Ao escutar Peregrinação é impossível não recordar O Coração Tem Três Portas, triplo disco com que Dulce Pontes inaugurou o seu próprio selo discográfico, Ondeia Música, em 2006. Talvez pela junção de duas facetas que agora ressurgem, uma mais descarnada e visceral, outra mais suave e intimista, levada quase até à introspecção. Mas o que em 2006 se insinuava de forma clara mas intermitente, aqui ganha sequência lógica e uma demarcação clara. Já lá iremos. Convém, primeiro, recordar que entre os dois trabalhos existiu um terceiro, Momentos, lançado em 2009 e gravado em estúdio e em palcos um pouco pelo mundo (Lisboa, Porto, Madrid, Barcelona, Milão, Londres, Atenas). Foi também um disco duplo, dando sequência ao fôlego e aos matizes vocais do anterior.
Mas se Momentos tinha um disco 1 e um disco 2, os dois discos de Peregrinação têm mesmo nomes próprios: Nudez e Puertos de Abrigo, sendo o primeiro cantado em português e o segundo em espanhol, maioritariamente da Argentina. “Há uma divisão por idiomas”, confirma Dulce Pontes. “Ainda pensei misturá-los, mas não resultava.” E a essa divisão corresponde uma outra, que vai do canto mais visceral ao mais intimista. “Esforcei-me muito para que houvesse coerência nessa sequência, mas a determinada altura, tive medo que isso só fizesse sentido na minha cabeça.” Gravado entre 2011 e 2016 em Bragança, Lisboa, Buenos Aires, Roma e Cuba, com produção da própria cantora e co-produzido por António Pinheiro da Silva, Peregrinação levou tempo a assentar. “Isto só se arrumou em Janeiro de 2016. Porque eu tive de parar, stop! Houve muitos temas que não entraram e que guardei para mais tarde, ou para regravar, os que ficaram já gravados. Porque não fazia sentido.” A verdade é que, diz Dulce Pontes, já tinha temas para gravar um quádruplo álbum. “Foi uma coisa complexa. Por isso fico feliz se sentirem nela algum nexo. Não foi fácil de construir, mas foi muito pensado.”
Como explicar Peregrinação? Dulce vê-o assim: “Há um fio condutor ao longo dos temas que visa passar por vários estados de alma, depois existem transmutações, momentos de sublimação que eu gostaria que transmitissem o estado de espírito de alguém que está a percorrer determinado caminho, de sandálias, ou mesmo descalço. Um caminho que, não sendo religioso, é espiritual. Eu não tenho religião, acredito em Cristo, acredito em Deus como mistério, mas tenho essa fé. E a música é e continuará a ser o meu exercício máximo de espiritualidade, e é o máximo que eu consigo fazer.”
O primeiro disco, Nudez, abre com Meu amor sem Aranjuez, o adágio do concerto de Joaquín Rodrigo mas virado quase do avesso. “A poética foi a bússola para traçar os mapas dos vários estados de alma”, diz Dulce. “Não é o poema que se escreveu originalmente, eu tive necessidade de escrever outro e daí ter feito o trocadilho, Meu amor sem Aranjuez. Quem sentir ou entender o poema, verá que é uma abertura dessa nudez, um desnudar total e completo da minha forma de sentir ao partir para o Nudez.”
Aranjuez é apenas o início do percurso: “É abrir as asas e amar, não é só abrir as asas e sangrar. Depois a seguir vem o Grito (uma das criações fabulosas de Amália Rodrigues e de Carlos Gonçalves, faziam uma dupla brutal), num estado extremo, porque há uma solidão e uma profundidade nesse poema que é qualquer coisa que me custou bastante lá chegar esquecendo-me da Amália. Porque tinha de me esquecer, é fortíssimo.” Segue-se Nevoeiro, o poema de fernando Pessoa cantado por Dulce como se tivesse, de repente, emergido de um cabaret alemão. “É uma mutação. Exprime-se logo através do poema, o sair de dentro para fora. O poema é um murro no estômago, todo ele. Até àquele final deslumbrante do ‘É a hora’, dum acordar para alguma coisa, dum abanão. Porque a música não deve ser só entretenimento, aquela coisinha conveniente... Também é bom que seja entretenimento, mas é importante que continue a ter essa função de abanar.” Já há um vídeo, onde ela sublinha na imagem o que transmite na voz: “Quis fazer um bocado uma ironia com os caretos, da zona onde vivo, acentuando esse lado irónico.” Até nos sons: “Foram garrafões de plástico, uma panela de pressão, porque eu queria dar a ideia de uma marcha desconjuntada, de pé-descalço. Por outro lado, acho que o poema nunca esteve tão actual, não só para Portugal mas de uma forma geral.”
O disco prossegue com Va de Retro (“continuação da mensagem anterior”) e mais Pessoa (Cancioneiro). “É uma outra mutação: voltamos outra vez para dentro, mas de uma outra forma. ‘Ah! Fúria de a dor nem ter sorte em gritar/ De o grito não ter alcance maior’.” Depois o fado, com Alfama (de Ary e Oulman), e os sons da Beira-Baixa, com Cantiga da roda, seguida de Cantiga do risco e Grândola vila morena, onde Dulce se multiplica em vozes e efeitos. “São sons de passos, em contraponto com os da versão original. Quis levar o Grândola a um terreno de uma memória infinita. E também tem sons de planetas, fui buscá-los ao site da NASA. O Grândola tem e terá sempre essa simbologia de liberdade, pelo menos no meu espírito. Eu era uma miúda quando se deu o 25 de Abril e penso que a determinada altura, o tema foi um bocado banalizado, de repente já se fazia piadinha com ele. Ora eu, não tendo qualquer direcção política, não achei piada nenhuma a essa piadinha. E quis de alguma forma homenagear o Grândola, e homenagear o Zeca, e homenagear esse símbolo enquanto liberdade pura.”
O segundo disco, Puertos de Abrigo, é marcado pela conexão argentina. Mas abre com Asturias, de Albéniz: “Faz um paralelo com o Nevoeiro. Quem lhe pôs o poema foi o Raúl Carnota [Buenos Aires, 1947-2014], que infelizmente faleceu e já não pôde ouvir a gravação, mas escreveu um poema brutal [‘No se bien/ si pretenden que muramos hoy/ o si es que quieren volvernos/ a la ‘gleba’, como ayer,/ para postrarnos y así dominar’].
Depois vem La Bohemia (versão espanhola do tema de Aznavour) e uma sequência de canções argentinas (Maria de Buenos Aires, Alfonsina y el mar, Barro y altura, Vamos Nina), com um tema do jogral galego Martin Codax (séc. XIII-XIV) pelo meio.
O disco prossegue com Volver, de Carlos Gardel, com guitarra portuguesa (“podia ser um fado, aliás é um fado maravilhoso”), La leyenda del tiempo (de García Lorca, com tons vocais de flamenco), La peregrinación (de Navidad Nuestra, de Ariel Ramirez e Félix Luna, que acabou por ser uma extensão natalícia de Misa Criola) e 7th sky, de Dulce Pontes e Kaat Tilley: “É um segundo final. Está em inglês porque parte da letra foi escrita por uma grande amiga que faleceu entretanto. Era uma designer, uma criadora impressionante. Ela dizia sempre: ‘Oh! It’s going to be in the seventh sky’.” Ficou a fase no título, entrando a canção no disco “em homenagem a Kaat Tilley”.
nuno.pacheco@publico.pt
Jornal Público
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