Os mil tons dos castanheiros, as agulhas dos pinheiros, um manto de folhas e Rafael Dias de olhos postos no chão. “A nossa zona é boa em cogumelos.” Invernos muito frios, verões muito quentes, vento manso, terra fértil. As folhas formam uma capa. “Não deixam passar tanto frio.”
Nunca se imaginou a deixar Alfândega da Fé, no Nordeste Transmontano, como tantos familiares, amigos, vizinhos. “Amo a minha terra e não consigo, se calhar.” Agora, que se dedica à recolha, tratamento e venda de cogumelos frescos, desidratados, em conserva ou farinha, sai mas para “estadias curtas”, não tarda a estar “ao pé da rapariga” com quem vive e trabalha.
Mais de dez mil pessoas moravam ali em 1950. Nos dias que correm, pelas previsões do Instituto Nacional de Estatística, nem metade. Mudam-se das aldeias para a vila, do município para a capital de distrito, para o litoral ou para o estrangeiro, que antes cabia todo em França e agora é qualquer parte. É o que está a acontecer há mais de meio século em todas as terras de Trás-os-Montes.
Rafael Dias, 39 anos, era sonoplasta da câmara. Arranjando tempo, ia aos cogumelos. “Os espanhóis vinham aí. Compravam a 5 euros e vendiam a 28 ou 30.” Pôs-se a pensar. “É um recurso.” Decidiu aproveitá-lo. Com o prémio EDP Empreendedor Sustentável, comprou “a banca, a arca frigorífica, a arca industrial”. “Eles exigem tudo em inox. Tem de ser tudo lavável. Tem de haver circulação de ar.”
Ocupa duas lojas do mercado municipal. Também recolhe, trata e vende espargos e ervas aromáticas. “Temos de puxar pela cabeça, de arranjar maneira de dar valor à nossa terra”, diz, cesta repleta de boletos, cantarelos, sanchas e frades. “Toda a gente a viver da azeitona, da amêndoa ou da castanha é impossível. O município tem grande carga de pessoal.”
O executivo municipal conhece a mais popular prescrição para salvar o mundo rural: valorizar os produtos endógenos, favorecer a transformação, potenciar o carácter exportador. Para parar o êxodo, incita nichos turísticos, agiliza o licenciamento de cozinhas tradicionais de fumeiro, unidades artesanais de queijo ou de doces, compotas e geleias, tenta relançar a produção de cereja, estimular a inovação agro-alimentar.
Diz a presidente da câmara, Berta Nunes, que, aproveitando velhas práticas produtivas, que “não estavam licenciadas, não tinham uma marca, não podiam entrar nos circuitos de comércio, formaram-se perto de duas dezenas de empresas com um ou dois trabalhadores”, incluindo a Alfaselvaticus de Rafael Dias. Sujeitando-se a um controlo de qualidade, podem integrar a marca chapéu do concelho, “Terras de Alfândega”, uma tentativa de criar escala, notoriedade.
Alfândega da Fé assume uma atitude de resistência, de recusa do esvaziamento como inevitabilidade. E isso leva a autarquia a procurar novas frentes. Foi a primeira a lançar um concurso através da Bolsa Nacional de Terras (ver texto). E a primeira a aderir ao Programa Novos Povoadores (um programa privado, lançado há anos, que apoia famílias urbanas a mudarem-se e a instalarem-se em territórios rurais).
Os novos-rurais, enfatiza Berta Nunes, “não viriam atrás dos poucos empregos que há, trabalhariam à distância ou criariam o próprio emprego”. De preferência, negócios que servissem os produtos locais, que permitissem incorporar valor. Vieram duas famílias. Nenhuma permanece.
Um casal arriscou mudar-se de Braga para Alfândega e voltou atrás ao fim de oito meses. Ele podia trabalhar em qualquer lado, ela estava desempregada e chegou a abrir uma loja online, um agregador de produtos regionais, mas engravidou. “Não se adaptou”, justifica Berta Nunes. “Falava-lhe uma rede”, que lhe pudesse servir de suporte naquela fase da vida.
A outra família ficou mais tempo. António Mauritti é um chef com queda para recriar produtos locais. Transformou a “Merenda de Alfândega”, uma pasta de azeite e amêndoa que fazia parte do farnel dos trabalhadores agrícolas, numa conserva, concebeu um requeijão de amêndoa, um salpicão com cereja e outros produtos que continuam a ser fabricados por microempresários locais.
“Gostamos muito de Alfândega da Fé”, assegura Mauritti. Mas nem tudo correu bem. “A minha mulher nunca conseguiu trabalho. Não se sentia valorizada. É do ensino da história, da filosofia. Tem experiência na área dos eventos culturais.” Houve uma oportunidade de abrir um restaurante no litoral. E lá foram.
Ninguém ouvirá Berta Nunes dizer que o programa Novos Povoadores falhou ali. “Divulgou o território, as suas potencialidades.” E as duas famílias continuam a promover a terra. Uma mantém o agregador de produtos regionais e a outra usa o restaurante como montra do interior, sobretudo de Alfândega.
Nalguns dias, quem se senta à mesa do KUK, em Peniche, pode pedir “casulas”, o prato tradicional de Alfândega, feijão seco ainda na casca com carnes e legumes cozidos. Noutros, borrego com couve e castanhas. Ainda há pouco, houve uma degustação de cogumelos recolhidos por Rafael Dias. “São valiosos”, afiança Mauritti. “Estão bastante distantes de fontes de poluição.”
Sub 30 anos com atitude mais experimental
Rafael é capaz de discorrer horas sobre espécies micológicas. “Tenho paixão.” Quando ia à caça com o pai, não andava atrás de coelho, perdiz, tordo, lebre ou javali, como os outros. “As minhas peças de caça eram os cogumelos”, gaba-se. “O campo ensina bastante. E eu é todos os dias – domingos, feriados, só se não poder ou estiver fora.”
Que dizer? “Para algumas pessoas, viver no campo é positivo, para outras é insuportável”, observa Berta Nunes. “Para fazer a integração numa comunidade como a nossa, é preciso ter certas características. É preciso gostar de sossego, de natureza, não de cidade, stress, confusão, centros comerciais.”
A idade importa, assegura Frederico Lucas, coordenador do Programa Novos Povoadores. Os sub 30 anos têm uma atitude mais experimental. Num instante, mudam de direcção. Os casos bem-sucedidos de novos-rurais remetem para gente mais velha. “Um membro do casal teve um esgotamento ou um dos filhos foi vítima de um crime grave”, qualquer coisa os empurrou da cidade para o campo.
A novidade é Virgínia Ferreira, 34 anos, e João Lopes, 35, outro prémio EDP Empreendedor Sustentável. Mudaram-se há dois anos do Porto. Ele estava desempregado. Ela não se sentia realizada no marketing. Recuperaram uma quinta, fizeram uma piscina biológica, transformaram silos em alojamento e abriram uma unidade turística, a Silo Housing, que combinam com produção de azeitona.
Berta Nunes |
No Verão, azáfama. No Inverno, quietude. “Ainda não posso dizer que tenho amigas”, admite Virgínia. “Não tenho vizinhos.” Todos os dias, depois de deixar a filha, Carlota, no infantário, senta-se numa pastelaria da vila a beber uma meia-de-leite. Sempre dá dois dedos de conversa. No calor da sala de estar, apregoa vantagens para lá da qualidade do ar. “O tempo rende; não há filas, resolve-se tudo na hora.” E não esconde inconvenientes. Pouca oferta, transportes públicos mínimos, falha a Net e o fornecedor demora dias a enviar um técnico. Fazem compras online. Usam o carro. Alfândega não é o fim do mundo. Uma hora e estão em Bragança ou Vila Real.
Os repórteres percorreram o país com o apoio da bolsa de criação jornalística “Aquele outro mundo que é o mundo”, atribuída pela ACEP, a Associação Coolpolitics, o CEIS20/UCoimbra e o CEsA-ISEG/ULisboa.
ANA CRISTINA PEREIRA (texto), MARGARIDA DAVID CARDOSO (vídeo) e ADRIANO MIRANDA (fotos)
Jornal Público
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