Escrevo esta crónica domingueira, chuvosa e carrancuda, como se assistisse a uma tarde de funeral. É dia de eleições autárquicas e serve-me de palco uma cidade que vive, como sempre viveu, adensada numa neblina de mitologia com nove séculos de história. Em vez de divagar sobre os defeitos de uma democracia titubeante, envergonhada e enganadora, agrada-me muito mais falar de poesia, modalidade literária que é uma arma pacifica e tolerante, visto que os seus cultores, homens e mulheres, que traduzem em linguagem artística mágoas, irritações e preconceitos, sentimentos que a política não compreende.
A poesia dá voz à tranquilidade, à solidariedade, ao bom senso. A política usa truques baixos, vinganças grotescas, raivas incontidas. Não se reconhecem em terra batida. A poesia bate-se e defronta-se em campo aberto. A política exibe-se em palcos afidalgados, opulentos, inacessíveis aos amigos de arte de versejar. São inconciliáveis. Os políticos buscam fama, glória e proveito em nome da demagogia que todos buscam, a qualquer preço. Mas uma vez conquistada, apenas serve a clientela que se enganou ou foi enganada no voto.
A poesia, ao contrário da política, não se vangloria, não se envaidece, não se auto-proclama, nem promete o céu a quem nem a terra que pisa, merece. A poesia é humilde, não usa megafones para se exibir, não organiza caravanas com batuques ensurdecedores, nem chocalhos ou máscaras de santo, sendo diabo. A poesia é uma ciência enobrecida pela dignidade. A política é a arte de enganar os incautos, servindo os enganadores e ludibriando quem se deixa enredar.
As últimas semanas de Setembro deram para estudar as dissidências e as parecenças. Trabalho de campo? Sirva o exemplo da penúltima semana: o XIII Encontro Nacional de Poetas, na vila do Gerês. Aconteceu dia 21, a coincidir com a mudança de estação do calendário. O verão deu lugar ao outono, como a paz deu lugar à turbulência, o silêncio contrastou com a balbúrdia e a gabarolice substituiu a ponderação.
Durante muitos anos a cultura foi filha renegada das artes. O poder nacional riscou a poesia do calendário das artes universais. E o poder local, salvo raríssimas excepções, onde o político venceu o poeta, não houve sensibilidade, nem engenho para colocar as duas realidades na hierarquia correta.
No ano 2000 deu-se início a um Encontro Nacional de Poetas. Nenhum palco mais indicado: Guimarães que sempre viveu à sombra do simbolismo do «Berço» da Nacionalidade e de D. Afonso Henriques. O património histórico que adveio desse estatuto, para mais, numa altura em que decorriam 900 anos do nascimento do nosso Rei Fundador, caprichou em distanciar-se da verdade histórica, limitando-se a viver num vazio de ideias, de realidades e de projectos que provieram dos fundos comunitários, de um período áureo que a Euroarte, as Quartas-Feirais Culturais, o Saber é giro, o Movimento Jovem conquistaram, por mérito próprio. Nessa altura a primeira capital histórica de Portugal, preocupou-se em reconstruir o Centro Histórico que foi a alavanca para mais tarde ser reconhecido como «Património Cultural da Humanidade» e «Capital Europeia da Cultura». Essas distinções caíram do céu, não por mérito dos políticos de ocasião, mas de todos aqueles que os antecederam.
Em 1990, ao contrário do que o poder político faz crer, afora esses epítetos, iniciou-se uma série de infortúnios urbanos e sócio-culturais que despromoveram o maior concelho a norte do Rio Douro, de 1º para 3º lugar, quer em população, quer em freguesias, quer em riqueza industrial e comercial.
Endividaram a autarquia a um nível de largas dezenas de milhões de euros que levarão anos a liquidar. Com os 114 milhões da Capital Europeia da Cultura, o poder político adquiriu e malbaratou o maior quinhão em aquisições e restauros, uns para silenciar vozes incómodas, outros para satisfazer clientelas, mais alguns para colocar placas inaugurais que perpetuam verdadeiros sorvedouros de dinheiros que nenhuma averiguação judicial descortinará.
O Encontro Nacional de Poetas, por insensibilidade cultural mudou o palco de Guimarães para a Vila do Gerês. Aí realizou onze edições, sempre com mais de uma centena de poetas de todo o país, homens e mulheres, de idades e de tipos de formação diferenciados. Dia 21 de Setembro que ora finda acolheu vozes de todas as tendências ideológicas, imaginativas e criativas. Nestes 13 anos distinguiu uma boa centena de poetas, que de outra maneira nunca teriam saído do anonimato.
A Câmara de Terras de Bouro credenciou todos os participantes com diplomas, ora de prémio, ora de presença. A Calidum, associação que nasceu vocacionada para apoiar edições e autores, tem vindo a cumprir, em plenitude, essa tarefa estatutária. Já se editaram antologias com essas gerações de poetas, uns mais adestrados do que outros. Mas todos com a pureza de intenções que os leva a deixar tudo. Em cada terceiro sábado de Setembro, em busca de convívios, de diálogos, de respeito pela sagrada arte de fazer versos.
Barroso da Fonte
in:jornal.netbila.net
Número total de visualizações do Blogue
Pesquisar neste blogue
Aderir a este Blogue
Sobre o Blogue
SOBRE O BLOGUE:
Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço.
A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)
(Henrique Martins)
COLABORADORES LITERÁRIOS
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário