ou aldeia.
Tais elites são herdeiras da pequena nobreza local vinda do Antigo Regime. Só que, no século XIX, a partir de 1834, para além da sua tradicional influência socioeconómica, alargam a sua ação, graças à formação dos partidos e à realização das eleições próprias do regime liberal, ao mundo político. O “caciquismo”, como anota João da Silva, é a designação do século XIX e de boa parte do século XX que corresponde ao “feudalismo” denunciado pelo vintismo, ao state almost feudal que o conde de Carnarvon lucidamente detetou, por 1826-1827, em Trás-os-Montes.
Elites que herdam do passado o sistema de ideias e princípios, assim como a estrutura clientelar da nobreza local, conscientes da importância que têm no microcosmos social a que pertencem, da sua consciência de “classe”, que fundamenta, assim, o seu lugar “à parte” na sociedade bragançana.
A animosidade/conflitualidade existente entre Bragança e as populações do seu termo, que extravasa, por vezes, em episódios violentos ou anárquicos (saque de Bragança em 1826, amotinação de povos a propósito do contrabando, contestação de decisões camarárias ou episcopais, etc.), têm a sua justificação na superioridade autoritária da Cidade relativamente ao campo, mas também no divórcio existente entre os “ricos” que dominam e exploram e os ”pobres” que aceitam e obedecem… porque sempre fora assim!
E se, como vimos, a estrutura económica do Concelho de Bragança, como do Nordeste Trasmontano, se manteve inalterada até à década de 1960, como é que a sociedade poderia mudar? Neste contexto, os “notáveis”, os “caciques”, os influentes ou chefes locais/regionais vão manter o seu poder, estabelecendo redes de influência política; garantindo os votos necessários à eleição dos seus candidatos para deputados, pares ou senadores, por indicação, compra ou coação; sinalizando as infraestruturas necessárias ao Distrito; fundando jornais para denegrirem os seus adversários; mediando as relações entre o Estado e as populações aos mais diversos níveis; enfim, assumindo os combates políticos – não poucas vezes, reais, de violentos confrontos físicos –, contra os dirigentes de outros partidos que frequentemente configuram rivalidades pessoais ou entre famílias, de que Francisco Manuel Alves nos dá conta quanto ao Distrito de Bragança, numa continuação, em novos moldes, das lutas entre clãs e bandos existentes em Trás-os Montes nos finais do Antigo Regime, bem patente, por exemplo, entre os Silveiras (Vila Real e Alto Douro) e os Sepúlvedas (Bragança), ambos em busca de um protagonismo regional, chave importante para a compreensão das guerras civis que aí se desenrolaram a partir de 1823.
Adriano Moreira, natural do Distrito de Bragança, compreendeu bem esta realidade, ao referir que “as autoridades da Monarquia Absoluta tinham sido substituídas pelo caciquismo liberal, que depois remodelou a imagem para o regime republicano, mas sem mudar a hierarquia social, que se mantinha estável para além das alterações formais dos regimes políticos”. E menciona “o facto de ser nas interioridades que os vocacionados para o exercício da política vinham recolher as designações obtidas pelo método de fazer funcionar os mecanismos tradicionais de representação, os quais eram parentes longínquos dos mecanismos democráticos, aparecendo depois nas sedes do centralismo governativo, conforme as épocas, com a bandeira legitimista, com a bandeira liberal, com a bandeira da democracia representativa”.

Receção a José Damasceno Campos, Governador Civil de Bragança entre 1964-1968

É pois, no âmbito deste quadro sociológico que importa analisar o papel dos atores políticos em Bragança, ou seja, dos governadores civis, presidentes da Câmara e chefes partidários, mesmo sabendo que no primeiro e no último caso, a sua intervenção extravasa para além do Município bragançano, estendendo-se a todo o Distrito.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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