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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

O tio Manuel Gaiteiro

Assim lhe chamavam porque, supostamente, teria tocado gaita de foles na sua juventude. O mesmo diziam do tio Rijo mas não me lembro de alguma vez ter visto esse instrumento nas mãos de qualquer deles. Não creio que tal referência fosse infundada: a alcunha de um e a ligação ao outro deveriam ter “algum fundo de verdade”, como versejava António Aleixo. Hoje, parece-me intrigante mas, enquanto foi tempo de esclarecer o assunto com um deles ou com alguém da sua geração, não era coisa que ocupasse o espírito de uma criança como eu.
Havia, como noutras terras vizinhas, quem tocasse viola, guitarra ou bandolim, até rabeca ou concertina e realejo, para animar os bailaricos e as rusgas da mocidade mas uma gaita de foles só mais tarde é que vim a saber o que era e a ouvi-la tocar. Mal comparando, como dizia o Trocas, parece coisa de dinossauros que se afirma terem existido em tempos muito recuados mas que se extinguiram há milhões de anos e de incontáveis espécies que desapareceram devido a alterações climáticas, epidemias, ocupação humana desordenada dos territórios que formaram o seu habitat, introdução de novas culturas e técnicas agrícolas que determinaram mudança de hábitos. Sabemo-lo a posteriori, não por experiência vivida.
Quanto à gaita de foles, o facto de ter deixado de ser usada em determinado lugar não significa, obviamente, que tenha deixado de existir. Sabemos que é elemento importante nos hábitos culturais de certos povos e de certas comunidades regionais. Tratar-se-á, porventura, de um traço da cultura celta que se expandiu no norte do País, sobretudo no Minho, na região de Miranda do Douro com ramificações em terras contíguas e é ainda relevante nas Ilhas Britânicas (Gales, Irlanda e Escócia) e em certas zonas da antiga Gália, hoje França. É natural que, em nossas terras, tenha feito parte dos hábitos lúdicos dos habitantes e se tivesse apagado na geração que nos precedeu. No entanto, jamais ouvi referências quer do meu pai, quer de outras pessoas do seu tempo acerca de episódios em que o referido instrumento fosse mencionado. Restou a alcunha dum homem e vagas informações sobre outro.
Seria matéria de estudo para arqueólogos, antropólogos ou etnólogos mas, em Portugal e nos tempos que vivemos, só parece haver preocupação com algumas ciências e muito especialmente sobre as ditas Novas Tecnologias.
Sabemos pouco dos nossos antepassados, dos povos que habitaram este rincão em épocas mais recuadas. Ensinaram-nos que o território foi ocupado por inúmeros povos desde a pré-história mas fazem parte de um molho de que não parece haver condições para separar e organizar. Fala-se de Iberos e de Celtas, da miscigenação entre eles que deu lugar aos Celtiberos, dos Fenícios, Gregos e Cartagineses, dos Romanos, Vândalos, Suevos e Alanos, dos Visigodos, dos Lusitanos que não sabemos muito bem onde se localizavam, dos Árabes, Moçárabes e Cristãos. De quando em vez, aparecem referências a Lígures, designação que poderá englobar povos com nomes variados, Tartéssios ou “Homens do Mar” que estiveram na parte sul do espaço que hoje é nosso. Quanto a estudos pormenorizados e continuados, os resultados não existem ou são pouco divulgados.
Pois o tio Gaiteiro ou tio Papim, de que já falei na crónica anterior, tinha muitas limitações físicas que lhe cerceavam a possibilidade de trabalhar na terra. Deslocava-se apoiado em muletas, as cajatas, com que tentava afugentar os garotos que atiravam pedradas à amoreira para lhe roubarem os frutos, e passava o seu tempo a fazer ligas para chapéus de palha. Conheci-o já numa idade avançada mas dizia-se que, quando era mais novo, saía para pedir esmola em terras distantes do concelho de Macedo de Cavaleiros nomeadamente em Chacim, onde os Pousa de Vila Boa possuíam um casal e o acolhiam. Era acompanhado pela mulher, a tia Edite, que guiava a burra e lhe aturava os maus modos. O Grilo e a Lhalha, os dois filhos do casal, ficavam com familiares ou amigos, o rapaz acompanhava os filhos mais novos do senhor Alípio Nunes, casa onde havia sempre muita gente de fora, a Lhalha talvez se acolhesse na casa dos primos Gomes. Demoravam sempre alguns dias e, passado breve intervalo, partiam de novo.

Durante a permanência na aldeia, a tia Edite ajudava em casa do senhor Alípio Nunes, ali comia e regressava a casa para cuidar do marido e dos filhos. É provável que trouxesse comida também para os seus. Era ela também que cultivava as poucas terras da família, uns chãos lá para Penas d’Alvos e a pequena cortinha junto da casa. Por isso, eram obrigados a manter-se na aldeia a espaços regulares e, às vezes, por tempo mais dilatado.
O tio Gaiteiro não tinha grande estima pela mulher e muito pouca pelo filho, um rapaz moreno e simpático. A menina dos seus olhos era a Lhalha (Maria do Rosário) ou Quinha, como preferia chamar-lhe, miúda bonita, mais parecida com a mãe, até na cor. Não consta que alguma vez tivessem levado os filhos nos peditórios mas o tio Manuel Gaiteiro chegou a colocar a hipótese de levar só a filha. Ficou na memória das pessoas um suposto diálogo entre os dois, acompanhado pelos gestos característicos do nosso homem:
- O preto não vai, a galarona também não. E tu, Quinha, queres ir?
E, face à recusa ou manifestação de desagrado da moça, concluía:
- Se tu não vais, também eu não vou.
O preto era o designativo desdenhoso dado ao filho pela cor acentuadamente escura que lhe valeu a alcunha de Grilo e o acompanhou pela vida fora. Para enfatizar o pouco apreço que tinha pela mulher dava-lhe o nome de galarona, sem que os estranhos descortinassem qualquer relação do nome com a pessoa.
Por: Nuno Afonso
O tio Manuel Gaiteiro tinha uma irmã que emigrou para o Rio de Janeiro muito nova, ali casou com um joalheiro rico e, quando este morreu, herdou uma fortuna considerável. Tendo perdido o único filho, julgar-se-ia que dedicaria aos dois sobrinhos alguma atenção e os viesse a constituir herdeiros dos seus bens. Concedeu-lhes a “carta de chamada” e escasso apoio até encontrarem ocupação e possibilidade de sobrevivência. Ao Grilo ofereceu-lhe pequena ajuda financeira para adquirir um terreno no subúrbio mais distante da Zona Norte do Rio, onde construiu uma casa modesta, adaptada a café e bar, que mal dava para a sua manutenção. Regressou à aldeia, comprou um altifalante, discos da moda e tornou-se figura popular nas redondezas cujas festas animava. Tem 96 anos e vive num Lar em Bragança. Quanto à Lhalha, empregou-se, casou e nunca mais veio à terra.

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