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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Dulce Pontes peregrina

Do furor do grito à acalmia, o caminho proposto por Dulce Pontes no seu novo disco (duplo, como o anterior) sugere um percurso por vários estados de alma. Nome? Peregrinação. Chega dia 6 às lojas e dia 10 ao palco do Tivoli BBVA, em Lisboa, em estreia nacional.
Ao escutar Peregrinação é impossível não recordar O Coração Tem Três Portas, triplo disco com que Dulce Pontes inaugurou o seu próprio selo discográfico, Ondeia Música, em 2006. Talvez pela junção de duas facetas que agora ressurgem, uma mais descarnada e visceral, outra mais suave e intimista, levada quase até à introspecção. Mas o que em 2006 se insinuava de forma clara mas intermitente, aqui ganha sequência lógica e uma demarcação clara. Já lá iremos. Convém, primeiro, recordar que entre os dois trabalhos existiu um terceiro, Momentos, lançado em 2009 e gravado em estúdio e em palcos um pouco pelo mundo (Lisboa, Porto, Madrid, Barcelona, Milão, Londres, Atenas). Foi também um disco duplo, dando sequência ao fôlego e aos matizes vocais do anterior.

Mas se Momentos tinha um disco 1 e um disco 2, os dois discos de Peregrinação têm mesmo nomes próprios: Nudez e Puertos de Abrigo, sendo o primeiro cantado em português e o segundo em espanhol, maioritariamente da Argentina. “Há uma divisão por idiomas”, confirma Dulce Pontes. “Ainda pensei misturá-los, mas não resultava.” E a essa divisão corresponde uma outra, que vai do canto mais visceral ao mais intimista. “Esforcei-me muito para que houvesse coerência nessa sequência, mas a determinada altura, tive medo que isso só fizesse sentido na minha cabeça.” Gravado entre 2011 e 2016 em Bragança, Lisboa, Buenos Aires, Roma e Cuba, com produção da própria cantora e co-produzido por António Pinheiro da Silva, Peregrinação levou tempo a assentar. “Isto só se arrumou em Janeiro de 2016. Porque eu tive de parar, stop! Houve muitos temas que não entraram e que guardei para mais tarde, ou para regravar, os que ficaram já gravados. Porque não fazia sentido.” A verdade é que, diz Dulce Pontes, já tinha temas para gravar um quádruplo álbum. “Foi uma coisa complexa. Por isso fico feliz se sentirem nela algum nexo. Não foi fácil de construir, mas foi muito pensado.”

Como explicar Peregrinação? Dulce vê-o assim: “Há um fio condutor ao longo dos temas que visa passar por vários estados de alma, depois existem transmutações, momentos de sublimação que eu gostaria que transmitissem o estado de espírito de alguém que está a percorrer determinado caminho, de sandálias, ou mesmo descalço. Um caminho que, não sendo religioso, é espiritual. Eu não tenho religião, acredito em Cristo, acredito em Deus como mistério, mas tenho essa fé. E a música é e continuará a ser o meu exercício máximo de espiritualidade, e é o máximo que eu consigo fazer.”

O primeiro disco, Nudez, abre com Meu amor sem Aranjuez, o adágio do concerto de Joaquín Rodrigo mas virado quase do avesso. “A poética foi a bússola para traçar os mapas dos vários estados de alma”, diz Dulce. “Não é o poema que se escreveu originalmente, eu tive necessidade de escrever outro e daí ter feito o trocadilho, Meu amor sem Aranjuez. Quem sentir ou entender o poema, verá que é uma abertura dessa nudez, um desnudar total e completo da minha forma de sentir ao partir para o Nudez.”

Aranjuez é apenas o início do percurso: “É abrir as asas e amar, não é só abrir as asas e sangrar. Depois a seguir vem o Grito (uma das criações fabulosas de Amália Rodrigues e de Carlos Gonçalves, faziam uma dupla brutal), num estado extremo, porque há uma solidão e uma profundidade nesse poema que é qualquer coisa que me custou bastante lá chegar esquecendo-me da Amália. Porque tinha de me esquecer, é fortíssimo.” Segue-se Nevoeiro, o poema de fernando Pessoa cantado por Dulce como se tivesse, de repente, emergido de um cabaret alemão. “É uma mutação. Exprime-se logo através do poema, o sair de dentro para fora. O poema é um murro no estômago, todo ele. Até àquele final deslumbrante do ‘É a hora’, dum acordar para alguma coisa, dum abanão. Porque a música não deve ser só entretenimento, aquela coisinha conveniente... Também é bom que seja entretenimento, mas é importante que continue a ter essa função de abanar.” Já há um vídeo, onde ela sublinha na imagem o que transmite na voz: “Quis fazer um bocado uma ironia com os caretos, da zona onde vivo, acentuando esse lado irónico.” Até nos sons: “Foram garrafões de plástico, uma panela de pressão, porque eu queria dar a ideia de uma marcha desconjuntada, de pé-descalço. Por outro lado, acho que o poema nunca esteve tão actual, não só para Portugal mas de uma forma geral.”

O disco prossegue com Va de Retro (“continuação da mensagem anterior”) e mais Pessoa (Cancioneiro). “É uma outra mutação: voltamos outra vez para dentro, mas de uma outra forma. ‘Ah! Fúria de a dor nem ter sorte em gritar/ De o grito não ter alcance maior’.” Depois o fado, com Alfama (de Ary e Oulman), e os sons da Beira-Baixa, com Cantiga da roda, seguida de Cantiga do risco e Grândola vila morena, onde Dulce se multiplica em vozes e efeitos. “São sons de passos, em contraponto com os da versão original. Quis levar o Grândola a um terreno de uma memória infinita. E também tem sons de planetas, fui buscá-los ao site da NASA. O Grândola tem e terá sempre essa simbologia de liberdade, pelo menos no meu espírito. Eu era uma miúda quando se deu o 25 de Abril e penso que a determinada altura, o tema foi um bocado banalizado, de repente já se fazia piadinha com ele. Ora eu, não tendo qualquer direcção política, não achei piada nenhuma a essa piadinha. E quis de alguma forma homenagear o Grândola, e homenagear o Zeca, e homenagear esse símbolo enquanto liberdade pura.”


Por fim, uma canção só dela, letra e música, Ele é que me canta a mim: “Compu-la a pensar no fado, que me está sempre a puxar, aquela coroa que sempre me quiseram pôr e eu não quero e não deixo. Mas ele está lá, caramba! E volta sempre, não há nada a fazer. E eu gosto. Está no meu ADN.” A fechar o primeiro disco, Bailados do Minho, de Artur Paredes, com letra dela. “Esse final, para mim, é a sublimação. No sentido positivo. E aconteceu em Cuba, foi gravada ao vivo em La Havana, há um ano.”

O segundo disco, Puertos de Abrigo, é marcado pela conexão argentina. Mas abre com Asturias, de Albéniz: “Faz um paralelo com o Nevoeiro. Quem lhe pôs o poema foi o Raúl Carnota [Buenos Aires, 1947-2014], que infelizmente faleceu e já não pôde ouvir a gravação, mas escreveu um poema brutal [‘No se bien/ si pretenden que muramos hoy/ o si es que quieren volvernos/ a la ‘gleba’, como ayer,/ para postrarnos y así dominar’].

Depois vem La Bohemia (versão espanhola do tema de Aznavour) e uma sequência de canções argentinas (Maria de Buenos Aires, Alfonsina y el mar, Barro y altura, Vamos Nina), com um tema do jogral galego Martin Codax (séc. XIII-XIV) pelo meio.

A ligação de Dulce Pontes à Argentina tornou-se forte. “Encontrei uma família lá, através de um pianista, Juan Carlos Cambas, que está a residir na Galiza. Tocamos juntos há vários anos (ele tocou com a Mercedes Sosa). Na Argentina mesmo, começou em 2011, quando fui lá a primeira vez, ao Festival de Cosquín. Gravei o Vamos Nina ainda nesse ano, com o Walter Ríos. E depois, à distância, trabalhei com o maestro Jaime Torres. Depois comecei a ir com mais frequência e de repente encontrei uma família, um carinho enorme. Tal como com o Leo Brouwer, em Cuba, que adorei conhecer e temos planos, que espero que se concretizem, para trabalhar juntos.”

O disco prossegue com Volver, de Carlos Gardel, com guitarra portuguesa (“podia ser um fado, aliás é um fado maravilhoso”), La leyenda del tiempo (de García Lorca, com tons vocais de flamenco), La peregrinación (de Navidad Nuestra, de Ariel Ramirez e Félix Luna, que acabou por ser uma extensão natalícia de Misa Criola) e 7th sky, de Dulce Pontes e Kaat Tilley: “É um segundo final. Está em inglês porque parte da letra foi escrita por uma grande amiga que faleceu entretanto. Era uma designer, uma criadora impressionante. Ela dizia sempre: ‘Oh! It’s going to be in the seventh sky’.” Ficou a fase no título, entrando a canção no disco “em homenagem a Kaat Tilley”.


Nas lojas dia 6 de Março, Peregrinação terá estreia em palco no Tivoli BBVA, em Lisboa, dia 10 às 21h30. Com Dulce Pontes (voz e piano), estarão os músicos Juan Carlos Cambas (piano), Amadeu Magalhães (bandolim, flauta, gaita-de-foles), Paulo da Silva (bateria e percussão), Hubert-Jan Hubeek (saxofone), Davide Zaccaria (violoncelo), Marta Pereira da Costa (guitarra portuguesa) e Daniel Casares (viola).


nuno.pacheco@publico.pt
Jornal Público

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