As principais cadeias de distribuição querem ter fruta e legumes fora de época para reduzir as importações. Numa altura em que comer da estação é cada vez mais uma tendência, a evolução tecnológica e o estudo das sementes permitem fazer precisamente o oposto.
Morangos em Dezembro, tomate o ano inteiro e laranja do Algarve até Outubro. Na secção de frescos dos hipers e supermercados há cada vez mais fruta e legumes a prolongar a estadia nas prateleiras, independentemente das estações do ano. Há quem fique chocado por ver pêssegos no Outono, mas o prolongamento das campanhas agrícolas está a ser cada vez mais pedido aos fornecedores das principais cadeias de distribuição, como o Pingo Doce e o Continente.
O Clube do Produtores do Continente (do grupo Sonae, dono do PÚBLICO) tem desde 2010 um projecto para incentivar os agricultores a abastecer as lojas durante um maior período de tempo, mesmo fora da janela temporal que, tradicionalmente, se adapta aos seus produtos. Ondina Afonso, presidente do Clube de Produtores, explica que a intenção é “ter consistência na qualidade de oferta ao longo do ano, reforçar a produção nacional e recorrer menos às importações”. Para a laranja, a batata e a cenoura foram organizadas equipas técnicas que, juntamente com os produtores, estudam formas de prolongar as campanhas: incluem desde a mudança da variedade das sementes, à produção em zonas distintas para aproveitar as melhores condições climatéricas.
Também o Pingo Doce, do grupo Jerónimo Martins, confirma que tem trabalhado com os agricultores para implementar “técnicas agrícolas que permitem produzir determinadas variedades fora da sua campanha”. A intenção é “disponibilizar ao consumidor fruta e legumes com qualidade, a preços competitivos e de origem nacional”, mantendo as características organolépticas dos produtos, ou seja, cor, brilho, odor, sabor e textura, diz fonte oficial do Pingo Doce.
Numa altura em que comprar produtos da época é cada vez mais uma tendência, a evolução tecnológica e o estudo das sementes permitem fazer precisamente o oposto. Domingos Almeida, professor no Instituto Superior de Agronomia e coordenador da unidade de investigação especializada nas cadeias de valor das frutas e dos legumes, Freshness Lab, diz que os movimentos “locavores” (comer comida produzida localmente) e os produtos de época “têm o seu espaço, mas realisticamente só servem habitantes de zonas privilegiadas que permitem produzir verduras essenciais a uma boa nutrição durante o Inverno”. Recuando no tempo, recorda que, antes dos circuitos comerciais modernos, os únicos produtos frescos que os habitantes de Bragança e Berlim comiam durante o Inverno eram couves, batata e nabo, “alguma maçã durante o Outono e pouco mais”. Hoje a abundância e variedade chega a quem pode pagar por ela.
O investigador diz que há produtos que o consumidor quer comer o ano todo (como a banana, a maçã, a pera e os citrinos) e outros, como a cereja ou a melancia, que só procura na época específica. O morango “está em transição entre o tradicional consumo sazonal e um consumo mais regular ao longo de todo o ano, com um crescente período de comercialização”, continua. Em breve chegará à mesa no Natal.
Contornar a natureza
Para conseguir prolongar o período de produção de um alimento pode-se recorrer a várias técnicas, explica Domingos Almeida: através de tecnologia de armazenamento de transporte, como já se faz com a pêra, a maçã e a batata, recurso a estufas ou escolha de variedades agrícolas mais resistentes, uma das técnicas mais usadas.
“A genética das fruteiras e das plantas hortícolas tem permitido ajustar o ciclo da cultura a diferentes épocas de produção. Por exemplo, podemos ter produção de maçã de diferentes variedades com colheitas entre Julho e Novembro. Mesmo no pêssego, que é uma fruta sazonal, só podemos ter disponibilidade entre Maio e Setembro ou Outubro com recurso a um portefólio de variedades, cada uma com um período de produção de duas ou três semanas”, detalha. O investigador acrescenta que o desenvolvimento de variedades existe há mais de 500 anos mas é, agora, “dirigido e acelerado”. “Sem esta adaptação não teríamos tomate nem batata em Portugal, nem os morangos que conhecemos”, continua.
É através da variedade que a Frusoal está a tentar responder ao repto lançado pelo Continente para ter à venda durante o maior tempo possível a típica laranja algarvia. Neste caso, a organização de produtores não está a fazer nada de novo. Pelo contrário, está a regressar às origens depois de anos a produzir o que a grande distribuição e o consumidor queriam: laranja redonda, perfeita e brilhante.
“A laranja do Algarve teve sempre tradição na sua variedade D. João que sempre aguentou com sumo até ao final do Verão. Mas esta tendência foi desaparecendo porque havia uma exigência da grande distribuição de ter laranjas limpas, bonitas com cor natural”, conta Pedro Madeira, director da Frusoal. A variedade D. João “perde aspecto” com o tempo e é mais pequena do que a sua “concorrente” Valencia Late, “mais espanholada” mas originária dos Açores, que passou a dominar a oferta nas prateleiras e levou ao abandono das variedade tradicionais algarvias.
Agora, a D. João está de volta porque consegue marcar presença nas prateleiras durante mais tempo. Pedro Madeira adianta que enquanto a Valencia Late está disponível entre finais de Abril e Julho (perdendo sumo a partir daí), a D. João abrange os meses de Maio a Setembro e mesmo Outubro com sumo e sabor, embora menos bonita. “O consumidor vai-se habituando. O ano passado começamos a vender com uma banda [etiqueta] específica e em sacos. Como está no saco, não se nota tantos os defeitos. Em casa, quando prova, gosta”, continua.
Para responder à nova exigência, a Frusoal está a aumentar a plantação da variedade tradicional em mais 100 hectares, de um total de 500 hectares que já gere. A intenção é aumentar o peso da D. João dos actuais 20% para 35% a 40%, num investimento estimado de dez mil hectares por ano, sem contar com o custo da terra (compra ou arrendamento).
Quanto ao preço que consegue por cada quilo, Pedro Madeira diz que este ano conseguiu valorizar “um pouco mais”, mas alerta para o interesse espanhol na laranja portuguesa. “Os espanhóis compram a laranja, por vezes 40% mais cara do que os portugueses e, por isso, há muita laranja que está a ir para Espanha. Acabamos por ter, durante menos tempo, laranja à disposição dos portugueses porque a grande distribuição não consegue acompanhar” o preço, conclui.
O tomate já é um caso sério de disponibilidade 12 meses por ano, tudo graças a estufas. Telmo Rodrigues, da Hortipor, começou a produzir em dois locais diferentes para poder assegurar produção contínua, algo que conseguiu alcançar há três anos. Cerca de 20% da área de que dispõe está em Torres Vedras, o restante na Costa Vicentina, Alentejo.
“O tomate consome-se o ano inteiro e é um dos produtos agrícolas mais consumidos. Como é produzido em estufa, está protegido do frio ou da chuva. As próprias variedades e a investigação caminham muito para uma maior resistência e adaptação a várias épocas do ano. Para quem produz, conseguir estar no mercado o ano inteiro permite uma melhor gestão de recursos e de mão-de-obra”, conta Telmo Rodrigues, que garante não usar variedade modificadas geneticamente.
O facto de ter estufas no Alentejo permite à Hortipor aceder a mais “55% de luz do que em Torres Vedras”, o factor que mais contribuiu para a produção constante. Sobre as variedades, adianta que por ano são testadas entre 60 a 70 novas sementes e quando há vantagens comprovadas são usadas. “Trocamos quando são mais resistentes, dão um fruto com mais cor e sabor”, continua.
Questionado sobre o uso de químicos necessários para manter a estufa longe de pragas, Telmo Rodrigues revela que trabalha com controlo biológico, ou seja, usa insectos para combater outros insectos. “Há muitas pessoas a achar que a produção em estufa leva muitos químicos, mas ao ar livre leva muito mais. Dentro da estufa, a planta não leva vento, chuva, frio, está mais protegida e sujeita a menos doenças. Por isso não usamos tantos químicos”, argumenta.
Com os investimentos que tem feito e a aposta em tomate de especialidade (como vários tipos de cherry e de várias cores), a Hortipor já obtém 60% das vendas fora de Portugal. E tem planos para começar a produzir fora do país, aumentando a área de produção que já contabiliza 200 mil hectares.
O Pingo Doce também tem vindo a incentivar a produção de alimentos que tipicamente são produzidos fora de Portugal. Fonte oficial da cadeia de supermercados dá como exemplo o melão da variedade pele de sapo, desenvolvido em parceria com o Instituto Superior de Agronomia e lançado em 2012, e de alguns frutos tropicais “que se adaptam melhor às condições de clima e de solo em Portugal” como o maracujá roxo, a physalis e o figo da Índia.
Quem fica a ganhar?
Há, contudo, quem tenha dúvidas sobre as vantagens em alterar o ciclo natural da produção. É num tom crítico que Margarida Silva, investigadora da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto, fala sobre o prolongamento das campanhas e da manipulação de sementes. “Tecnicamente é cada vez mais possível. Mas nem tudo o que podemos fazer devemos fazer. Chama-se a isso ética”, atira.
Margarida Silva destaca que esta exigência coloca problemas ambientais, de saúde e também a nível social. Alargando o tema a produtos como a baunilha ou o cacau, que só encontramos em regiões do globo propícias à sua produção, a bióloga e autora do livro “Alimentos transgénicos: um guia para consumidores cautelosos”, fala de um “ambiente de forçagem” que prejudica os países mais pobres. “Conseguimos arranjar substituições em estufas e em laboratórios. Conseguimos deserdar os verdadeiros autores dessas espécies, que as foram apurando e seleccionando e tornamo-nos autónomos desses países. Hoje já é possível sintetizar cacau, chá, baunilha, flores”, exemplifica, acrescentando que só não se aposta nesta produção devido à mão-de-obra barata dos países produtores.
No que toca às variedades típicas de Portugal, Margarida Silva defende que “quando se torce o braço à natureza para fazer algo que ela não iria fazer, paga-se um preço alto a nível energético”. As estufas são “ambientes propícios à entrada de pragas e ficamos condicionados ao uso de químicos sintéticos” que, no final, “têm um impacto no solo extremamente desastroso”. “Os adubos de síntese queimam a terra. De facto, os produtos ficam gigantesco graças ao fósforo e potássio mas estamos a potenciar o nascimento de micróbios. A terra fica incapaz”, argumenta, lembrando que “ninguém sabe qual é o impacto da mistura de químicos a que estamos expostos através da alimentação”.
Ondina Afonso, directora do Clube de Produtores do Continente, garante que os fornecedores dos hipermercados têm um conjunto de referências a cumprir e regras no que toca o uso de pesticidas ou degradação do solo. “Há um acompanhamento apertado” e uma certificação específica. No caso da batata e da cenoura, que também fazem parte do projecto de prolongamento da campanha, em causa está apenas o aumento da área de produção ou a diversificação geográfica. “No Norte, as colheitas são mais tardias do que no Sul. No caso da batata trabalhamos com a natureza e procurámos fornecedores no Norte para nos abastecermos”, exemplifica. Com esta opção, é possível conseguir ter batata nacional durante nove meses (mais dois a três meses do que até agora), “o que tem impacto no volume de batata importada”.
Para o Pingo Doce, há vantagens para todos. Com maior ciclo de produção os agricultores conseguem aumentar o volume de negócio. “Por outro lado, o facto de passarmos a poder recorrer a fornecedores nacionais para obter determinados produtos que anteriormente tinham de ser comprados a fornecedores estrangeiros reflecte-se também positivamente na diminuição do impacte ambiental gerado pelo transporte de mercadoria”, argumenta fonte oficial.
Margarida Silva não é tão optimista. “Não há nada de errado com as importações. Já estamos a importar energia, medicamentos, entre outros. O ideal é os alimentos serem produzidos localmente, mas o mais correcto é comer o que é da estação. Não é benéfico comer tomate todo o dia do ano”. A monocultura “é um passo gigante para a malnutrição”, continua. “Temos de aprender a variar. Os morangos não se devem comprar em Dezembro e não vale a pena em pensar que vamos comer maçãs em Abril em Portugal. Temos de aprender o que é a agricultura.”
Ana Rute Silva
Jornal Público
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