DUMA PONTA À OUTRA DO DOURO, AO SOM DUM BOMBO, DUMA CONCERTINA (...)
CABRAL, António
Entre o azul e a circunstância
Duma ponta à outra do Douro, ao som dum bombo, duma concertina, a vida em primeiro lugar é terra, depois olhos, suor e música, terra é a cultura, de Mazouco a Barqueiros, nas planuras crestadas de Miranda, longa dança nos olhos de Penélope tecendo um futuro de limoeiros, o Cachão da Valeira e seus fantasmas, mil e uma noites reunidas à volta do mesmo fragão que esfrangalhou num ápice o barco rabelo, ah tempos, de pombos bravos e coxas de raparigas celtas no fresco vinha d alhos da Ferreirinha, cultura carcomida dos mesmos nevoeiros que se amaciam em franjas de luz na chula rabela, o ouro visto por dentro do outro lado, desfeito em gritarias insalubres no ferro de Moncorvo, reagrupado nas três sílabas de Vila Flor, cultura é isso, as amendoeiras florindo, sua velha resina incendiando-se num jogo popular, este é o jogo da reca, senhor ministro, Vila Real é assim, rezava o Freud, ao menos a libido, só as águias que rilham aos bocadinhos o céu das Fisgas de Ermelo é que rivalizam com os plátanos de Mateus, aqui sua excelência o secretário e sua excedência o não secretário sentam-se à fagácea tábua e decretam: a cultura somos nós, os outros que vão pentear as teias de aranha de Barroso ou engalfinhar-se numa chega pagã com os testículos do boi do povo, mas o melhor de tudo é crer em Cristo como dizia o poeta e, embrulhado num lençol, ir pela via crucis daquela procissão que soe fazer-se na minha aldeia, a inteligente inocência ou não dos animais falantes que mandam a política à merda e passam a vida a colar os ossos ao mesmo bolor, esticando-se aos domingos no adro, que este carreirinho vai ter à ribeira, que o amor dos homens é uma cegueira, mas que homens, pergunta-se, os pintassilgos continuarão a sua festa de macieiras e a donzela, por acaso ainda virgem, de raiva sobretudo, retomará nas endoenças o seu papel amarrotado de madalena arrependida, em Vilar de Perdizes é isto, o povo é que faz a cultura, os outros desfrutam-na à televisão, derretendo-a como um caramelo, estou-me nas tintas para o significado, viva a significância de Lord Russell, dizem, o espectáculo, a rede e a espessura dos signos, educai o povo e vereis em quem ele vota nas próximas eleições, por tudo isto, Lídia, quando (ou) vires um gentleman faz-lhe uma figa ou, se o entenderes, um signo-saimão na encruzilhada em que venha a passar, preferível como um ouriço é arranhar as tripas do Marão, soltar lá de cima um viva cor de fogo e vir passar depois um serão valsado com a Tuna de Meneses, lembras-te das maias e daquele grupo de meninos em Covas de Barroso, dançam tão bem, dizias, e cantavas com eles a história da pastorinha que voou com o vento e subiu aos palácios da manhã, cultura, enfeite de música nas rugas da montanha, ah este povo que se embebeda nas feiras, joga o pau sem boas maneiras e cultiva gerânios contra a noite no Vale de Aguiar, onde nasce um rio que desagua na Régua, fica tudo em família como os milhares e milhares de serranos que se juntam em Mirandela na Senhora do Amparo ou em Lamego na Senhora dos Remédios, à luz dos foguetes que iluminam os metais das bandas e riscam infinitas coisas nos olhos, também nos teares de Agarez, fartura apenas de linhos, nos barros de Vilar de Nantes e Bisalhães, contornos dum tempo velho, a cultura, meus senhores, é esta vida onde o chão continua, terra que os dias vão moldando, afeiçoando a desejos e a desígnios, a cultura não se estuda, vive-se, conhece-se ardendo com ela, vista do lado de fora terá os encantos de Nausícaa, mas não tem de Nausícaa o espaço entre a alma e o púbis, por isso te dirá um gaiteiro de Ansiães: não me escrevas, escreve-te, anda com os meus bois para as lombas de Montesinho, e as cabras ágeis do Larouco, geografia docemente feroz, só aí as flautas entoam o sol poente, que a nossa poesia tenha as marcas da terra que são no fundo as marcas de todos nós, se nos reconhecermos, eu venho dum lugar onde os lobos ainda frequentam as ruas e as câmaras municipais, capazes de devorar as mais puras intenções, em seu proveito e do diabo do partido a que pertencem, os lobos são iguais em toda a parte, culpam-te sem pudor como ao cordeiro da fábula, defrontá-los é uma forma de cultura, a tua, se a vives, pois só há cultura literária onde primeiro houver cultura, isto é, consciência de si, a unidade dos contrários e a bem calcinante opção, é Stendhal contra Kant, a beleza como promessa de felicidade, ó graves escritores do mundo-cão, arrancai das palavras a liberdade como quem arranca dum ventre uma vida, com o saber possível, certo, que toda a palavra é mulher, eu venho dum lugar onde se erguem tapumes contra o povo, quando se abre um buraco é como quem solta um cão, só fiel servidor de el-rei d. simão que vai à caça, de louros e de votos, porca miséria, Lídia, minha filha, perdoa-me este excesso, carne dum romantismo que talvez infelizmente não pode acabar, orquídeas não são as palavras que deposito nas tuas mãos, é um sabor acre de terra, a nossa terra, cujos limites o sejam do que diga.
CABRAL, António - Entre o azul e a circunstância
in:diario.netbila.net
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