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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

BELISÁRIO & MARVEL

Se fosse realizado um inquérito tendo como alvo a Comunidade Científica e Cultural de Bragança, perguntando-lhe quem foram Belisário e Marvel, seguramente, as respostas seriam: o primeiro ter sido famoso general de Bizâncio, o segundo, cómica figura de uma banda desenhada americana.

Se o mesmo inquérito fosse levado a cabo nos Lares de idosos existentes em Bragança, as respostas seriam completamente diferentes, reinadias até, impregnadas de cordata malícia. Adiante explicarei a razão.

Porque integrado numa equipa multidisciplinar estou a trabalhar num projecto visando a mundialização de um concelho, coube-me a tarefa de potenciar os activos culturais e sociais existentes de modo a conseguir-se o objectivo pretendido.

Nesse propósito, todos os envolvidos no projecto dedicamos atenção à população envelhecida, mesmo a doente, porque é detentora de perenes e formidáveis saberes, especialmente de natureza empírica, os quais não podem ser esquecidos dada a importância da nossa herança cultural, segundo porque as pessoas idosas são muito importantes no acrescentar valor de experiência consolidada aos especialistas académicos e científicos.

E, Belisário e Marvel (pronunciávamos Marbel) surgiram-me na memória (o papel da memória é crucial no âmbito cultural) na justa medida de terem sido figurões da paisagem social bragançana de recorte jocoso, mas a par de outros significantes do modelo e moco como nos idos de cinquenta e sessenta do século transacto os marginalizados às vezes de motu próprio eram tratados. No referido projecto pretende-se recuperar todos quantos vivem situações de sofrimento, miséria, marginalização e doença, cujos custos são enormes debaixo de todos os prismas.

Eu conheci muito mal os ditos figurões, no entanto, o primeiro, revejo-o de grenha suja protegida por boina esburacada, tez arroxeada, nariz em forma de torneira de pipo, voz borras de vinho, curvado, a viver de biscates e da carinhosa caridade sem alarde. Tudo quanto recebia gastava-o alegremente em aguardente e vinho, não apreciava ser censurado, às vezes deixa a ira à solta e regougava palavras frementes contra esta, contra aquele. Ele sabia coisas. Se instado a explicar o dito sussurrava melopeias e desandava.

O Marvel (Marbel) executava tarefas de carrejão a meias com a mula do Sr. Augusto (Má-Cara). A mula puxava a carroça, ele colocava as pernas de alicate num varal e toca a levar e a trazer pacotes da estação de caminho-de-ferro distribuindo-os a seguir pelos clientes regulares e irregulares. O Marvel também usava boia (muito comum na altura mesmo no círculo dos donos de posses), o rosto permanentemente enrugado conferia-lhe peculiar semblante, se o picavam da sua boca saíam rajadas de palavras em consonância, vernáculas de vermelho vivo, muito mais moderadas quando o espevitador do azedume era o Senhor Queiroz, afamado especialista no modo de moer o ânimo mesmo dos mansos e cordatos. Nem as repreensões da Dona Mariazinha moderavam a verve do saudoso comerciante, fervoroso portista, dono de invulgar sentido de humor em todas as circunstâncias.

O Senhor Belisário e o Senhor Marvel nunca tiveram direito a senhoria, era o que fazia falta, diria o menos graduado dos funcionários públicos, não eram lúmpen no sentido marxista do termo, não passavam de membros de uma sociedade onde o preconizado nas obras de misericórdia, só raros cumpriam o preceituado.

No fundo, no fundo, persistia a hipocrisia envernizada, de fora da embirração lustrosa ficavam as Senhoras esmoleres, os Senhores esmoleres (o Sr. Queiroz gostava de azucrinar, também gostava de ajudar) suavizavam o quotidiano de desprovidos de meios, de família consistente, de tolheitos e doentes. Lembro a mulher com o menino ao peito a entrar ali e acolá, salmodiava palavras, levantava o lenço postado sobre a cabeça e exibia pústula disforme. Recolhia a esmola, alisava o lenço e prosseguia a jornada.

As pessoas são o nosso melhor património responderam dezenas de homens e mulheres nos questionários de recolha de informação na preparação do aludido trabalho, tal resposta constituiu forte incentivo a procurarmos requalificar e recuperar os menos preparados, os considerados pesos mortos, fonte de problemas e pesada despesa.

Não tenho dados precisos sobre o Sr. Belisário e o Sr. Marvel, pretendo prestar-lhe melhor atenção. Espero o contributo de quem o quiser dar.



Armando Fernandes
in:jornalnordeste.com

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