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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 20 de janeiro de 2018

Na Pele do Lobo - Parte III

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..."
                                                                           VIAGEM INTERMINÁVEL
Na porta do mosteiro, frei Bento e os dois frades ficaram de olhos postos no grupo que se distanciava a bom ritmo, enquanto o abade, uns metros à frente, abençoava os seus enviados e rezava em alta voz pela segurança daqueles que mandava em nome D’Ele.

São Bento de Asnes estava isolado de tudo, a sua construção em granito, erguia-se num vale profundo da serra do Gerês, praticamente rodeado de altos cumes e era a residência de cerca de cinquenta frades. Era abastecido de água pela ribeira gelada que corria alegremente por um percurso sinuoso e acidentado até se despenhar de grande altura, perto da aldeia de São Salvador de Asnes e continuar o seu caminho até ao rio Cávado a muitos quilómetros dali. O aglomerado era composto pela capela e duas alas, em forma de U que abriam para um claustro e logo de seguida para uma extensa área composta por hortas que eram uma das fontes de alimentos do mosteiro. Todo o conjunto estava protegido por um muro de cerca de três metros de altura, derrubado pelo tempo em alguns  sítios.

O planalto era batido pelos ventos que se escoavam  nos espaços entre os cumes dos montes e assobiavam furiosamente no inverno. Àquela altitude, o sol podia ser inclemente durante o dia, alternando para uma noite gélida, no espaço de poucas horas.

Disso mesmo começou a sofrer frei João… as pernas pouco habituadas a grandes caminhadas, o corpo pesado, pouco dado a esforço, aliado ao estranho mal estar que sentia, uniram-se sob o sol castigador, tão logo abandonaram a proteção do bosque que orlava a base do monte que precisavam passar.

O trajeto que teriam de fazer era pouco conhecido por qualquer um dos monges, pois vulgarmente deslocavam-se apenas até São Salvador de Asnes, ou São Pedro de Tourém, para a feira mensal, agora iriam em sentido contrário, passando a face de uma das serras, quase até à fronteira com Castela. Todo o grupo caminhava em silêncio, primeiro porque se sabiam observados pelo abade e depois, apreensivos com a sua missão.

João ficava para trás e cada passo era um martírio. O suor frio que vertera antes, depois de o gelar completamente, agora parecia correr como gotas de metal derretido no seu corpo. Tiago deixou-se apanhar por ele e, certificando-se que os restantes não os ouviam, perguntou:

—  Que achais de tudo isto, irmão?

—  Isto, o quê? — Perguntou o outro com esforço. — Esta expedição inusitada, ou a estranha doença que atacou a aldeia?

—  Tudo! Não só esta maleita parece algo terrível e inexplicável, como este nosso grupo não tem muito de normal.

—  Uma coisa é correta: é nossa obrigação ajudar os nossos irmãos em dificuldades e fazemos isso mesmo, sempre que nos aparecem às portas.

—  Sempre que nos aparecem às portas! Vós sabeis bem que o nosso abade não cumpre escrupulosamente  o dever de curar e alimentar, senão aos peregrinos. — Frisou Tiago. — Não há memória de se mandar ninguém “ver o que se passa”. Algo o assustou muito.

—  É verdade que, para ele, os cuidados com o mosteiro estão em primeiro lugar e acho que é essa, em última análise, a razão desta aventura; ajudar se pudermos, se não, regressar rapidamente. Se esta enfermidade for tão contagiosa como aparenta, o mosteiro está em perigo e temos de o fechar num isolamento completo.

—  Só isso vos preocupa? — O monge falou ainda mais baixo. — Também não acreditais que seja obra de demónios?

—  Que o bom Deus o proíba! — Exclamou João benzendo-se ao mesmo tempo que o companheiro. — Acho que o nosso previdente abade não deixou essa hipótese de lado… é essa a razão da presença de Simão entre nós.

Ambos se calaram ao mesmo tempo ao verem o olhar de desaprovação de Filipe, que se deixara atrasar, para ver os retardatários. O seu porte altivo impunha respeito, não era difícil acreditar que era um cavaleiro templário de origem nobre.

Mantiveram a marcha em silêncio, à semelhança dos restantes mas, gradualmente, a distância entre João e o resto da comitiva ia aumentando, ao ponto do pobre Tiago  hesitar entre ficar com o companheiro ou manter o passo pelo grupo. Por fim decidiu-se e João ficou sozinho.

Arfava a cada passo, a água escorria pelas pernas, os próprios pés, apenas tapados pela correia das sandálias, eram uma papa de lama com terra e suor. Os companheiros aguardavam-no num pequeno largo mais acima… não havia uma árvore onde arranjar um pouco de sombra.

Chegado junto deles, Simão questionou-o se não achava melhor voltar, uma vez que parecia doente, mas ele recusou e despejou um pouco da água do seu odre no rosto afogueado, que lhe trouxe algum conforto. Os outros olhavam-no preocupados e ele sossegou-os alegando que era apenas o sol que o estava a atormentar, assim que chegassem às sombras da floresta do outro lado, tudo seria melhor. Procurou uma pedra alta o suficiente para se sentar um pouco, mas Simão deu ordem de marcha e ele não conseguiu descansar.

Novamente a distância entre eles começou a ser cada vez maior, até que desapareceram no alto do caminho, haviam chegado ao topo; a partir daí era só descer.

Quando por sua vez chegou ao ponto mais alto, pode deleitar-se com a paisagem. À sua esquerda, o maciço das serras alinhavam-se numa imensa muralha despida que desaparecia no horizonte e em frente, o tapete de árvores que se estendia a perder de vista. Lá muito longe, conseguia perceber o brilho de prata do rio. A fronteira com Castela. Antes disso, oculta na floresta, a estrada pavimentada, construída pelos antigos, que vinha de Braga e atravessava São Cristóvão da Chã, seguindo depois para a fronteira.

Olhou com preocupação para a mão roxa… as unhas amarelas e salientes, por certo iriam cair com os maus humores que se formavam no membro inchado… já sentia rigidez no cotovelo. Tiago aproximou-se e ele baixou rapidamente a manga do hábito.

O monge trazia recado de Simão: iam continuar a andar e esperariam de tempos a tempos por ele, mas que estavam a perder tempo precioso. Perguntava-lhe se não seria melhor voltar. Teimosamente recusou, inclusivamente, não parou de andar para ouvir o companheiro. Este acabou por encolher os ombros e levantando as saias do hábito, correu a alcançar os outros.

Foi com alívio que atingiu a orla da floresta e recebeu em cheio a frescura da sombra, adornada aqui e ali com raios de luz oblíquos, carregados de minúsculas estrelas. Acelerou um pouco o passo, mas não havia meio de os apanhar e por fim, mesmo com a sombra, o peso nas pernas e nos braços começa a fazer-se sentir novamente. A transpiração, que entretanto arrefecera no corpo, gelava-o, mas ele não queria parar e continuou, com as sandálias a arrastar no terreno irregular do trilho.

Não sabia há quanto tempo caminhava sem ver ninguém. O carreiro por entre as árvores era uma paisagem ondulante e só se apercebia das pedras quando estava mesmo em cima delas, ou quando tropeçava. O ruído das sandálias a arrastar no chão coberto de folhas, era como se estivesse a flutuar em vez de caminhar.

Por fim, conseguiu perceber, por entre a visão turva, as pedras que limitavam o pavimento da estrada de Braga. Ia ser um consolo encontrar caminho mais direito, mas de repente, um pontapé numa pedra traiçoeira, atirou-o de borco contra o chão, numa nuvem de pó.

—  Irmão João, irmão, esperai que vos ajudo! — A voz aflita de Tiago chegava-lhe de muito longe.

O companheiro ajudou-o a erguer-se mas ele tinha atingido o limite das suas forças. Ergueu-se mas não se aguentava em pé e o outro tinha que o amparar.

—  Valha-nos o Senhor, irmão João. Frei Simão disse-me que viesse ter convosco. Se for vossa vontade continuar, eles esperá-lo-ão na aldeia, pois não se pode perder mais tempo, já vão chegar lá ao anoitecer. Ele recomenda que regresse ao mosteiro, de ambas as maneiras eu acompanho-vos.

—  Estou muito cansado. — Gemeu João, de forma quase inaudível. — Preciso descansar, deixai-me deitar aqui.

—  Mas, oh, ides deitar aqui no chão? Oh, tendes um ferimento grande na cara. Deixai-me limpar isso. Não comeis nada? Nós já comemos alguma coisa para aguentar a jornada.

Tiago não obteve mais resposta e teve de puxar sozinho pelo corpo adormecido e, com uma ponta do cobertor molhada, limpou o ferimento na bochecha do companheiro. Havia sangue no hábito e nas mãos do ferido. Ergueu-se e olhou em volta… que haveria de fazer? Agora ele ia dormir no mínimo um par de horas e acabavam por ficar de noite na floresta…


Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.

Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.

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